Antes da posse, presidente quer traçar o caminho para desobstruir três gargalos do crescimento: fiscal, da infra-estrutura e político.
BRASÍLIA – Ao longo do primeiro mandato, o presidente Lula comandou o país mais como um mediador de conflitos do que como um orientador de rumos. Primeiro, porque o seu projeto prioritário era concluir o mandato. Mostrar que um operário nascido em família muito pobre, curtido na luta dos movimentos sociais e pelos ideais progressistas, poderia governar o Brasil sem envergonhar seu povo. Segundo, porque assumiu o governo em momento de crise, quando qualquer movimento em falso poderia desorganizar novamente toda a economia do país. Terceiro, porque as forças políticas que o apoiaram não obtiveram maioria no Parlamento e seria necessário compor alianças com grupos conservadores para assegurar a governabilidade.
Assim, o presidente atuava mais como um árbitro das disputas internas do governo, que não foram poucas. Desde as disputas por salas, mesas e cadeiras, que formam a geografia do poder, até as disputas em torno de teses macroeconômicas, que amparam as decisões sobre os rumos do desenvolvimento do país. Além, é claro, das disputas políticas, incitadas por ambições, vaidades, rivalidades e rancores. Com erros e acertos, o presidente superou a primeira fase, como se fosse um curso para governante, nos moldes do curso para torneiro mecânico que ele fez no Senai, ou as Caravanas da Cidadania, para conhecer o país.
Desde o ano passado, quando a crise política e o aperto monetário corroíam sua popularidade com grande velocidade, o presidente mudou a postura. Deixou de ser árbitro de decisões alheias, que, na prática, tinha apenas o poder de veto, para dar o rumo de seu governo. Não seria mais apenas decidir o que vinha pronto dos ministérios, mas ordenar o desenvolvimento de projetos e programas e cobrar soluções sobre problemas que eram obstáculo aos seus objetivos.
Na visão se seus auxiliares, isso ficou muito claro quando Lula assumiu o comando da Junta Orçamentária do governo. Antes, ele era informado sobre o resultado das discussões e decidia apenas sobre os conflitos restantes. Na elaboração do orçamento de 2006, acompanhou as demoradas reuniões da Junta, opinando sobre cada programa.
O presidente que saiu das urnas para mais quatro anos de mandato com 58 milhões de votos é um governante mais determinado, mais experiente e mais impaciente. Ele não precisa provar que pode chegar ao fim de um mandato com dignidade. Já se mostrou capaz de superar graves crises econômicas e políticas. Agora, o desafio é entrar para o pequeno grupo de presidentes que deixaram um legado histórico.
Nas conversas com auxiliares mais próximos, o presidente Lula tem demonstrado que está mais senhor de seu governo. Sabe o que quer e principalmente o que não quer: que disputas internas como as protagonizadas pelos ministros mais fortes de seu governo, José Dirceu e Antonio Palocci, voltem a contaminar e atrapalhar sua administração. Ele entende que perspectivas futuras não podem ser obstáculos para as prioridades do presente. E seus principais auxiliares estão cientes disso.
Mais ousadia
O segundo mandato tem de ser mais ousado que o primeiro. Não é só porque o presidente deseja, mas porque é isso que a maioria da sociedade brasileira quer e precisa. Foi para isso que ele foi reeleito. E é isso que tem deixado claro nas conversas. Não se trata mais de discutir se é possível crescer mais do que nos últimos anos, tanto neste quanto no governo anterior. A discussão agora é como fazer.
A decisão o presidente já tomou. Ele quer entrar para a história como o líder que recolocou o país na rota do crescimento. Ter melhorado um pouco a distribuição de renda e mantido a estabilidade econômica não são currículo suficiente para entrar para a galeria dos presidentes mais lembrados do país daqui a 50 anos. Não que ele manifeste isso nas conversas, mas é o que seus auxiliares depreendem delas e das declarações públicas do presidente. Como a desta terça-feira (21), feita durante a cerimônia de entrega de trecho da BR 364, entre Sapezal e Comodoro, no Mato Grosso:
“O Brasil já fez a primeira parte. Nós já consolidamos a economia brasileira, nós já criamos as condições para este País dar um segundo passo, que é o passo do crescimento econômico, do desenvolvimento econômico e da distribuição de renda. E só é possível a gente fazer distribuição de renda se a economia brasileira crescer para gerar as oportunidades de emprego e gerar a quantidade de salários que nós entendemos que o povo brasileiro precisa ter direito. Se a gente compatibilizar o crescimento econômico com investimento na educação, para garantir um ensino de qualidade no ensino fundamental, para dar acesso à escola técnica para os nossos adolescentes, e garantir as possibilidades de chegar à universidade para as nossas meninas e para os nossos meninos, nós teremos a certeza de que, ao terminarmos esse segundo mandato, nós teremos feito aquilo que o Brasil está esperando há muitos e muitos anos”.
