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Por 12:08 Saúde do Trabalhador

SAÚDE DO TRABALHADOR EM 1º LUGAR

Entrevista com Maria Maeno
Maria Maeno: Coordena o Centro de Referência em Saúde do Trabalhador da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (Cerest/SP).
Maria se debruça sobre a saúde do trabalhador desde que terminou sua residência, em 1987, feita no Hospital das Clínicas, depois de se formar, em 1982, na Universidade de São Paulo (USP).
A médica começou a trabalhar na Secretaria de Estado da Saúde quando o órgão começava a descentralizar o atendimento, passando algumas atribuições aos municípios.
Com isso, Maria fez parte de um projeto pioneiro na unidade da zona norte, na capital paulista, voltado à reabilitação do trabalhador. Dois anos depois, em 1989, a experiência rendeu um livro com sua co-autoria (Programa de Saúde dos Trabalhadores. A experiência da Zona Norte: uma alternativa em Saúde Pública). “Em suma, o recado do livro é o seguinte: a saúde do trabalhador deve fazer parte das funções da saúde pública e é possível fazer desse jeito.
Com o Cerest, foi possível inserir a saúde do trabalhador dentro do SUS e construir alguns modelos de intervenção. Maria foi responsável pelo programa de tratamento e reabilitação de Lesões por Esforços Repetitivos (LER) ou Distúrbios Ósteo-Musculares Relacionados ao Trabalho (Dort), modelo no País inteiro. “É um programa de quatro meses, três vezes por semana, multiprofissional. Nós formamos profissionais para que isso aconteça em qualquer lugar do País. Há atuação de terapeuta ocupacional, fisioterapeuta, psicólogo, médico e uso de terapias como acupuntura. Ainda não está disseminado de forma ideal, mas a saúde do trabalhador contribuiu muito para que houvesse uma democratização do acesso a essas práticas”, declara. “O paciente foi acostumado a sempre ouvir falar em remédio e cirurgia, mas remédios não vão curá-lo. Ele precisa ser educado para se cuidar fisica e psicologicamente, e isso leva tempo. É um programa terapêutico e de educação também”, completa.
Bastante valorizado entre quem trabalha na área, essa iniciativa resulta em aulas, participação em congressos, artigos e outras publicações. “Nas LER, nós é que conseguimos, durante todos esses anos, levantar o problema e dizer que não é trocando de móveis que ele será resolvido, e sim atacando a organização das empresas. Apontar isso desmistifica que, se o banco X trocar o mobiliário, vai acabar com as lesões por esforços repetitivos. Ou desmistifica em parte, porque eles são muito fortes em marketing, mas é um contraponto a essas idéias”, diz.
A médica considera seu trabalho no Cerest novo e diferente, de construção de uma política de saúde do trabalhador. É preciso interpretar a legislação e traçar políticas e muita habilidade para conversar com os diversos setores envolvidos – empresas, Previdência Social, Ministério do Trabalho, a Saúde, o Meio-Ambiente, o Sistema de Saúde, os serviços privados de saúde, o trabalhador, os sindicatos, as ONGs – para construir essa política. “A preservação da saúde do trabalhador é função da sociedade, portanto, temos de organizar muitos atores para que isso aconteça”, defende. “Trabalhadores somos todos nós, não me refiro só aos que têm carteira assinada. É qualquer pessoa que trabalhe”.
Além de um livro de sua co-autoria sobre uma experiência pioneira na zona norte com trabalhadores, a médica é autora de um artigo dentro do livro LER, Lesões por Esforços Repetitivos, de 1995. “Ela é uma das maiores especialistas em doenças do trabalho”, afirma o médico do Trabalho, Koshiro Otani. Casada com um engenheiro, ela tem dois filhos, de 7 e 5 anos.
Maria nasceu em Assaí (PR) e logo sua família se mudou para São Paulo. A sua especialização foi em moléstias infecciosas, mas a saúde do trabalhador lhe pareceu mais desafiadora, pelo fato de ser pouco estudada. “Queremos que o fator trabalho, na rede pública de saúde, seja considerado um fator tanto de adoecimento como de saúde também. Existem trabalhos com riscos conhecidíssimos que temos condições de evitar para que não haja adoecimentos”, defende.
A medicina do trabalho, tradicionalmente, no Brasil e em vários outros países, sempre foi incumbência do Ministério do Trabalho. “A saúde no trabalho é uma parte dessa relação entre empregado e empregador. Só que, desde 1988, a Constituição brasileira mudou isso. Ela colocou a Saúde como responsável também. Agora é o contrário, dentro da Saúde geral, você vê o trabalho também como um fator de adoecimento. E nós estamos viabilizando isso”, completa.
Segundo dados do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), as Lesões por Esforços Repetitivos ou Distúrbios Ósteo-Musculares Relacionados ao Trabalho (LER/DORT) são a segunda maior causa de afastamento de trabalhadores. No Sudeste, 1 em cada 100 trabalhadores tem LER, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). Os números, entretanto, não revelam a realidade, conforme entrevista dada por Maria Maeno ao NB.
