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O FIM DE UMA ERA DO CAPITALISMO FINANCEIRO

A arquitetura financeira internacional cambaleou. E o risco sistêmico permanece. Nada voltará a ser como antes. E essa crise ocorre num momento de vazio teórico das esquerdas, que não têm um “plano B” para tirar proveito do descalabro. Em particular as da Europa, asfixiadas pelo choque da crise, quando seria tempo de refundação e de audácia.

Os terremotos que sacudiram as bolsas no “setembro negro” que passou precipitaram o fim de uma era do capitalismo. A arquitetura financeira internacional cambaleou. E o risco sistêmico permanece. Nada voltará a ser como antes. O Estado retorna.

O desmoronamento de Wall Street é comparável, no âmbito financeiro, ao que representou, no geopolítico, a queda do muro de Berlim. Uma mudança de mundo e um giro copernicano. Quem o afirma é o Nobel de Economia, Paul Samuelson: “Esta débâcle é para o capitalismo o que a queda da URSS foi para o comunismo”. Termina o período aberto em 1981 com a fórmula de Ronald Reagan: “O estado não é a solução, é o problema.” Durante trinta anos, os fundamentalistas do mecado repitiram que este tinha razão, que a globalização era sinônimo de felicidade, e que o capitalismo financeiro edificava o paraíso terreno para todos. Equivocaram-se.

A “idade de ouro” de Wall Street acabou. E também acabou um período de exuberância e esbanjamento representada por uma aristocracia de banqueiros de investimento, “amos do universo” denunciados por Tom Wolfe em “A Fogueira das Vaidades” (1987). Possuídos pela lógica da rentabilidade de curto prazo. Pela busca dos lucros exorbitantes.

Dispostos a tudo para obter mais lucros: vendas abusivas no curto prazo, manipulações, invenção de instrumentos opacos, titulação de ativos, contratos de cobertura de riscos, fundos Hedge. A febre do proveito fácil contagiou a todo o planeta. Os mercados se sobreaqueceram, alimentados pelo excesso de de financeirização que facilitou a alta dos preços.

A globalização conduziu a economia mundial a tomar a forma de uma economia de papel, virtual, imaterial. A esfera financeira chegou a representar mais de 250 trilhões de euros, ou seja, seis vezes o montante de riqueza real mundial. E, de chofre, essa gigantesca “bolha” explodiu. O desastre é de proporções apocalípticas. Mais de 200 bilhões de euros derreteram. A banca de investimento foi varrida do mapa. As cinco maiores entidades desmoronaram: Lehman Brothers na bancarrota; Bear Stears foi comprado com a ajuda do Federal Reserve, por Morgan Chase; Merril Lynch foi adquirido pelo Bank of America; e dois dos últimos, Goldman Sachs e Morgan Stanley (em parte comprado pelo japonês Mitsubishi UFJ), reconvertidos em bancos comerciais.

Toda a cadeia de funcionamento do aparato financeiro colapsou. Não só a banca de investimento, mas os bancos centrais, os sistemas de regulação, os bancos comerciais, as caixas econômicas, as companhias de seguros, as agências de qualificação de risco (Standard&Poors, Moodys, Fitch) e até as auditorias contábeis (Deloitte, Ernst&Young, PwC).

O naufrágio não pode surpreender a ninguém. O escândalo das “hipotecas lixo” era conhecido de todos. Assim como o excesso de liquidez orientado para a especulação, e a explosão delirante dos preços do custo de vida. Tudos isso foi denunciado – nestas colunas – há tempo. Sem que ninguém se mexesse. Porque o crime beneficiava a muitos. E se seguiu afirmando que a empresa privada e o mercado solucionavam tudo.

A administração do presidente George W. Bush teve de renegar esse princípio e recorrer, maciçamente, à intervenção do Estado. As principais entidades de crédito imobiliário, Fannie Mae y Freddy Mac, foram nacionalizadas. Também o foi o American International Group (AIG), a maior companhia de seguros do mundo. E o secretário do tesouro, Henry Paulson (ex-presidente do banco Goldman Sachs) propôs um plano de resgate de ações “tóxicas” procedentes das “hipotecas lixo” (subprime) por um valor de uns 500 bilhões de euros, que o Estado também adiantará, quer dizer, os contribuintes.

Prova do fracasso do sistema, essas intervenções do Estado – as maiores, em volume, da história econômica – demonstram que os mercados não são capazes de se regularem por si mesmos. Se autodestruíram por sua própria voracidade. Ademais, confirma-se uma lei do cinismo neoliberal: privatizaram os lucros mas se socializaram as perdas. Os pobres têm de arcar com as excentricidades irracionais dos banqueiros, e se lhes ameaça, em caso de não quererem pagar, com o seu maior empobrecimento.

As autoridades norte-americanas dedicam-se ao resgate dos “banksters” (“banqueiro gângster”), às expensas dos cidadãos. Há algums meses o presidente Bush se negou a assinar uma lei que oferecia uma cobertura médica a nove milhões de crianças pobres por um custo de 4 bilhões de euros. Considerou um gasto inútil. Agora, para salvar aos rufiões de Wall Street, nada lhe parece suficiente. Socialismo para os ricos e capitalismo selvagem para os pobres.

Este desastre ocorre num momento de vazio teórico das esquerdas, que não têm um “plano B” para tirar proveito do descalabro. Em particular as da Europa, asfixiadas pelo choque da crise, quando seria tempo de refundação e de audácia.

Quanto durará a crise? “Vinte anos se tivermos sorte, ou menos de dez se as autoridades agirem com mão firme”, vaticina o editorialista neoliberal Martin Wolf (1). Se houvesse alguma lógica política, este contexto deveria favorecer a eleição do democrata Barack Obama (em não sendo assassinado) para a presidência dos Estados Unidos no 4 de novembro próximo. É provável que, como D. Roosevelt, em 1930, o jovem presidente lance um novo “New Deal”, baseado no neokeynesianismo que confirmará o retorno do Estado à esfera econômica. E que trará, por fim, mais justiça social aos cidadãos. Vai se caminhar para um novo Bretton Woods. A etapa mais selvagem e irracional da globalização terá terminado.

(1) Financial Times, Londres, 23 de setembro de 2008

Tradução: Katarina Peixoto

Por Ignacio Ramonet, que é jornalista.

ARTIGO COLHIDO NO SÍTIO www.cartamaior.com.br.

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Ação pública contundente nos mercados financeiros

COMO EVITAR A RECESSÃO (II)

A crise e a regulação do sistema financeiro

A confiança – ingrediente essencial de qualquer sistema financeiro – foi por água abaixo nos terremotos registrados nas últimas semanas. Desse ponto de vista não há alternativa para fazê-lo funcionar a não ser com garantias públicas. Propor que essas garantias tenham caráter muito limitado ou circunstancial, como ocorreu no caso americano, constitui uma miopia ancorada na ideologia e nos interesses das finanças, o que poderá levar a economia a uma recessão ainda mais profunda. A análise é de Ricardo Carneiro.

Em vários momentos nas últimas semanas a ideologia neoliberal foi posta de pernas para o ar. Intervenções nos mercados financeiros foram ganhando extensão e profundidade culminando com a virtual estatização dos bancos em vários países da Europa e a aceitação pelo establishment de um grau inusitado de ingerência do governo, nas finanças privadas nos EUA. No Brasil, as intervenções foram variadas e intensas com liberação do compulsório, indução a compra de carteiras de crédito de pequenos bancos pelo Banco Central e intervenção pesada no mercado de divisas.

Em todas as partes, as justificativas para tal ação baseiam-se na idéia de evitar o mal maior. Uma tese correta, mas tão geral que esconde o essencial: a natureza da ação. A atuação do Estado tem assumido feições distintas segundo países e regiões. Veja-se, por exemplo, a clara distinção entre o que fizeram os governos europeus e o americano. Nos primeiros, por meio da participação direta do estado na propriedade das instituições financeiras, e por garantias públicas ao mercado interbancário, o sistema adquiriu uma característica semi-pública. Já nos EUA, essa forma de intervenção demorou a ser admitida pelos interesses dominantes – que antes advogavam apenas a compra de títulos podres com recursos do Tesouro – e quando o foi, privilegiou a menor e a pretendida circunstancial interferência do Estado.