Como crescer mais, gerar empregos e salários necessários e investir mais na educação para garantir ensino de melhor qualidade e acesso aos cursos superiores sem colocar em risco a estabilidade (volta da inflação), sem cortes drásticos nas contas públicas e sem mágicas para baixar a taxa de juros? Esse é o desafio que o presidente lançou para sua equipe econômica. A meta de crescer 5% ao ano em média nos próximos quatro anos – e, particularmente no próximo ano – está dada. Para isso, ele encomendou os planos de investimentos e fiscal. De um lado, quer desobstruir todos os gargalos de infra-estrutura que possam ser obstáculo para alcançar a meta. É o que ficou demonstrado na reunião da última sexta-feira, quando discutiu até os detalhes de problemas enfrentados para a execução de umas 120 obras com os ministros de Minas e Energia, Silas Rondeau, e Transportes, Paulo Sérgio Passos, e o ministro interino do Meio Ambiente, Carlos Langone.
De outro lado, o presidente quer estimular os investimentos privados e abrir espaço fiscal para os investimentos públicos que são necessários para enfrentar o crescimento da demanda por bens e consumo sem risco de retorno da inflação. Tem de ser um plano ousado e seguro ao mesmo tempo. Não é fácil. O ministro da Fazenda Guido Mantega apresentou um conjunto de propostas para acelerar o crescimento. O problema é que elas só funcionam se o país crescer. É como se o presidente tivesse dito: “Mantega, faça o país crescer 5% ao ano, sem cortar gastos e sem aumentar a inflação”. E o ministro respondesse: “Se o país crescer 5%, eu consigo”. Como ele irá conseguir, ainda não está claro. O certo é que ele precisa mostrar que é capaz de conseguir para se manter no posto de ministro. E quem não o quer por perto já está dando um jeito de desacreditá-lo.
Jogo de cintura no BC
Os auxiliares do presidente são muito cautelosos ao falar da outra parte da equipe econômica, a que trabalha no Banco Central. Henrique Meireles não é um problema, desde que sua equipe também não seja. O que se espera do BC no segundo mandato de Lula? O que o próprio presidente espera é que os técnicos que dirigem a instituição tenham jogo de cintura suficiente para perceber que o governo precisa satisfazer os desejos da maioria de seu povo. Se o povo quer acelerar o crescimento, o BC não pode ser um obstáculo. Tem de ser responsável, mas não inflexível.
Usando uma alegoria futebolística, Meireles disse que não dá para responsabilizar o goleiro pelo fato de o time não fazer gols. Mas o problema não é esse. O técnico decidiu que ficar no zero a zero não interessa mais. O time pode até jogar na retranca, mas tem que sair para o contra ataque quando tem oportunidade. E o goleiro não pode prender a bola, quando aparece uma chance de contra atacar. Precisa sair jogando rápido. Se o ataque não fizer o gol. Tudo bem. Voltam para a retranca. Mas é preciso tentar. Sem ousadia, o país não chega a lugar algum.
O problema dos economistas que só raciocinam com números é que eles se esquecem das pessoas. Cortar os gastos da Previdência e dos programas sociais e investir na infra-estrutura pode ser matematicamente mais eficaz para a turma representada hoje em dia por Fábio Giambiggi, do Ipea. Mas, em um regime democrático, se a pobreza aumenta, a desigualdade se expande e o Estado abandona dezenas de milhões de cidadãos à própria sorte, o grupo político que está no poder é substituído. Como ocorreu no Brasil e vem ocorrendo em vários países da América Latina.
Nada de reforma na Previdência
No caso da Previdência, o presidente não está disposto a embarcar na onda dos formadores de opinião que sustentam ser urgente e necessária uma nova reforma, que ninguém especifica bem qual é. Ele reconhece que existe um problema atuarial. Ou seja, se não forem tomadas providências para que as receitas cubram as despesas com benefícios, chegará o momento em que não haverá recursos suficientes no orçamento para cobrir a diferença. Mas isso demorará algumas décadas para acontecer. Portanto, não é um problema urgente e incontornável.