Texto: Denise Yamashita/NB
As Ler/Dort vêm sempre acompanhadas de um distúrbio psicológico?
Os fatores que concorrem para que se tenha lesões por esforços repetitivos são vários. Não é só o mobiliário. Ele também, mas essa co-brança por produtividade e a falta de flexibili-dade de produção no trabalho é que fazem a pessoa adoecer.
Ela trabalha com movimentos repetitivos, sempre de uma forma tensa. Isso faz com que se adoeça do ponto de vista psíquico – ela fica frustrada, deprimida, muitas vezes com vonta-de de fazer outras coisas – e, ao mesmo tem-po, a pessoa tem um acometimento físico. Muitas vezes, esse acometimento psíquico é posterior ao físico.
A pessoa está muito bem, contente, mas trabalha demais. Então, há uma sobrecarga do sistema músculo-esquelético e desenvolve-se uma tendinite, começa a doer tudo.
A pessoa já não consegue dar conta daquilo que antes conseguia.
Uma pessoa com LER não sabe quando vai estar bem. Há uma grande possibilidade de não estar bem, com dor, limitações.
Que empresa espera uma pessoa ficar seis, oito meses ou até um ano afastado, se tratando?
O tempo médio de afastamento por LER de bancários e metalúrgicos é de um a dois anos. Quando essa pessoa volta ao trabalho, com limitação – porque ela não se recupera total-mente, se for um caso crônico -, pode não ter mais seu espaço na empresa.
Houve alguma mudança nas leis ou no comportamento das empresas que tenha beneficiado o trabalhador?
Sim, muito. Antigamente, as pessoas tinham LER, mas ficavam com um diagnóstico a escla-recer, então elas não tinham direito nenhum. Em 1987, houve a primeira norma que reco-nheceu a LER no Brasil como doença ocupacional. Desde então, houve várias conquistas.
Nós hoje temos algumas leis que protegem os trabalhadores. Agora, o cumprimento das leis é difícil, porque as empresas muitas vezes não o fazem. Elas são responsáveis pela saúde de seus trabalhadores, ou seja, se o trabalhador adoecer por causa do trabalho, teoricamente a empresa deveria se responsabilizar por tudo. Na prática, isso não acontece porque há uma fragilidade das instituições e do tecido da sociedade, que permite às empresas se livrarem disso sem, praticamente, nenhuma repercussão.
Qual seria a recomendação para quem está ansioso para entrar no mercado de trabalho?
A pessoa tem de perceber se existe o mínimo respeito ao trabalhador na empresa onde ela vai buscar um emprego, que haja uma consideração pelo ser humano e suas necessidades. Alguns podem dizer: “ah, isso não dá, eu não posso escolher”. Entretanto, quando se é jovem, a possibilidade de escolher é um pouco maior. É importante considerar isso, além de levar em conta uma organização e solidariedade com o colega pa-ra que exista uma atitude mais unificada de combate a acidentes e adoecimento no traba-lho. Há mais possibilidades, as pessoas têm de se articular mais, se organizar mais. Estou pensando em um projeto para mudar as con-dições do sistema bancário, mesmo dentro de uma cultura de competitividade entre os ban-cos. É preciso um acordo geral para ser cum-prido. E, para isso, a pressão e a indignação da opinião pública contra os acidentes de trabalho é muito necessária.
É característica só do Brasil essa mentalidade de as empresas, na prática, não se responsa-bilizarem pela saúde dos funcionários?
Na prática e na legislação nós temos várias coisas que protegem, mas acho que no Brasil a coisa é mais grave. Claro que, comparado com outros países latino-americanos, não, mas se compararmos com a Europa, a situa-ção é muito mais grave. A terceirização existe no mundo inteiro, porém ela tem regras, exce-to no Brasil. Aqui, a empresa que terceiriza não se responsabiliza em nada pelo terceiri-zado. Essa operação é feita de forma irregular e faz com que o trabalhador perca direitos adquiridos. No resto do mundo, não é uma maravilha, mas em países escandinavos, a saúde do trabalhador é uma questão nacional. No Brasil, de fato, você não vê mídia interessa-da nisso, o próprio governo trata o assunto ainda de forma marginal. A sociedade ainda não está envolvida na defesa dos trabalhadores.
Os distúrbios ósteo-musculares são uma doença epidêmica, ou já existe um controle maior em outros países?