O que está em jogo exatamente nos dois casos? Desde logo, a capacidade de influenciar de imediato os rumos que tomará o sistema financeiro na arbitragem das perdas mas, também, no futuro imediato, a sua capacidade de retomar novos financiamentos à atividade econômica. O essencial aqui é que dado os terremotos ocorridos recentemente, a confiança – ingrediente essencial de qualquer sistema financeiro – foi por água abaixo. Desse ponto de vista não há alternativa para fazê-lo funcionar a não ser com garantias públicas. Propor que essas garantias tenham caráter muito limitado ou circunstancial como no caso americano constitui uma miopia ancorada na ideologia e interesses das finanças e que poderá levar essa economia a uma recessão mais profunda.

As duas formas de intervenção sugerem que o sistema europeu poderá voltar a funcionar da forma normal num espaço de tempo menor. Mas, ainda estamos no plano das ações emergenciais. A medida em que o sistema se recuperar será necessário pensar também numa nova regulação das finanças para evitar a repetição dos episódios recentes. Qual a direção ou filosofia dessa nova regulação? Um bom caminho seria impedir o envolvimento do sistema bancário no financiamento de atividades especulativas, entendidas essas últimas como a aquisição de ativos financeiros nos mercados secundários, evitando, portanto a formação das bolhas de preços de ativos. Outra medida essencial seria a regulação severa do mercado de derivativos limitando a sua alavancagem.

As recentes medidas do Banco Central brasileiro como resposta aos efeitos domésticos da crise, merecem reparos. Do ponto de vista emergencial, as medidas de redução do compulsório foram importantes, mas insuficientes. Por não conterem uma tentativa de direcionamento desses recursos para a o financiamento de outros bancos ou a sustentação do circuito do crédito as medidas evitaram o mal maior, ou seja, a crise de liquidez generalizada. Porém, parte do dinheiro injetado no sistema virou aplicações de curto-prazo em títulos públicos. Ou seja, o Banco Central não enfrentou convenientemente a questão da forte contração do crédito ocorrida nas últimas semanas e a imperiosa urgência da sua retomada.

No mercado de divisas a ação do Banco Central foi também relevante, mas limitada. Fornecer divisas com cláusula de recompra para contornar a escassez temporária de dólares – oriunda do sumiço do crédito externo – é essencial para manter o comércio exterior fluindo. Se necessário for, como anunciado, parte das reservas poderão serão usadas para financiar os bancos e os exportadores brasileiros, o que também é correto. Já realizar vendas à vista de dólares e fornecer proteção cambial aos agentes privados por meio da venda de swaps parece inadequado à luz da institucionalidade do mercado de câmbio brasileiro.

A ação do Banco Central, nesse caso, é de natureza distinta e visa controlar a taxa de câmbio evitando bruscas desvalorizações, e não resolver problemas de liquidez. A dificuldade reside, todavia, na influência decisiva que o mercado de derivativos tem na formação da primeira. Ou seja, vender reservas ou proteção pode ter pouca influência no controle da taxa de câmbio, constituindo um desperdício. A ação mais correta, nesse caso, seria promover, em parceria com o órgão responsável, uma regulação do mercado de derivativos desestimulando a formação de posições especulativas. Se isto não ocorrer, a ação do BC na defesa da moeda nacional pode se revelar inócua. Em resumo, tanto aqui como alhures, a despeito das ações emergenciais, a regulação do sistema financeiro volta a ser um tema crucial.

Por Ricardo Carneiro, que é professor titular do Instituto de Economia e Pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da UNICAMP.

ARTIGO COLHIDO NO SÍTIO www.cartamaior.com.br.

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O capitalismo tentou romper seus limites históricos e criou um novo 1929, ou pior

“Não quero parecer um pastor com a sua Bíblia marxista, mas quero ler uma passagem de O Capital: o verdadeiro limite da produção capitalista é o próprio capital; é o fato de que, nela, são o capital e a sua própria valorização que constituem o ponto de partida e a meta, o motivo e o fim da produção. O meio empregado – desenvolvimento incondicional das forças sociais produtivas – choca constantemente com o fim perseguido, que é um fim limitado: a valorização do capital existente”. Leia a íntegra da palestra do economista francês François Chesnais feita em setembro, em Buenos Aires.

Nesta apresentação feita em 18 de Setembro em Buenos Aires, o economista marxista francês François Chesnais expõe a forma como o capitalismo, na sua longa fase de expansão, tentou superar os seus limites imanentes. E como todas essas tentativas contribuíram para criar agora uma crise muito maior. Comparável à de 1929, mas que ocorre num contexto totalmente novo.

A tese que vou apresentar defende que no ano passado produziu-se uma verdadeira ruptura, que deixa para trás uma longa fase de expansão da economia capitalista mundial; e que essa ruptura marca o início de um processo de crise com características que são comparáveis à crise de 1929, ainda que venha a desenvolver-se num contexto muito diferente.

A primeira coisa que é preciso recordar é que a crise de 1929 se desenvolveu como um processo: um processo que começou em 1929, mas cujo ponto culminante se deu bastante depois, em 1933, e que logo abriu caminho a uma longa fase de recessão. Digo isto para sublinhar que, na minha opinião, estamos a viver as primeiras etapas, mas realmente as primeiras, primeiríssimas etapas de um processo dessa amplitude e dessa temporalidade. E que o que nestes dias está acontecendo e tem como cenário os mercados financeiros de Nova York, de Londres e de outros grandes centros bolsistas, é somente um aspecto – e talvez não seja o aspecto mais importante – do que se deve interpretar como um processo histórico.

Estamos diante de um desses momentos em que a crise vem exprimir os limites históricos do sistema capitalista. Não se trata de alguma versão da teoria da “crise final” do capitalismo, ou algo do estilo. Do que sim se trata, na minha opinião, é de entender que estamos confrontados com uma situação em que se exprimem estes limites históricos da produção capitalista. Não quero parecer um pastor com a sua Bíblia marxista, mas quero ler-vos uma passagem de O Capital:

“O verdadeiro limite da produção capitalista é o próprio capital; é o fato de que, nela, são o capital e a sua própria valorização que constituem o ponto de partida e a meta, o motivo e o fim da produção; o fato de que aqui a produção é só produção para o capital e, inversamente, não são os meios de produção simples meios para ampliar cada vez mais a estrutura do processo de vida da sociedade dos produtores. Daí que os limites dentro dos quais tem de mover-se a conservação e a valorização do valor-capital, a qual descansa na expropriação e na depauperção das grandes massas de produtores, choquem constantemente com os métodos de produção que o capital se vê obrigado a empregar para conseguir os seus fins e que tendem para o aumento ilimitado da produção, para a produção pela própria produção, para o desenvolvimento incondicional das forças produtivas do trabalho. O meio empregado – desenvolvimento incondicional das forças sociais produtivas – choca constantemente com o fim perseguido, que é um fim limitado: a valorização do capital existente. Por conseguinte, se o regime capitalista de produção constitui um meio histórico para desenvolver a capacidade produtiva material e criar o mercado mundial correspondente, envolve ao mesmo tempo uma contradição constante entre esta missão histórica e as condições sociais de produção próprias deste regime. (1)

Bom, certamente que há algumas palavras que hoje já não utilizamos, como “missão histórica”… Mas creio que o que vamos ver nos próximos anos vai dar-se precisamente na base de já ter sido criado em toda a sua plenitude esse mercado mundial intuído por Marx. Quer dizer, temos um mercado e uma situação mundial diferentes da de 1929, porque nessa altura países como a China e a Índia eram ainda semi-coloniais, enquanto que agora já não têm esse caráter; são grandes países que, mais além de terem um caráter combinado que requer uma análise cuidadosa, são agora participantes de pleno direito dentro de uma economia mundial única, uma economia mundial unificada num grau desconhecido até esta etapa da história. A citação pode ajudar-nos a entender o momento atual, e a crise que se iniciou precisamente neste marco de um só mundo.

Um novo tipo de crise

Na minha opinião, nesta nova etapa, a crise vai desenvolver-se de tal modo que as primeiras e realmente brutais manifestações da crise climática mundial vão combinar-se com a crise do capital enquanto tal. Entramos numa fase em que se coloca realmente uma crise da humanidade, dentro de complexas relações nas quais se incluem também os acontecimentos bélicos, mas o mais importante é que, mesmo excluindo a explosão de uma guerra de grande amplitude que, no presente momento, só podia ser uma guerra atómica, estamos confrontados com um novo tipo de crise, com uma combinação desta crise econômica, que começou, com uma situação na qual a natureza, tratada sem a menor contemplação e atacada pelo homem no marco do capitalismo, reage agora de forma brutal. Isto é uma coisa quase excluída das nossas discussões, mas que vai impor-se como um fato central.