O que o presidente está cobrando do ministro da Previdência é medidas para tapar os buracos por onde os recursos são desperdiçados, em fraudes ou ineficiência. Ele quer medidas para conter o crescimento descontrolado dos auxílios-doença e para combater as fraudes e sonegações. Em um levantamento preliminar do recadastramento, teriam verificado que em um universo de 2 milhões de benefícios, mais de 100 mil teriam problemas. Se isso for projetado para os 20 milhões de beneficiários, a economia resultante pode ser razoável para adiar qualquer debate sobre novas reformas na Previdência, que podem até ser necessárias, mas não encontrariam respaldo social e político neste momento.
O presidente não teria posição fechada contra novas reformas. Ele acredita que possam ser necessárias, inclusive para ajustar os planos à elevação da expectativa de vida da população. Mas isso deveria ser fruto da conscientização da sociedade. Portanto, não seria uma prioridade para o governo, neste momento. Até porque não encontraria respaldo político no Congresso. Não significa que não venha a ser colocada na agenda, caso se demonstre imprescindível. Mas ele tem consciência de que neste segundo mandato será praticamente impossível enfrentar matérias que explicitem as diferenças ideológicas.
Mesma linha na Política Externa
Em relação à política externa, não há planos de mudança na linha estabelecida no primeiro mandato. Pode haver alteração de postos. No caso do secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, qualquer alteração, se ocorrer, não deve ser interpretada como mudança de orientação. A indicação dele para secretário-geral foi mais um símbolo de desagravo do que uma decisão técnica. A analogia apresentada à Carta Maior para explicar o caso é a seguinte: é como se a ditadura tivesse vigorado por dez anos e o novo presidente civil colocasse San Tiago Dantas, chanceler no governo de João Goulart, na chefia do Itamaraty.
A Secretaria-geral não seria um cargo para o perfil dele, mas era um sinal importante para dentro do Itamaraty. Se for substituído, Samuel será designado para um posto de relevância, mas mais adequado ao seu perfil de formulação e não de execução. O chanceler Celso Amorim está tendo liberdade para montar sua equipe neste segundo governo. Está prestigiado não só pelo que a política externa representou para a esquerda, mas pelo que representou para a cidadania brasileira, conforme demonstram as pesquisas internas feitas no período eleitoral.
O movimento em direção aos países mais ricos aventado em especulações da imprensa não estaria sendo corretamente interpretado. Isso decorreria da falta de compreensão do modelo de diplomacia implementado de maneira mais enfática pelo governo Lula, chamado de “geometria variável”. O país se alinha ou forma blocos de acordo com seus interesses específicos. Depois de ter fortalecido posições no âmbito da OMC, se alinhado com os emergentes, feito alianças estratégicas com Alemanha e Japão para a negociação de uma nova composição do Conselho de Segurança da ONU, reforçado os laços com países africanos, estabelecido pontes de diálogo com o Oriente Médio, o Brasil volta a se aproximar de EUA e União Européia para reforçar parcerias em áreas de interesse comum. Mas a prioridade das prioridades será o aprofundamento das relações com os países da América Latina, com atenção especial para a integração física do subcontinente sul-americano.
A estabilidade política
Depois do aprendizado do primeiro mandato, o presidente Lula já teria em mente o que precisa fazer para manter a estabilidade política necessária para sustentar a ousadia responsável no campo econômico. Mas seus auxiliares dizem que ele não compartilha a estratégia com ninguém. Seria a solidão observada pelo líder do PSDB no Senado, Arthur Virgilio, na conversa que teve com Lula a bordo do avião presidencial, quando retornavam do velório do ex-senador Ramez Tebet, na semana passada.
O que se observa, também, é um envolvimento maior no presidente nas articulações para a formação da aliança partidária que dará sustentação parlamentar ao seu governo. Ele pretende conversar com todas as forças políticas para eliminar os obstáculos políticos ao projeto de crescimento. Ele tem consciência de que não basta ter planos brilhantes para eliminar os gargalos fiscais e de infra-estrutura se não tiver maioria sólida no Congresso para colocá-los em prática. Sabe também que a composição de governo precisa refletir as bases de apoio, o que implica em maior participação dos partidos com maior representação no Parlamento. E sabe, principalmente, que não está jogando dominó com freirinhas no convento.
Por mais que os políticos digam o contrário, todos já estão pensando na disputa de 2010, quando o mito Lula estará fora do páreo. Se não mover as peças com cuidado, o segundo mandato entra em contagem regressiva a partir de primeiro de janeiro de 2007. De todos os nós que precisa desatar, o que destrincha a meada é o do PMDB. O presidente está tentando encontrar o interlocutor ou os interlocutores que exerçam influência sobre a maior parte possível da bancada. Pelo menos 80% dos 90 a 100 deputados e 17 a 20 senadores que o partido deverá ter até o início da próxima Legislatura.