No Japão, por exemplo, houve uma epidemia que assustou o governo na década de 70. O país criou um comitê ligado ao Ministério do Trabalho junto com universidades para pesqui-sar, elaborar regras e conseguiu mudar uma série de coisas. O resultado foram formas dife-rentes de organização de trabalho. Por outro lado, terceirizaram muita coisa. Eles começam a importar mão-de-obra para fazer trabalhos pesados que não são feitos para os japone-ses. É uma forma de um país de primeiro mun-do resolver seu problema e criar problemas para os países subdesenvolvidos. Na Austrá-lia, também houve uma epidemia enorme e eles a resolveram mudando o sistema de segu-ro social. No Brasil, o fenômeno acontece desde 93. As LER foram adquirindo importân-cia e atingiram um pico em 97, mas qual univer-sidade estuda a LER? Existem várias teses isoladas, mas não há uma linha de pesquisa, uma linha política para isso.
Mas e a porcentagem que é divulgada?
Existem os dados da Previdência Social, que abrangem menos de 1/3 da população econo-micamente ativa. Todos os cortadores de cana que têm LER, todos os funcionários públicos e empregadas domésticas estão fora das esta-tísticas. Quem está dentro? Bancários, indus-triários, gente com carteira assinada e que faz parte do seguro de acidentes de trabalho. Fora isso, há outros mecanismos da Previ-dência Social que diminuem mais ainda esse número, porque passa por um crivo da perícia para reconhecer que é um acidente de traba-lho. Há uma subnotificação e um sub-reconhecimento. Estima-se uma subnotificação de, no mínimo, 80% das doenças relacionadas a trabalho no Brasil. Só 20% são reconheci-das. E há condições de se fazer uma pesquisa, mas é preciso dinheiro e disponibilidade.
A LER está associada à vida moderna?
De certa forma, está. Existem vários estudos de pessoas que discutiam a organização do trabalho, na década de 70, afirmando que, quando tivéssemos avanços tecnológicos, o homem iria viver melhor, porque ele teria o computador no lugar da máquina de escrever, uma forma de comunicação muito mais fácil que um telefone, um robô para fazer trabalhos mais mecânicos. O que se vê hoje é uma comunicação on-line com o mundo inteiro, mas isso não reverteu em benefício à saúde dos trabalhadores. Resultou em uma concentração de renda distanciando ainda mais os países desenvolvidos em relação aos subdesenvolvi-dos e, dentro dos países, dos mais ricos em relação à maioria pobre. Então, percebe-se que a vida moderna está associada a isso, é uma agudização.
A vida moderna veio acompanhada de grandes avanços bons, mas ao mesmo tempo, não houve uma mudança nas relações sociais permitindo que a maioria usufruísse desses benefícios.
Você disse que é preciso uma política para fazer acontecer as coisas. Existe alguma atuação pessoal sua nisso?
Eu sou uma pessoa que preza a parte técnica, leio muito, tento me atualizar ao máximo. Agora, é importante também colocar esse estudo e conhecimento a serviço de alguém. Eu coloquei a serviço da saúde pública. Há pessoas competentes, mas vejo, hoje, muitos profissionais que acabam jogando no lixo o que aprenderam e estudaram. Eles acabam servindo como funcionários, fazendo prevale-cer a visão da empresa sobre os interesses dos trabalhadores. Se não fosse assim, as doenças estariam notificadas. Não é possível que eu, de fora, faça mais diagnósticos de tra-balhadores doentes de uma empresa que o próprio médico contratado por ela. Eu não sou mais competente, eu apenas quero ver e ele não. A diferença é essa. A política que eu digo é a necessidade de o Estado ter uma política de enfrentamento desses conflitos. Acho que nós, da saúde, contribuímos com o saber técnico.
Existe um envolvimento seu além da dedicação técnica?
Partidariamente, não. Entretanto, politicamen-te, nós sempre temos reuniões com sindica-tos, empregadores. Por exemplo, houve uma reivindicação de um sistema prisional, dizendo que os funcionários estavam “pirando”. E estavam mesmo, porque batem e torturam os presos e recebem ameaças deles. São vítimas e algozes ao mesmo tempo. Isso é o sistema que tem de mudar, mas nós podemos fazer um diagnóstico. Essa é uma parte técnica. Podemos afirmar cientificamente, após um es-tudo, que aqueles trabalhadores estavam adoecendo. O que o governador e o sindicato vão fazer com isso, é uma outra história, eles têm de negociar entre si.
Quais são os desafios para quem trabalha na área de saúde do trabalhador?
O grande desafio nosso é conseguir que a Saúde, o Trabalho, a Previdência Social e o Meio Ambiente tenham uma política única, porque uma pasta completa a outra. Existe hoje vontade do governo federal de fazer isso e, aqui no Estado de São Paulo, nós consegui-mos formar o Grupo Executivo Interministerial de Saúde do Trabalhador (Geisat). Nós nunca tínhamos conseguido fazer isso, uma política de governo, uma ação unificada, otimizada e eficaz. Outra coisa, enquanto as empresas ti-verem medo de se expor porque mataram ou alguém adoeceu no trabalho, essa situação vai continuar. Uma coisa que a gente sempre fala: o balancete da empresa aparece em todos os jornais no final do ano. O balancete da saúde do trabalhador deveria aparecer também. Quantos adoecidos, quantos benefícios, quantos foram afastados por doença.