Por exemplo, muito recentemente, lendo o trabalho de um sociólogo francês, fiquei a saber que os glaciares andinos dos quais flui a água com que se abastecem La Paz e El Alto estão esgotados em mais de 80%, e estima-se que dentro de 15 anos La Paz e El Alto não vão ter água… e, no entanto, isto é algo que nunca foi tratado, nunca se discutiu um fato de tamanha magnitude que pode fazer com que a luta de classes na Bolívia, tal como a conhecemos, mude substancialmente – por exemplo fazendo com que a tal controversa mudança da capital para Sucre se imponha como uma coisa “natural”, porque acabou a água em La Paz.

Estamos entrando num período desse tipo e o problema é que quase não se fala disso, enquanto que nos ambientes revolucionários continuam a discutir-se coisas que neste momento são minúcias, questões completamente mesquinhas em comparação com os desafios que temos pela frente.

Limites imanentes do capitalismo

Para continuar com a questão dos limites do capitalismo, quero chamar a atenção para uma citação de Marx, imediatamente anterior à já citada: “A produção capitalista aspira constantemente a superar estes limites imanentes a ela, mas só pode superá-los recorrendo a meios que voltam a levantar diante dela estes mesmo limites, e ainda com mais força”. (2) Esta indicação introduz-nos a análise e a discussão dos meios a que se recorreu, durante os últimos 30 anos, para superar os limites imanentes do capital.

Esses meios foram, em primeiro lugar, todo o processo de liberalização das finanças, do comércio e do investimento, todo o processo de destruição das relações políticas surgidas na raíz da crise de 29 e dos anos 30, depois da Segunda Guerra Mundial e das guerras de libertação nacional… Todas essas relações, que exprimiam o domínio do capital mas representavam ao mesmo tempo formas de controle parcial do mesmo capital, foram destroçadas e, por algum tempo, pareceu ao capital que com isto ficavam superados os limites postos à sua atuação.

A segunda forma que se escolheu para superar esses limites imanentes do capital foi recorrer, numa escala sem precedentes, à criação de capital fictício e de meios de crédito para ampliar uma procura insuficiente no centro do sistema.

E a terceira forma, a mais importante historicamente para o capital, foi a reincorporação, enquanto elementos plenos do sistema capitalista mundial, da União Soviética e seus “satélites”, e da China.

Só no marco das resultantes destes três processos é possível captar a amplitude e a novidade da crise que se inicia.

Liberalização, mercado mundial, competição… Comecemos por nos interrogar sobre o que significou a liberalização e a desregulação levadas a cabo à escala mundial, com a incorporação do antigo “campo” soviético e a incorporação e a modificação das relações de produção na China… O processo de liberalização e desregulação significou o desmantelamento dos poucos elementos reguladores que se tinham construído no marco internacional ao sair da Segunda Guerra Mundial, para entrar num capitalismo totalmente desregulamentado. E não só desregulamentado, como também um capitalismo que criou realmente o mercado mundial no pleno sentido do termo, convertendo em realidade o que era em Marx uma intuição ou antecipação. Pode ser útil precisar o conceito de mercado mundial e ir talvez mais além da palavra mercado.

Trata-se da criação de um espaço livre de restrições para as operações do capital, para produzir e realizar mais-valias, tomando este espaço como base e processo de centralização de lucros à escala verdadeiramente internacional. Esse espaço aberto, não homogêneo mas com uma redução drástica de todos os obstáculos à mobilidade do capital, essa possibilidade para o capital de organizar à escala universal o ciclo de valorização, está acompanhado de uma situação que permite pôr em competição entre si os trabalhadores de todos os países. Quer dizer, sustenta-se no fato de o exército industrial de reserva ser realmente mundial e de ser o capital como um todo que rege os fluxos de integração ou de repulsão, nas formas estudadas por Marx.

Este é então o marco geral de um processo de “produção para a produção” em condições em que a possibilidade de a humanidade e as massas do mundo acederem a essa produção é totalmente limitada… e, portanto, torna-se cada vez mais difícil o encerramento com êxito do ciclo de valorização do capital, para o capital no seu conjunto, e para cada capital em particular. E por isso se ampliam e se fazem mais determinantes no mercado mundial “as leis cegas da competição”. Os bancos centrais e os governos podem proclamar que vão pôr-se de acordo entre si e colaborar para impedir a crise, mas não creio que se possa introduzir a cooperação no espaço mundial convertido em cenário de uma tremenda competição entre capitais.

E agora, a competição entre capitais vai muito mais além das relações entre os capitais das partes mais antigas e mais desenvolvidas do sistema mundial, com os sectores menos desenvolvidos do ponto de vista capitalista. Porque sob formas particulares e inclusive muito parasitárias, no marco mundial deram-se processos de centralização do capital por fora do marco tradicional dos centros imperialistas: em relação com eles, mas em condições que também introduzem algo totalmente novo no marco mundial.

Durante os últimos 15 anos, e em particular durante a última etapa, desenvolveram-se, em determinados pontos do sistema, grupos industriais capazes de integrar-se como sócios de pleno direito nos oligopólios mundiais. Tanto na Índia como na China constituíram-se verdadeiros e fortes grupos econômicos capitalistas. E, no plano financeiro, como expressão do rentismo e do parasitismo puro, os chamados Fundos Soberanos converteram-se em importantes pontos de centralização do capital sob a forma de dinheiro, que não são meros satélites dos Estados Unidos, têm estratégias e dinâmicas próprias e modificam de muitas maneiras as relações geopolíticas dos pontos-chave em que a vida do capital se faz e fará.

Por isso, outro elemento a ter em conta é que esta crise tem como outra de suas dimensões a de marcar o fim da etapa em que os Estados Unidos podiam atuar como potência mundial sem comparação… Na minha opinião, saímos do momento que analisava Mészáros no seu livro de 2001, e os Estados Unidos vão ser submetidos a uma prova: num prazo muito curto, todas as suas relações mundiais modificaram-se e terão, no melhor dos casos, de renegociar e reordenar todas as suas relações com base no facto de que têm de partilhar o poder. E isto, evidentemente, é algo que nunca aconteceu de forma pacífica na história do capital…

Então, primeiro elemento: um dos métodos escolhidos pelo capital para superar os seus limites transformou-se em fonte de novas tensões, conflitos e contradições, indicando que uma nova etapa histórica vai abrir caminho através desta crise.

Criação descontrolada de capital fictício

O segundo meio utilizado para superar os limites do capital das economias centrais foi que todas elas recorreram à criação de formas totalmente artificiais de ampliação da procura efectiva, as quais, somando-se a outras formas de criação de capital fictício, geraram as condições para a crise financeira que se desenvolve hoje. No artigo que os companheiros de Herramienta tiveram a gentileza de traduzir para o espanhol e publicar, abordei com alguma profundidade esta questão do capital fictício e as novas formas que se deram dentro do próprio processo de acumulação do capital fictício.

Para Marx, o capital fictício é a acumulação de títulos que são “sombra de investimentos” já feitos mas que, como títulos de bônus e de ações, aparecem com o aspecto de capital aos seus detentores. Não o são para o sistema como um todo, para o processo de acumulação, mas são-no sim para os seus detentores e, em condições normais de fechamento de processos de valorização do capital, rendem aos seus detentores dividendos e juros. Mas o seu caráter fictício revela-se em situações de crise. Quando ocorrem crises de sobreprodução, falência de empresas, etc., descobre-se que esse capital não existia…

Por isso também pode ler-se às vezes nos jornais que tal ou qual quantidade de capital “desapareceu” nalgum tropeço bolsista: essas quantias nunca tinham existido como capital propriamente dito, apesar de, para os detentores dessas ações, representarem títulos que davam direito a dividendos e juros, a receber lucros…

Evidentemente, um dos grandes problemas de hoje é que, em muitíssimos países, os sistemas de aposentadoria estão baseados em capital fictício, com pretensões de participação nos resultados de uma produção capitalista que pode desaparecer em momentos de crise. Toda a etapa de liberalização e de globalização financeira dos anos 80 e 90 esteve baseada em acumulação de capital fictício, sobretudo em mãos de fundos de investimento, fundos de pensões, fundos financeiros… E a grande novidade desde finais ou meados dos anos 90 e ao largo dos anos 2000 foi, nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha em particular, o impulso extraordinário que se deu à criação de capital fictício na forma de crédito.