A sinalização dos governadores peemedebistas, na semana passada, foi importante. A conversa que terá com o presidente do partido, Michel Temer, nesta quarta-feira (22), é uma formalidade necessária para mostrar que busca a aliança no campo institucional. Mas o que vai valer, mesmo, é a liderança a ser demonstrada na construção das maiorias para aprovar as propostas do governo ou desarmar as arapucas dos opositores. Isso pode ser resolvido nas próximas semanas ou ficar para depois da divisão do poder no Congresso, com a eleição das Mesas Diretoras da Câmara e do Senado.
No campo simbólico, será um problema tomar posse de um segundo mandato, tendo na fotografia oficial um ministério provisório. Mas no campo político, será um risco distribuir as fatias de poder entre os aliados, sem ter a certeza de que tanto a Câmara, quanto o Senado serão presididos por aliados fiéis, que ajudem na desobstrução dos canais para promover o crescimento mais acelerado do país e não montem plataformas de chantagem para negociar a expansão do poder de seu grupo político. Não será fácil amarrar o rabo das raposas do PMDB.
Quem está de olho nas cadeiras poderosas do Congresso não quer saber de misturar a formação do governo com a eleição no Legislativo. E vai pressionar o presidente para definir logo seu novo ministério, insistindo que a Presidência da Câmara é um direito que o partido adquiriu nas urnas ao eleger a maior bancada. Aceita a premissa, os pleiteantes ao cargo podem até abrir mão, desde que sejam justamente recompensados com posições no Executivo que tenham bala na agulha. Entenda-se: controle de órgãos como a Funasa, que tem poder para liberar muitos bilhões de reais por ano a milhares de bases eleitorais por todo o país; cargos estratégicos em estatais, bancos oficiais e agências reguladoras, onde seja possível estabelecer relações de clientelismo com agentes políticos do país todo e potenciais financiadores de campanha.
A reforma política
Para não reproduzir o mesmo modelo que gerou o chamado mensalão e os sanguessugas, o presidente gostaria de aprovar uma reforma política que institucionalizasse a fidelidade partidária, induzisse a um compromisso maior de fidelidade entre representantes e representados e inibisse o circuito da corrupção que vai dos financiamentos de campanha à sua retribuição na forma de desvirtuamento dos interesses públicos. Embora seja muito falada e necessária para substituir o sistema apodrecido em vigor, não será fácil implementar, porque cada segmento político tem em mente uma proposta que atenda aos interesses de fortalecimento de seu grupo e conseqüente enfraquecimento dos adversários.
O presidente tem insistido muito na necessidade da reforma política nas conversas com líderes partidários. Tanto que o líder do PTB, José Múcio, um radical opositor às mudanças no sistema, já está com outra visão. Há dois anos, ele esteve à frente da obstrução ao projeto que estabelece financiamento público, voto em lista e fidelidade partidária, junto com os dirigentes do PP e do PL – os chamados partidos do mensalão. Há duas semanas, depois de conversar por cerca de meia hora com o presidente para informar que a maioria de sua bancada estará dando sustentação ao governo, independente da posição do presidente do partido, Roberto Jefferson, ele deu o braço a torcer: “Já fui muito contra a reforma política, mas estou absolutamente convencido de que o modelo, como está, está absolutamente desgastado”.
Depois de resolver o nó do PMDB, o presidente ainda terá de se debruçar sobre o PT, ou sobre os PTs. Assim como o PMDB, o partido tem vários comandos e interesses que precisam ser aglutinados e contemporizados pela direção do partido, que está capenga com a debilidade política de mais um presidente, desde que o deputado Ricardo Berzoini foi derrubado pelo escândalo do dossiê Vedoin. Para suprir essa deficiência, o presidente gostaria que os ministros petistas se empenhassem mais para dar coesão ao partido e frear as ambições que se assanham.
No que depender do presidente, não haverá espaço para projetos pessoais dissociados do projeto coletivo. E o projeto coletivo é o que foi escolhido nas urnas e está sendo formatado, nas conversas com empresários, economistas, políticos e representantes dos movimentos sociais, nestes meses que antecedem a posse para o segundo mandato.
Por Nelson Breve.
NOTÍCIA COLHIDA NO SÍTIO www.agenciacartamaior.com.br.
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