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SAÚDE DO TRABALHADOR EM 1º LUGAR

Entrevista com Maria Maeno

Maria Maeno: Coordena o Centro de Referência em Saúde do Trabalhador da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (Cerest/SP).

Maria se debruça sobre a saúde do trabalhador desde que terminou sua residência, em 1987, feita no Hospital das Clínicas, depois de se formar, em 1982, na Universidade de São Paulo (USP).

A médica começou a trabalhar na Secretaria de Estado da Saúde quando o órgão começava a descentralizar o atendimento, passando algumas atribuições aos municípios.

Com isso, Maria fez parte de um projeto pioneiro na unidade da zona norte, na capital paulista, voltado à reabilitação do trabalhador. Dois anos depois, em 1989, a experiência rendeu um livro com sua co-autoria (Programa de Saúde dos Trabalhadores. A experiência da Zona Norte: uma alternativa em Saúde Pública). “Em suma, o recado do livro é o seguinte: a saúde do trabalhador deve fazer parte das funções da saúde pública e é possível fazer desse jeito.

Com o Cerest, foi possível inserir a saúde do trabalhador dentro do SUS e construir alguns modelos de intervenção. Maria foi responsável pelo programa de tratamento e reabilitação de Lesões por Esforços Repetitivos (LER) ou Distúrbios Ósteo-Musculares Relacionados ao Trabalho (Dort), modelo no País inteiro. “É um programa de quatro meses, três vezes por semana, multiprofissional. Nós formamos profissionais para que isso aconteça em qualquer lugar do País. Há atuação de terapeuta ocupacional, fisioterapeuta, psicólogo, médico e uso de terapias como acupuntura. Ainda não está disseminado de forma ideal, mas a saúde do trabalhador contribuiu muito para que houvesse uma democratização do acesso a essas práticas”, declara. “O paciente foi acostumado a sempre ouvir falar em remédio e cirurgia, mas remédios não vão curá-lo. Ele precisa ser educado para se cuidar fisica e psicologicamente, e isso leva tempo. É um programa terapêutico e de educação também”, completa.