De crédito a empresas, mas também e sobretudo de créditos às famílias, crédito ao consumo e sobretudo créditos hipotecários. E isso fez dar um salto na massa de capital fictício criado, dando origem a formas ainda mais agudas de vulnerabilidade e de fragilidade, inclusive diante de choques menores, inclusive diante de episódios absolutamente previsíveis. Por exemplo, com base em tudo estudado anteriormente, sabia-se que um boom imobiliário acaba; que inexoravelmente chega um momento em que, por processos muito bem estudados, termina; e, se pode até ser relativamente compreensível que no mercado de ações existisse a ilusão de que não havia limites para a alta no preço das acções, com base em toda a história anterior sabia-se que que isso não podia ocorrer no setor imobiliário: quando se trata de edifícios e de casas é inevitável que chegue o momento em que o boom acaba.

Mas colocaram-se em tal situação de dependência, que esse acontecimento completamente normal e previsível transformou-se numa crise tremenda. Porque a tudo o que já disse, juntou-se o fato de que durante os dois últimos anos os empréstimos eram feitos a famílias que não tinham a menor possibilidade de pagar. Além disso, tudo isso se combinou com as novas “técnicas” financeiras, permitindo-se assim que os bancos vendessem bônus em condições tais que ninguém podia saber exatamente o que estava a comprar… até a explosão dos subprime em 2007.

Agora estão desmontando este processo. Mas dentro dessa desmontagem, há processos de concentração do capital financeiro. Quando o Bank Of America compra o Merrill Lynch, estamos diante de um processo de concentração clássico. E vemos além disso estes processos de estatização das dívidas, que implicam na criação imediata de mais capital fictício. O Federal Reserve dos Estados Unidos cria mais capital fictício para manter a ilusão de um valor do capital que está à beira de desmoronar, com a perspectiva de ter, em algum momento dado, a possibilidade de aumentar fortemente a pressão fiscal, mas na realidade não pode fazê-lo porque isso significaria o congelamento do mercado interno e a aceleração da crise enquanto crise real.

Assistimos, pois, a uma fuga em frente que não resolve nada. Dentro desse processo existe também o avanço dos Fundos Soberanos, que procuram modificar a repartição intercapitalista dos fluxos financeiros a favor dos sectores rentistas que acumularam estes fundos. E isto é um fator de perturbação ainda maior no processo.

Quero recordar, para terminar este ponto, que esse déficit comercial de cinco pontos do PIB é o que confere aos Estados Unidos a particularidade desse lugar-chave para a concretização do ciclo do capital no momento da realização da mais-valia, para o processo capitalista no seu conjunto.

Confrontados agora com uma quase inevitável retração econômica, coloca-se como a grande interrogação se, num curto prazo, a procura interna chinesa poderá passar a ser o lugar que garanta esse momento de realização da mais-valia que se dava nos Estados Unidos. A amplitude da intervenção do Tesouro é muito forte e conseguiu que a contração da atividade nos EUA e a queda das importações tenha sido até agora muito limitada. O problema é saber quanto tempo se poderá ter como único método de política econômica criar mais e mais liquidez… Será possível que não haja limites à criação de capital fictício sob a forma de liquidez para manter o valor do capital fictício já existente? Parece-me uma hipótese demasiado otimista, e entre os próprios economistas norte-americanos, muitos duvidam.

Super-acumulação na China?

Para terminar, chegamos à terceira maneira pela qual o capital superou os seus limites imanentes, que é definitivamente a mais importante de todas e levanta as interrogações mais interessantes. Refiro-me à extensão, em particular para a China, de todo o sistema de relações sociais de produção do capitalismo. Algo que Marx mencionou nalgum momento como possibilidade, mas que só se fez realidade durante os últimos anos. E realizou-se em condições que multiplicam os fatores de crise.

A acumulação do capital na China fez-se com base em processos internos, mas também com base em algo que está perfeitamente documentado, mas pouco comentado: a transferência de uma parte importantíssima do Setor II da economia, o setor da produção de meios de consumo, dos Estados Unidos para a China. E isto tem muito a ver com o grosso dos déficits norte-americanos (o déficit comercial e o fiscal), que só poderiam reverter-se por meio de uma “reindustrialização” dos Estados Unidos.

Isto significa que se estabeleceram novas relações entre os Estados Unidos e a China. Já não são as relações de uma potência imperialista com um espaço semicolonial. Os Estados Unidos criaram relações de um novo tipo, que agora têm dificuldades de reconhecer e de assumir. Com base no superávit comercial, a China acumula milhões e milhões de dólares, que logo empresta aos Estados Unidos. Temos uma ilustração das consequências que isto traz com a nacionalização dessas duas entidades chamadas Fannie Mae e Freddy Mac: ao que parece, a banca da China tinha 15% dos fundos dessas duas entidades e comunicou ao governo americano que não aceitaria a sua desvalorização. São relações internacionais de tipo completamente novo.

Mas que ocorre no seio da própria China? É a questão mais decisiva para a próxima etapa da crise. Na China deu-se internamente um processo de competição entre capitais, que se combinou com processos de competição entre sectores do aparelho político chinês, e de competição para atrair empresas estrangeiras; tudo isso resultou num processo de criação de imensas capacidades de produção, além de violentar a natureza numa escala enorme: na China concentra-se uma super-acumulação de capital que num momento dado se tornará insustentável.

Na Europa, é evidente a tendência a uma aceleração da destruição de capacidades produtivas e de postos de trabalho, para transferir-se para o único paraíso do mundo capitalista que é a China. Considero que esta transferência de capitais para a China significou uma reversão de processos anteriores de uma alta da composição orgânica do capital. A acumulação é intensiva em meios de produção e é intensiva e muito delapidadora da outra parte do capital constante, quer dizer, das matérias primas. A maciça criação de capacidades de produção no Setor I foi acompanhada por todos os mecanismos e o impulso que caracterizam o crescimento da China, mas o mercado final para sustentar toda essa produção é o mercado mundial, e uma retração deste colocará em evidência essa super-acumulação do capital.

Alguém como Aglietta, que estudou isto especificamente, afirma que realmente há super-acumulação, há um processo acelerado de criação produtiva na China, um processo que, no momento em que terminar – e tem de terminar – a realização de toda essa produção vai levantar problemas. Além disso, a China é realmente um lugar decisivo, porque até pequenas variações na sua economia determinam a conjuntura de muitos outros países no mundo. Foi suficiente que a procura chinesa por bens de investimento caísse um pouco, para que a Alemanha perdesse exportações e entrasse em recessão. As “pequenas oscilações” na China têm repercussões fortíssimas noutros lugares, como deveria ser evidente no caso da Argentina.

Para continuar a pensar e a discutir

E regresso ao que disse no início. Ainda que sejam comparáveis, as fases desta crise serão diferentes das de 29, porque naquela época a crise de superprodução dos Estados Unidos verificou-se desde os primeiros momentos. Depois aprofundou-se, mas soube-se de imediato que se estava diante de uma crise de superpodução. Agora, em contrapartida, estão adiando esse momento com diversas políticas, mas não vão poder fazê-lo muito mais.

Simultaneamente, e como ocorreu também na crise de 29 e nos anos 30, ainda que em condições e sob formas diferentes, a crise combinar-se-á com a necessidade, para o capitalismo, de uma reorganização total da expressão das suas relações de forças econômicas no marco mundial, marcando o momento no qual os Estados Unidos verão que a sua superioridade militar é somente um elemento, e um elemento bastante subordinado, para renegociar as suas relações com a China e outras partes do mundo. Ou vai chegar o momento no qual dará o salto para uma aventura militar de consequência imprevisíveis.

Por tudo isto, concluo que vivemos muito mais que uma crise financeira, mesmo estando agora nessa fase. Estamos diante de uma crise muitíssimo mais ampla. Ora bem, tenho a impressão, pelo tom das diferentes perguntas e observações que me fizeram, que muitos são da opinião que estou a pintar um cenário de tipo catastrofista, de desmoronamento do capitalismo… Na realidade, creio que estamos diante do risco de uma catástrofe, mas já não do capitalismo, e sim de uma catástrofe da humanidade. De certa forma, se tomarmos em conta a crise climática, possivelmente já existe algo assim…

A minha opinião (junto com Mészáros, por exemplo, mas somos muito poucos os que damos importância a isto) é que estamos diante de um perigo iminente. O dramático é que, de momento, isto afeta diretamente populações que não são levadas em conta: o que está ocorrendo no Haiti parece que não tem a menor importância histórica; o que acontece em Bangladesh não tem peso mais além da região afetada; muito menos o que acontece na Birmânia, porque o controle da Junta militar impede que ultrapasse as suas fronteiras. E o mesmo na China: discutem-se os índices de crescimento, mas não as catástrofes ambientais, porque o aparelho repressivo controla as informações sobre as mesmas.

E o pior é que essa “opinião”, que é constantemente construída pelos meios de comunicação, está interiorizada muito profundamente, inclusive em muitos intelectuais de esquerda. Tinha começado a trabalhar e a escrever sobre tudo isto, mas com o começo desta crise, de alguma forma tive de voltar a ocupar-me das finanças, ainda que não o faça com muito gosto, porque o essencial parece-me que se joga num plano diferente.

Para terminar: o fato de que tudo isto ocorre depois desta fase tão larga, sem paralelo na história do capitalismo, de 50 anos de acumulação ininterrupta (salvo um pequeníssima ruptura em 1974/1975), assim como também tudo o que os círculos capitalistas dirigentes, e em particular os bancos centrais, aprenderam da crise de 29, tudo isso faz com que a crise avance de maneira bastante lenta.

Desde setembro do ano passado, o discurso dos círculos dominantes vem afirmando, uma e outra vez, que “o pior já passou”, quando o certo é que, uma e outra vez, “o pior” estava por vir. Mas insisto no risco de minimizar a gravidade da situação, e sugiro que nas nossas análises e na forma de abordar as coisas deveríamos incorporar a possibilidade, no mínimo a possibilidade, de que inadvertidamente estejamos também interiorizando esse discurso de que, definitivamente, “não acontece nada”…

Por François Chesnais, que é economista e faz parte do Conselho Científico do ATTAC-França, é diretor de Carré Rouge e membro do conselho consultivo da revista Herramienta, com a qual colabora assiduamente.

Esta apresentação foi realizada no encontro organizado pela revista argentina “Herramienta” em 18 de Setembro de 2008. A transcrição e preparação para a sua publicação é de Aldo Casas.

Versão publicada no portal Esquerda.Net. Tradução para o português: Luis Leiria (Esquerda.Net)

(1) Karl Marx, El capital México, FCE, 1973, Vol. III, pág. 248.

(2) Idem.

(3) “El fin de un ciclo. Alcance y rumbo de la crisis financiera”, en Herramienta Nº 37, marzo 2008.

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A palavra que falta dizer é estatização do crédito

COMO EVITAR A RECESSÃO (I)

Belluzzo: “A palavra que falta dizer é estatização do crédito”

É preciso deixar de lado a esperança liberal de que os bancos vão agir em benefício da sociedade e do desenvolvimento. O governo tem que injetar crédito direto na veia do setor produtivo e demais instituições. A palavra que falta dizer é: estatização do crédito”, diz, em entrevista à Carta Maior, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, professor-titular do Instituto de Economia da Unicamp e presidente do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.

O governo brasileiro, através do Banco Central, trava uma queda de braço neste momento entre a lógica do interesse privado, que orienta o sistema bancário, e as necessidade de crédito para girar a economia e assim evitar a recessão, ou pelo menos amortecer seu desembarque no país.

Nos últimos dias, o BC tem liberado volumes crescentes de recursos ao setor – na forma de redução do percentual de depósitos à vista, compulsoriamente recolhidos aos cofres oficiais, como medida de regulação da liquidez. Mesmo assim a economia patina. Em vez de robustecer os empréstimos ao mercado e a outras instituições, os bancos têm preferido o abrigo seguro das aplicações em títulos público, que aumentaram em mais de 25% desde o início da crise.

O negócio é bom para os bancos; graças à política ortodoxa de juros do BC, propicia um rendimento de 8% reais, sem risco à tesouraria. Mas é um mau negócio para o país. Na verdade, problema semelhante ocorre em outras praças do mundo nesse momento. Há um empoçamento geral de liquidez que acelera e antecipa dinâmicas recessivas fazendo ruir as Bolsas, como se vê hoje depois da euforia da última terça-feira. “O problema é que as ações implementadas até agora não conseguiram reanimar os mecanismos de crédito. Ou melhor, elas são inadequadas para isso; de uma vez por todas é preciso entender que liquidez não é crédito”, explica o economista Luiz Gonzaga Belluzzo em entrevista à Carta Maior.

“Liquidez só se torna crédito quando os bancos cumprem a sua função original e repassam recursos permitindo girar a roda da economia. Não adianta o governo brigar contra a lógica do interesse privado neste momento. É preciso deixar de lado a esperança liberal de que os bancos vão agir em benefício da sociedade e do desenvolvimento. O governo tem que injetar crédito direto na veia do setor produtivo e demais instituições. A palavra que falta dizer é: estatização do crédito”, afirma o economista, professor-titular do Instituto de Economia da Unicamp e presidente do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.

“O Banco Central deve se tornar o emprestador universal , de modo a permitir que a liquidez disponível chegue a quem pode transformá-la em dinâmica produtiva”, reforça Belluzzo. “Para isso o BC deve liberar volumes determinados de crédito ao mercado e anunciar que a rede bancária, de agora em diante, está a seu serviço como repassadora do recurso. O industrial poderá então dirigir-se ao seu gerente e solicitar o empréstimo, sem o risco de ouvir uma negativa. O dinheiro do BC está lá a sua disposição”, emenda o economista.

Belluzzo lembra que os fatos caminham à frente das idéias também neste caso. Como decorrência da desregulação geral das finanças, desde os anos 70, os bancos sofreram uma mutação em todo mundo. Eles renunciaram à condição original de emprestadores finais, aqueles que geram o crédito e carregam o risco até a liquidação dos contratos: tornaram-se meros corretores das finanças, como observa também o economista francês Michel Aglietta. “O banco continua a originar o empréstimo, mas securitiza a operação, revendendo-a no mercado de forma a dividir os riscos”, explica Belluzzo. O problema é que esse mecanismo de defesa degenerou-se.

Assumiu a forma de imensas pirâmide de ativos securitizados, em diferentes versões de derivativos que turbinaram os circuitos especulativos das finanças desreguladas. Sua essência desestabilizadora – são pirâmides invertidas cujo ponto de apoio em valor real se esfumou – só foi reconhecida pelos neoliberais urbi et orbi quando a casa caiu nos EUA, na explosão da bolha imobiliária.

O que ocorreu no sistema financeiro do capitalismo desregulado , segundo o professor da Unicamp, vencedor do Troféu Juca Pato (2004) com o livro “Ensaios sobre o Capitalismo no Século XX”, é que os bancos comerciais se igualaram aos bancos de investimento – que originalmente repassavam ativos – e estes assumiram prerrogativas das instituições comerciais, em operações especulativas de balcão. “Ou seja, o sistema bancário tornou-se um mero repassador de dinheiro. O jeito então é tratá-lo como tal, e não esperar uma reconversão social numa hora dessas”.

A hesitação do governo pode custar caro. Se a deficiência na pata financeira do capitalismo desregulado já causava problemas em tempos de vacas gordas, agora que o pasto escasseia, em vez de funcionar como contrapeso à recessão a engrenagem bancária age para antecipar o seu desembarque no país e seu teor letal. “O governo deve intervir sem medo, embora o coro conservador-midiático possa clamar respeito aos ditames do livre-mercadismo. Defendi isso ontem no Conselho de Economia da FIESP. A alternativa é fazer mais tarde, quando a vaca já tiver ido para o brejo; vai ser pior”, adverte o professor, palmeirense convicto, e heterodoxo dos mais respeitados nos circuitos acadêmicos, tendo sido incluído em 2001 entre os cem principais economistas do século pelo Biograpfical Dictionary of Dissenting Economistas.