Bastante valorizado entre quem trabalha na área, essa iniciativa resulta em aulas, participação em congressos, artigos e outras publicações. “Nas LER, nós é que conseguimos, durante todos esses anos, levantar o problema e dizer que não é trocando de móveis que ele será resolvido, e sim atacando a organização das empresas. Apontar isso desmistifica que, se o banco X trocar o mobiliário, vai acabar com as lesões por esforços repetitivos. Ou desmistifica em parte, porque eles são muito fortes em marketing, mas é um contraponto a essas idéias”, diz.

A médica considera seu trabalho no Cerest novo e diferente, de construção de uma política de saúde do trabalhador. É preciso interpretar a legislação e traçar políticas e muita habilidade para conversar com os diversos setores envolvidos – empresas, Previdência Social, Ministério do Trabalho, a Saúde, o Meio-Ambiente, o Sistema de Saúde, os serviços privados de saúde, o trabalhador, os sindicatos, as ONGs – para construir essa política. “A preservação da saúde do trabalhador é função da sociedade, portanto, temos de organizar muitos atores para que isso aconteça”, defende. “Trabalhadores somos todos nós, não me refiro só aos que têm carteira assinada. É qualquer pessoa que trabalhe”.

Além de um livro de sua co-autoria sobre uma experiência pioneira na zona norte com trabalhadores, a médica é autora de um artigo dentro do livro LER, Lesões por Esforços Repetitivos, de 1995. “Ela é uma das maiores especialistas em doenças do trabalho”, afirma o médico do Trabalho, Koshiro Otani. Casada com um engenheiro, ela tem dois filhos, de 7 e 5 anos.

Maria nasceu em Assaí (PR) e logo sua família se mudou para São Paulo. A sua especialização foi em moléstias infecciosas, mas a saúde do trabalhador lhe pareceu mais desafiadora, pelo fato de ser pouco estudada. “Queremos que o fator trabalho, na rede pública de saúde, seja considerado um fator tanto de adoecimento como de saúde também. Existem trabalhos com riscos conhecidíssimos que temos condições de evitar para que não haja adoecimentos”, defende.

A medicina do trabalho, tradicionalmente, no Brasil e em vários outros países, sempre foi incumbência do Ministério do Trabalho. “A saúde no trabalho é uma parte dessa relação entre empregado e empregador. Só que, desde 1988, a Constituição brasileira mudou isso. Ela colocou a Saúde como responsável também. Agora é o contrário, dentro da Saúde geral, você vê o trabalho também como um fator de adoecimento. E nós estamos viabilizando isso”, completa.

Segundo dados do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), as Lesões por Esforços Repetitivos ou Distúrbios Ósteo-Musculares Relacionados ao Trabalho (LER/DORT) são a segunda maior causa de afastamento de trabalhadores. No Sudeste, 1 em cada 100 trabalhadores tem LER, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). Os números, entretanto, não revelam a realidade, conforme entrevista dada por Maria Maeno ao NB.

Texto: Denise Yamashita/NB

As Ler/Dort vêm sempre acompanhadas de um distúrbio psicológico?

Os fatores que concorrem para que se tenha lesões por esforços repetitivos são vários. Não é só o mobiliário. Ele também, mas essa co-brança por produtividade e a falta de flexibili-dade de produção no trabalho é que fazem a pessoa adoecer.
Ela trabalha com movimentos repetitivos, sempre de uma forma tensa. Isso faz com que se adoeça do ponto de vista psíquico – ela fica frustrada, deprimida, muitas vezes com vonta-de de fazer outras coisas – e, ao mesmo tem-po, a pessoa tem um acometimento físico. Muitas vezes, esse acometimento psíquico é posterior ao físico.
A pessoa está muito bem, contente, mas trabalha demais. Então, há uma sobrecarga do sistema músculo-esquelético e desenvolve-se uma tendinite, começa a doer tudo.
A pessoa já não consegue dar conta daquilo que antes conseguia.
Uma pessoa com LER não sabe quando vai estar bem. Há uma grande possibilidade de não estar bem, com dor, limitações.
Que empresa espera uma pessoa ficar seis, oito meses ou até um ano afastado, se tratando?
O tempo médio de afastamento por LER de bancários e metalúrgicos é de um a dois anos. Quando essa pessoa volta ao trabalho, com limitação – porque ela não se recupera total-mente, se for um caso crônico -, pode não ter mais seu espaço na empresa.