Por Redação – Carta Maior.

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“Entupiu o sistema circulatório do capitalismo. É preciso agir rápido, antes que ocorra a trombose”

Em entrevista à Carta Maior, a economista Maria da Conceição Tavares fala sobre a crise. “As autoridades monetárias de todo o mundo têm que intervir rápido, antes que se forme a pior das bolhas, a de pânico, que é essa que está em curso”, adverte. Para ela, o Brasil tem algumas vantagens importantes para enfrentar a crise, entre elas a existência de três fortes bancos estatais e pelo menos três grandes empresas públicas de peso, salvas do ciclo de privatizações desfechado pelo governo anterior. Isso dá ao governo instrumentos para intervir fortemente no mercado.

Decana dos economistas brasileiros, uma espécie de banco de reflexão de última instância ao qual se socorrem economistas quando o horizonte do mercado exibe mais interrogações que cifrões, a professora Maria da Conceição Tavares, 78 anos, quase não dormiu na noite de terça para quarta-feira. E voltou a fumar, muito, o que não deveria, por orientação médica. Motivo: os abalos seguidos nos alicerces do sistema capitalista norte-americano e seus efeitos sísmicos no mundo, inclusive no Brasil.

Conhecida pela rara capacidade de equilibrar razão e paixão – não necessariamente nessa ordem – , costuradas em frases contundentes e metáforas esmagadoras sobre os desafios da economia e do desenvolvimento, Conceição falou à Carta Maior sobre a crise em curso no sistema capitalista. A voz rouca e o cansaço de uma noite insone não impedirem que reafirmasse a reputação construída a partir de uma lucidez corajosa, que mesmo os adversários respeitam – e temem.

A seguir trechos de sua conversa com a Carta Maior:

“A questão central é que o crédito está congelado: entupiu o sistema circulatório do capitalismo. Sem crédito uma economia capitalista não funciona. Agora é torcer para que o entupimento não se transforme em trombose”.

“O Martin Wolf foi lento (NR: editor do Financial Times, conhecido pelas convicções neoliberais que, em artigo transcrito hoje pelos jornais brasileiros, pede um resgate estatal urgente, e amplo, do sistema bancário). Assim como ele, as autoridades norte-americanas também foram lentas. Demasiado lentas. Vão dizer que não sabiam o tamanho do estrago? Ignoravam a gravidade da bolha especulativa feita de hipotecas podres e derivativos, cuja soma vai além de US$ 6 trilhões, sem falar do resto? Como não sabiam? Eles são gente de Wall Street. São escolhidos entre os “piranhões” do mercado. Não podem dizer que não sabiam. O problema não é esse. O problema é que eles acreditam no mercado. Essa é a tragédia. Esperaram até o limite da irresponsabilidade para intervir. Aí perderam o controle e estão diante do pânico: ninguém empresta a ninguém, entupiu o sistema circulatório do capitalismo”.

“Agora tem de fazer isso mesmo, estatizar parcelas abrangentes do sistema financeiro; implantar safenas. Não é isso que estão fazendo? O FED já começou a descontar commercial papers direto no mercado. Tem que intervir largamente, e rápido. Eles são o centro da crise mundial. Mas um pânico financeiro não respeita fronteiras”.

“O problema do Brasil não são os fundamentos, que no geral são bons. Mas aqui também foram feitas operações especulativas por grandes empresas exportadoras. Ou será que a Sadia e a Aracruz agiram solitariamente? Não agiram. Não foram exceções. Foram irresponsáveis. Não se contentaram em contratar hedge (seguro) contra a variação cambial. Quiseram apostar quantias fantásticas na variação futura do câmbio e apostaram errado. Jogaram na valorização do Real o que é insólito, diga-se. Como exportadores deveriam engrossar as vozes que pediam maior competitividade da moeda brasileira. Mas apostaram. erraram e isso abriu rombos que a Sadia, felizmente, já reconheceu no seu balanço. Digo felizmente porque não pode pairar dúvidas no mercado sobre o tamanho e a abrangência desses prejuízos ou isso gera incerteza e a desconfiança bate nas taxas do dólar.”

“O Banco Central tem o registro, sabe quem fez operações de hedge, mas não sabe quem derivou daí a segunda operação, especulativa. Se soubesse deveria intervir, sanar rapidamente o problema para evitar essa incerteza. Mas o BC, infelizmente, não tem os controles de operações que são totalmente desreguladas. O jeito então é intervir direto no mercado. Impedir a disparada do câmbio que dificulta a vida dos exportadores e importadores. A volatilidade impede o fechamento de contratos de exportação e importação; isso desequilibra a oferta de dólares e empurra ainda mais as cotações. O BC deve intervir direto vendendo dólares (NR: foi o que ocorreu depois que Conceição falou a CM). Não adianta mais fazer swaps (contratos futuros), precisa vencer moeda mesmo. Moeda das nossas reservas – fazer o quê? Note que não há fuga de capitais, não é como no passado. Se fosse fuga de capitais, a simples existência de reservas de US$ 207 bilhões controlaria. O diabo não é fuga, nem inflação, nem recessão… É irresponsabilidade, exportadores- especuladores”.

“As autoridades monetárias de todo o mundo têm que intervir rápido, antes que se forme a pior das bolhas, a de pânico, que é essa que está em curso. É preciso entender, porém, que a crise atual não é semelhante a de 1929. Claro, há elementos comuns, como o derretimento das ações e a fuga de ativos podres. Mas o dramático que a distingue daquele episódio dos anos 30 é o congelamento do crédito, fruto da desconfiança generalizada sobre o que vale o quê numa economia papeleira. A aversão ao risco gera a fuga dos ativos, todos querem se desfazer deles ao mesmo tempo e os bancos não emprestam a ninguém. Entope o sistema circulatório capitalista. Na crise de 1929 o crédito também refluiu mas isso se deu na esteira da desaceleração da atividade econômica, que foi brutal, caiu mais de 25% nos EUA. A recessão então é que diminuiu a demanda por financiamento. Hoje não. A economia não está em recessão – exceto talvez no Japão e engatinha na Europa. Mas é justamente esse paradoxo que mata o sistema: não existe crédito para a atividade econômica em curso. Pára tudo –e de repente: daí o pânico”

“O Brasil tem algumas vantagens importantes em relação a outros emergentes. E o governo Lula deverá saber usá-las. Primeiro, nós não somos exportadores de petróleo e metais – nesse sentido a crise pega a Venezuela e o Chile de frente. Vão ter problemas sérios porque as cotações despencam. Nós vendemos comida e isso deve se manter em bom nível. Segundo: temos, graças a Deus, três fortes bancos estatais, o que dá ao governo instrumentos para intervir fortemente no mercado. Mais ainda, temos pelo menos três grandes empresas públicas de peso, um trunfo que conseguimos salvar do ciclo de privatizações desfechado pelo governo anterior”.

“O que é preciso, portanto, é agir com rapidez e contundência. Desentupir o sistema de crédito. Por exemplo? O Banco Central deve obrigar os bancos a repassarem de fato os recursos liberados do compulsório para irrigar a economia (NR: uma das medidas já tomadas foi a redução do percentual de recolhimento de depósitos à vista no BC) . Eles têm que emprestar a quem precisa. O governo fez a sua parte, deu a cenoura para os grandes bancos repassarem liquidez. Se eles insistirem em segurar recursos o governo deve impor uma penalização forte sobre o volume retido. Já demos a cenoura – se a mula empaca é hora do stick (o porrete)”.

Por Redação – Carta Maior.

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As duas crises mais importantes do capitalismo nos últimos cem anos

A presente crise é muito grande, lembrando a de 1929. Isto não é casual. Diferentemente das crises intermitentes do capitalismo internacional, a atual está fortemente vinculada ao avanço neoliberal e a globalização sem precedentes das economias da face da terra. Jamais teria ganho esta dimensão sem estes fatos.

A crise de 1929 foi de superprodução industrial e agrária. A de 2008 está sendo, fundamentalmente, financeira. O que ocorreu em 1929 foi a bancarrota dos preços das mercadorias mais vendidas na época, levando ao fechamento de fábricas, falência de negócios rurais, desvalorização brutal das ações das empresas, diminuição das exportações e das importações. O café vindo do Brasil, em um exemplo dos restos coloniais das economias dos países pobres, permaneceu estocado nos armazéns dos maiores portos do país. Não havia mais quem o quisesse. A solução dada por Getúlio Vargas foi a de queimá-lo, buscando-se a revalorização do produto por meio da escassez produzida artificialmente. A questão da exportação cafeeira levou anos para ser resolvida e jamais voltou a ser do mesmo jeito.

O mercado liberal, das primeiras décadas do século XX, sem quaisquer travas, produzia sem considerar os limites dos potenciais compradores. A economia dos países capitalistas, que funcionava sem planejamento e auto-regulada pelas forças de mercado, ruiu em dias, levando anos para se recompor. Os efeitos foram diferentes de país para país. O denominador comum foi o aumento dos problemas sociais e da crise política, com desdobramentos específicos. O desemprego de milhões foi conhecido por toda parte, bem como a intensa agitação política, baseada na busca popular de alternativas.

O fato de a União Soviética ter passado pela crise sem maiores danos, a fortaleceu no cenário internacional, transformando o país em uma referência mundial frente à possibilidade de se viver sem os sobressaltos das crises inerentes ao capitalismo. É verdade que pouco se sabia, fora de lá, dos problemas internos do país dos soviets. Havia espaço para se confundir os ideais socialistas universais, com as políticas do primeiro país a viver a experiência duradoura de um regime comunista. As críticas já estavam postas, mas não com a força que se conformariam após a morte de Stalin em 1953.

Na Europa ocidental, a mesma primeira crise econômica mundial fortaleceu os regimes autoritários que construíram Estados fortes que se propunham manter e desenvolver o capitalismo, impedir o avanço do comunismo e organizar a economia com a intervenção estatal, na busca de se evitar as crises liberais. Foram criadas as condições para o desenvolvimento do nazifascismo e de suas variações. Seus líderes jamais foram contra a economia de mercado, ao contrário, tinham uma proposta para a mesma. Esta foi aceita por boa parte da burguesia de cada país que adotou o novo estilo de governar.

Não há registros de nota de uma oposição burguesa industrial sistemática ao nazismo alemão e ao fascismo italiano. Somente quando estes regimes entraram em crise, e que surgiu o apoio a iniciativas de reconstrução liberal. Os homens de negócio viram boas oportunidades na doutrina da morte, da escravidão dos diferentes e do aumento territorial forçado. Adaptaram-se e colaboraram. Nesta nova situação, decretou-se o fim dos Estados liberais, considerados lenientes com a especulação ‘judio-plutocrática’ do capital e, sobretudo, frágeis na luta contra os movimentos dos trabalhadores. Como se sabe, esses regimes foram apeados do poder em 1945, com exceção de alguns países que conseguiram mantê-los em situações excepcionais, notadamente a Espanha e Portugal.

Nos Estados Unidos, na era Roosevelt, experimentou-se o controle efetivo do Estado sobre a economia e a sua regulação baseada nos pressupostos do economista inglês Keynes. Foi inventada uma via entre a proposta socialista russa, a antiga gestão liberal e o nazifascismo. Na Europa ocidental, o keynesianismo demorou a ser implantado por efeito da II Guerra (1939-1945). Esta também originada na retomada capitalista pós-crise de 1929. Os enormes esforços de guerra recuperaram economias ainda abaladas pela crise e levaram o mundo a uma de suas maiores catástrofes modernas, com milhões de mortos e uma destruição física sem precedentes. Entretanto, muitas indústrias se reergueram com os imensos lucros auferidos. Algumas acabaram perdendo por efeito da destruição, outras estão aí até hoje, prósperas e lucrativas.

Após a Guerra, o capitalismo reconstruído na Europa seguiu de perto as idéias de planejamento e organização de Keynes, que, por sua vez, foi influenciado pela experiência dos planos qüinqüenais soviéticos. Estavam lançadas as bases para construção do Estados do Bem-Estar, onde as condições de vida das maiorias estariam mais ou menos salvaguardadas por medidas de controle e de assistência social. Nos países onde este sistema foi implantado, grande parte dos seus trabalhadores passou a ter, pouco a pouco, salários e garantias que jamais tinham conhecido.

Esta estratégia econômica e, ao mesmo tempo, política, funcionou muito bem, durante décadas, na Inglaterra, Alemanha Ocidental, França, países nórdicos, Canadá, Japão e outros. Vem sendo desmontada progressivamente, desde a década de 1980, com maior evidência após a queda real e simbólica do Muro de Berlim. Ainda assim, os países que montaram Estados do Bem-Estar ainda conservam – em crise progressiva – estruturas de proteção ao emprego, à saúde e à educação em níveis variados. Em cada país, forças se opõem tentando manter, diminuir ou destruir as conquistas das gerações anteriores. O que ficou difícil foi ampliá-las, no contexto das últimas décadas.

A crise do socialismo realmente existente, com todos os seus problemas, foi muito ruim para os Estados do Bem-Estar. Isto porque eles perderam uma de suas funções mais importantes, conter o avanço sócio-simbólico do comunismo internacional. A partir deste fato histórico, o que ainda sobrou dos mesmos sustenta-se, sobretudo, na força histórica do movimento social dos trabalhadores de cada país. Nas nações, onde o refluxo deste movimento é maior, como se observa na Itália atual, os prejuízos nas conquistas do passado também o são.

Em países de média industrialização e de economias agrárias de exportação, tais como o Brasil, o Estado do Bem-Estar jamais foi completamente montado. Houve experiências geridas pelo populismo de amortecer alguns aspectos da dura realidade da vida dos trabalhadores pobres. Entretanto, apesar de conquistas sindicais e de medidas estatais de proteção, a regra do pós-Guerra foi a da selvageria, isto é, a de dar algumas vantagens para segmentos, mantendo as maiorias excluídas do acesso às riquezas do país. O ciclo das ditaduras militares recentes, em funcionamento entre os anos sessenta e oitenta, baseadas no capitalismo de Estado, restringiu direitos e tentou conter com a força, qualquer modernização social. Na América Latina, conhece-se bem o problema de estratégias modernizadoras da economia decidida por cima, ao modo prussiano, sem alterar a brutalidade das estruturas sociais.

Nos EUA do pós-Guerra, os princípios keynesianos foram mantidos de modo mais relativo, importando mais o imenso desenvolvimento da economia do país que alcançou, com os resultados do último conflito mundial, a situação de potência hegemônica. De qualquer modo, foi dado ao povo norte-americano, excluindo-se as suas imensas ‘minorias’ mais espoliadas, um padrão de vida invejável, se comparado às possibilidades dos povos das nações menos ou não-industrializadas. É desta realidade que surgiu a idéia do sonho americano e o desejo de gente de toda parte migrar para lá. Este sonho, agora esfacelado pela história, deverá provocar imensas mudanças.

O mundo assolado pela atual crise é muito mais integrado do que em 1929. Naquela época, os efeitos da crise da bolsa de Nova York foram sentidos fortemente no Brasil, Hoje, qualquer alteração profunda ou mesmo superficial dos negócios nos países centrais da nova hierarquia global atinge a toda a periferia. Isto coloca a necessidade de se repensar a aceitação de tal integração. Se não é possível imaginar um mundo sem as trocas internacionais, não está determinado que estas trocas sejam guiadas de modo sempre desfavorável entre os centros e as periferias. Se isto ocorre, é que se esquece que a economia sempre acompanhou a política em seus meneios e decisões. Logo, a solução não pode ser estritamente econômica.

Falar sobre a crise de 2008 é, paradoxalmente, bastante difícil, isto porque qualquer previsão sobre o seu desdobramento é passível de se provar rapidamente como incorreta. Está-se, no presente momento, no olho do furacão. Ao contrário dos profetas e adivinhos da mídia, não há como saber que já se chegou ao fim do poço e quais serão os possíveis desdobramentos. Não há o distanciamento necessário para se saber o que irá de fato acontecer. Curiosamente, tem muita gente marcando data e descrevendo, sem medo de errar, o que sucederá. A verdade é que não existem parâmetros confiáveis para se prever com exatidão o que virá. Isto nunca impediu a futurologia, que consiste em uma das peças de retórica do universo midiático contemporâneo.