Houve alguma mudança nas leis ou no comportamento das empresas que tenha beneficiado o trabalhador?

Sim, muito. Antigamente, as pessoas tinham LER, mas ficavam com um diagnóstico a escla-recer, então elas não tinham direito nenhum. Em 1987, houve a primeira norma que reco-nheceu a LER no Brasil como doença ocupacional. Desde então, houve várias conquistas.
Nós hoje temos algumas leis que protegem os trabalhadores. Agora, o cumprimento das leis é difícil, porque as empresas muitas vezes não o fazem. Elas são responsáveis pela saúde de seus trabalhadores, ou seja, se o trabalhador adoecer por causa do trabalho, teoricamente a empresa deveria se responsabilizar por tudo. Na prática, isso não acontece porque há uma fragilidade das instituições e do tecido da sociedade, que permite às empresas se livrarem disso sem, praticamente, nenhuma repercussão.

Qual seria a recomendação para quem está ansioso para entrar no mercado de trabalho?

A pessoa tem de perceber se existe o mínimo respeito ao trabalhador na empresa onde ela vai buscar um emprego, que haja uma consideração pelo ser humano e suas necessidades. Alguns podem dizer: “ah, isso não dá, eu não posso escolher”. Entretanto, quando se é jovem, a possibilidade de escolher é um pouco maior. É importante considerar isso, além de levar em conta uma organização e solidariedade com o colega pa-ra que exista uma atitude mais unificada de combate a acidentes e adoecimento no traba-lho. Há mais possibilidades, as pessoas têm de se articular mais, se organizar mais. Estou pensando em um projeto para mudar as con-dições do sistema bancário, mesmo dentro de uma cultura de competitividade entre os ban-cos. É preciso um acordo geral para ser cum-prido. E, para isso, a pressão e a indignação da opinião pública contra os acidentes de trabalho é muito necessária.

É característica só do Brasil essa mentalidade de as empresas, na prática, não se responsa-bilizarem pela saúde dos funcionários?

Na prática e na legislação nós temos várias coisas que protegem, mas acho que no Brasil a coisa é mais grave. Claro que, comparado com outros países latino-americanos, não, mas se compararmos com a Europa, a situa-ção é muito mais grave. A terceirização existe no mundo inteiro, porém ela tem regras, exce-to no Brasil. Aqui, a empresa que terceiriza não se responsabiliza em nada pelo terceiri-zado. Essa operação é feita de forma irregular e faz com que o trabalhador perca direitos adquiridos. No resto do mundo, não é uma maravilha, mas em países escandinavos, a saúde do trabalhador é uma questão nacional. No Brasil, de fato, você não vê mídia interessa-da nisso, o próprio governo trata o assunto ainda de forma marginal. A sociedade ainda não está envolvida na defesa dos trabalhadores.

Os distúrbios ósteo-musculares são uma doença epidêmica, ou já existe um controle maior em outros países?

No Japão, por exemplo, houve uma epidemia que assustou o governo na década de 70. O país criou um comitê ligado ao Ministério do Trabalho junto com universidades para pesqui-sar, elaborar regras e conseguiu mudar uma série de coisas. O resultado foram formas dife-rentes de organização de trabalho. Por outro lado, terceirizaram muita coisa. Eles começam a importar mão-de-obra para fazer trabalhos pesados que não são feitos para os japone-ses. É uma forma de um país de primeiro mun-do resolver seu problema e criar problemas para os países subdesenvolvidos. Na Austrá-lia, também houve uma epidemia enorme e eles a resolveram mudando o sistema de segu-ro social. No Brasil, o fenômeno acontece desde 93. As LER foram adquirindo importân-cia e atingiram um pico em 97, mas qual univer-sidade estuda a LER? Existem várias teses isoladas, mas não há uma linha de pesquisa, uma linha política para isso.

Mas e a porcentagem que é divulgada?