Do mirante disponível, pode-se perceber alguns aspectos e problemas que remetem, sobretudo, as crenças e teorias sobre as possibilidades da humanidade na atual fase da modernidade. Isto porque esta crise comprova a idéia de que a modernidade não terminou o seu ciclo. Continua-se a se viver sobre o seu signo, em uma nova etapa. A idéia de modernidade, anunciada no século XIX, jamais significou que se havia resolvido os problemas humanos. Entretanto, ela indicou que era possível imaginar um mundo sem fome, elevados níveis de ignorância, desemprego e injustiças sociais. A possibilidade moderna de se construir um mundo, assim, continua dada e a ser buscada pelas mulheres e os homens de boa vontade.

É preciso repetir que a história não acabou. Dizer que o passado continua assombrando o mundo dos vivos e que qualquer mudança deverá surgir da compreensão nítida do que se passou e se está passando. Nada poder-se-á propor de substantivo, a partir da insistência de se continuar o procedimento de achar que é tudo igual, que se trata de uma tabula rasa onde tudo se repete melancolicamente. As contradições da história continuam aí para quem quiser vê-las.

A crise de 2008 é diferente da de 1929. Ambas referem-se a etapas distintas da evolução do capitalismo. O que se superproduziu, presentemente, foi o crédito. O mundo das finanças, através de ‘mágicas’ monetárias, emprestou mais do que podia, pensando que de algum modo sempre lucraria. Os bancos ‘alavancaram’ o que tinham em caixa sem imaginar o fantasma da inadimplência e a possibilidade do calote. Os cidadãos, transformados em consumidores, não compreenderam que perderiam seus direitos de cidadania, se acreditassem piamente nos que lhes emprestavam. As mídias têm publicado os casos dramáticos dos que, nos EUA, saíram de suas casas para morar nos seus automóveis.

O sistema estimulou fortemente o consumo de bens duráveis, sempre os de mais difícil aquisição para as maiorias. A publicidade disse a todos que eles só seriam cidadãos completos, se tivessem acesso a estes bens. Na origem da crise, tem-se o endividamento de milhões numa ponta, e na outra o desemprego de outros tantos milhões, os juros e a ganância do sistema. É verdade que atrás da superprodução do crédito existia e ainda existe a superprodução de bens a serem escoados. Em um círculo vicioso, produziram-se mais casas nos EUA do que possíveis compradores, pelo menos dentro das regras financeiras do sistema.

Mas a crise não se resume apenas ao problema imobiliário norte-americano. Vários outros problemas estão em tela, normalmente ‘esquecidos’ pelas mídias. Os especuladores levantaram até as nuvens os preços das mercadorias (commodities) de maior curso internacional. Levaram o petróleo, o milho, o ferro, o café etc às alturas. Contaram com os financiamentos internacionais para sustentar preços absurdos, mudados da noite para o dia. Não lembraram que havia limites e que tais preços iriam acabar desabando, por ausência de compradores reais. Processo similar foi usado com os tais dos ativos financeiros. Especulou-se, por exemplo, com os preços das ações, acreditando que nem o céu é o limite. No passo seguinte, a velha lei da oferta e da procura se restabeleceu, gerando o atual caos, representado, como em 1929, pela crise das bolsas de valores.

Na década de 1920, o protagonismo do sistema dos países centrais era dado à indústria. Nos países mais ricos, vivia-se em pleno capitalismo industrial. Hoje, as cartas são dadas pelos bancos. A intensa financeirização das economias está na raiz dos problemas vividos. As decisões mais significativas da política econômica vêm sendo tomadas pelos banqueiros, que, em várias situações, são também os donos diretos e indiretos da indústria e dos negócios agro-extrativos. Ao pensar nas estruturas produtivas, a partir do dinheiro, os banqueiros facilmente se alienam das bases concretas das riquezas. Esquecem que a mercadoria dinheiro tem uma natureza especial. Como serve para a troca, tem o seu valor determinado pelo conjunto dos valores das demais mercadorias.

A presente crise é muito grande, lembrando a de 1929. Isto não é casual. Diferentemente das crises intermitentes do capitalismo internacional, a atual está fortemente vinculada ao avanço neoliberal e a globalização sem precedentes das economias da face da terra. Jamais teria ganho esta dimensão sem estes fatos. As práticas neoliberais estão por trás de tudo o que está ocorrendo. Urge a criação de defesas contra as mesmas. O tipo de globalização financeira experimentada pelo mundo contemporâneo e a implantação de medidas autoregulatórias dos mercados por toda parte permitem que se compreenda com esta crise vem se espalhando tão facilmente. A construção de diques de proteção consiste em uma das alternativas para proteger países de maiores danos.

Obviamente, inúmeras medidas de Estado podem diminuir os efeitos desta crise. Entretanto, o mais importante é a compreensão dos seus significados e se trabalhar para a construção de um mundo mais justo e equilibrado. A razão instrumental do capital não é capaz de trazer a felicidade para humanidade. Se nada for feito, restará esperar a próxima crise com todo o sofrimento potencializado pelas suas características, como só começamos a assistir.Talvez seja necessário acreditar que os atuais fatos não passarão em branco nas consciências e nos corações do que há de melhor na espécie humana.

Por Luís Carlos Lopes é professor.

ARTIGO COLHIDO NO SÍTIO www.cartamaior.com.br.

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Depois de Berlim, Nova York

Gostaria que os tempos fossem bem menos propícios para os especuladores do que para os economistas. Convém escolher com cuidado os vilões. Creio que a lista tenha de começar pelos grandes sacerdotes da religião do deus mercado. Está na moda dizer que os economistas falharam sinistramente nas suas análises. Nem todos.

Indispensável é reservar um capítulo especial para os jornalistas que no Brasil deitam falação sobre economia no vídeo e nas páginas impressas. Nos últimos anos atingiram um grau de prosopopéia nunca dantes navegado. CartaCapital orgulha-se de veicular nesta edição uma sugestão de Nirlando Beirão na sua seção Estilo: que as senhoras e os senhores acima tirem longas férias. E por que não, digo eu, aposentá-los?

Há os vigários e há quem caiu em seu conto. A crise pune os crédulos com ferocidade. Sabemos de antemão que muitos entre os vendedores de fumaça sairão incólumes da monumental enrascada. Como indivíduos, ao menos. E assim caminha a humanidade. Resta o fato, contudo: mais um muro ruiu. O outro muro. Wall em língua inglesa, idioma do império.

Quando o Muro de Berlim caiu debaixo das picaretas libertadoras, há 19 anos, proclamou-se o fracasso do chamado socialismo real. Agora cai o wall nova-iorquino e se busca, em desespero, a reestruturação de um Estado forte depois da ola global das privatizações. Quem fracassa no caso? No mínimo, o capitalismo neoliberal.

Na queda de Berlim, soçobra a URSS. E na queda de Nova York? O império de Tio Sam, descalço, exibe os pés de argila. Dezenove anos atrás não faltou quem, enquanto esfregava as mãos de puro contentamento, decretasse o fim das ideologias, como se não houvesse mais espaço para as idéias. E agora, que dizer? Que o neoliberalismo foi jogada do acaso, despida do apoio de qualquer idéia? Se for assim, concluiremos que resultou de uma soberba insensatez. O que, de alguma forma, faz algum sentido. O monstro criado virou-se contra os criadores. Talvez não passassem de aprendizes de mágico: conhecem o abracadabra desencadeador, mas não sabem pôr fim à magia desastrada.

Falemos do pretenso fim da ideologia. Quem sustenta mostra seus limites. Gostaria de dizer, porém, que antes ainda da idéia vem a ética. É por aí que se abre a chance de sair da selva e escapar às suas leis. É possível o ser ético em um mundo que acentua as desigualdades? Ou aceitar a miséria, a doença, a fome, a degradação humana como coisas da vida?

Cada qual faça suas escolhas ideológicas. Para ficar no campo da economia política, que seja marxista, keynesiano, schumpeteriano etc. etc., desde que o propósito não se limite à garantia da liberdade e busque a igualdade sem o temor do anátema dos donos do poder, que o pretenderá subversivo, terrorista, comunista e por aí afora.

A liberdade sem igualdade tem valor escasso e limites escancarados. Quando, no caso do endeusamento do mercado, não se torna, automaticamente, fator decisivo da desigualdade. Em detrimento do gênero humano em peso. A lição nunca foi tão atual.

Por Mino Carta.

ARTIGO COLHIDO NO SÍTIO www.cartacapital.com.br.

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