Existem os dados da Previdência Social, que abrangem menos de 1/3 da população econo-micamente ativa. Todos os cortadores de cana que têm LER, todos os funcionários públicos e empregadas domésticas estão fora das esta-tísticas. Quem está dentro? Bancários, indus-triários, gente com carteira assinada e que faz parte do seguro de acidentes de trabalho. Fora isso, há outros mecanismos da Previ-dência Social que diminuem mais ainda esse número, porque passa por um crivo da perícia para reconhecer que é um acidente de traba-lho. Há uma subnotificação e um sub-reconhecimento. Estima-se uma subnotificação de, no mínimo, 80% das doenças relacionadas a trabalho no Brasil. Só 20% são reconheci-das. E há condições de se fazer uma pesquisa, mas é preciso dinheiro e disponibilidade.

A LER está associada à vida moderna?
De certa forma, está. Existem vários estudos de pessoas que discutiam a organização do trabalho, na década de 70, afirmando que, quando tivéssemos avanços tecnológicos, o homem iria viver melhor, porque ele teria o computador no lugar da máquina de escrever, uma forma de comunicação muito mais fácil que um telefone, um robô para fazer trabalhos mais mecânicos. O que se vê hoje é uma comunicação on-line com o mundo inteiro, mas isso não reverteu em benefício à saúde dos trabalhadores. Resultou em uma concentração de renda distanciando ainda mais os países desenvolvidos em relação aos subdesenvolvi-dos e, dentro dos países, dos mais ricos em relação à maioria pobre. Então, percebe-se que a vida moderna está associada a isso, é uma agudização.
A vida moderna veio acompanhada de grandes avanços bons, mas ao mesmo tempo, não houve uma mudança nas relações sociais permitindo que a maioria usufruísse desses benefícios.

Você disse que é preciso uma política para fazer acontecer as coisas. Existe alguma atuação pessoal sua nisso?

Eu sou uma pessoa que preza a parte técnica, leio muito, tento me atualizar ao máximo. Agora, é importante também colocar esse estudo e conhecimento a serviço de alguém. Eu coloquei a serviço da saúde pública. Há pessoas competentes, mas vejo, hoje, muitos profissionais que acabam jogando no lixo o que aprenderam e estudaram. Eles acabam servindo como funcionários, fazendo prevale-cer a visão da empresa sobre os interesses dos trabalhadores. Se não fosse assim, as doenças estariam notificadas. Não é possível que eu, de fora, faça mais diagnósticos de tra-balhadores doentes de uma empresa que o próprio médico contratado por ela. Eu não sou mais competente, eu apenas quero ver e ele não. A diferença é essa. A política que eu digo é a necessidade de o Estado ter uma política de enfrentamento desses conflitos. Acho que nós, da saúde, contribuímos com o saber técnico.

Existe um envolvimento seu além da dedicação técnica?

Partidariamente, não. Entretanto, politicamen-te, nós sempre temos reuniões com sindica-tos, empregadores. Por exemplo, houve uma reivindicação de um sistema prisional, dizendo que os funcionários estavam “pirando”. E estavam mesmo, porque batem e torturam os presos e recebem ameaças deles. São vítimas e algozes ao mesmo tempo. Isso é o sistema que tem de mudar, mas nós podemos fazer um diagnóstico. Essa é uma parte técnica. Podemos afirmar cientificamente, após um es-tudo, que aqueles trabalhadores estavam adoecendo. O que o governador e o sindicato vão fazer com isso, é uma outra história, eles têm de negociar entre si.

Quais são os desafios para quem trabalha na área de saúde do trabalhador?

O grande desafio nosso é conseguir que a Saúde, o Trabalho, a Previdência Social e o Meio Ambiente tenham uma política única, porque uma pasta completa a outra. Existe hoje vontade do governo federal de fazer isso e, aqui no Estado de São Paulo, nós consegui-mos formar o Grupo Executivo Interministerial de Saúde do Trabalhador (Geisat). Nós nunca tínhamos conseguido fazer isso, uma política de governo, uma ação unificada, otimizada e eficaz. Outra coisa, enquanto as empresas ti-verem medo de se expor porque mataram ou alguém adoeceu no trabalho, essa situação vai continuar. Uma coisa que a gente sempre fala: o balancete da empresa aparece em todos os jornais no final do ano. O balancete da saúde do trabalhador deveria aparecer também. Quantos adoecidos, quantos benefícios, quantos foram afastados por doença.

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