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Che e a outra margem do rio

Adital – Em outubro de 1967 eu estava no primeiro ano do Colegial (atual Ensino Médio) no Seminário Seráfico dos Franciscanos em Taquari, Rio Grande do Sul, tinha 16 anos. O que nos marcava na época eram os acontecimentos de 1964 – o comunismo está vindo por aí, foi restabelecida a ordem e a paz, era o discurso – (o General Presidente Costa Silva, que era de Taquari, chegou a ser homenageado em almoço no Seminário, nós éramos os que serviam as mesas todo orgulhosos), a perda vergonhosa da Copa em 1966 na Inglaterra e coisas assim. Que eu me lembre, minha primeira manifestação política foi um texto que escrevi em 1968 sobre a Primavera de Praga, condenando a invasão soviética da Tchecoslováquia, numa ótica (minha) pela direita, de que a ditadura russa estava esmagando a liberdade americana e ocidental.

Tudo isso pra dizer que Che Guevara e os acontecimentos na Bolívia passavam ao largo das nossas vidas de adolescentes que se formavam para a vida religiosa. Não tenho lembrança de ter ouvido falar da sua ida às montanhas da Bolívia e do seu assassinato em 8 de outubro de 1967, que agora completa 40 anos.

Até hoje não sei explicar (tenho impressão que a história de outros é semelhante à minha) como passei (ou estou tentando permanentemente passar) à outra margem do rio, lembrando a passagem do filme Diários de Motocicleta, de Valter Salles Júnior, que conta a viagem de Che da Argentina à Venezuela, quando ele toma consciência dos problemas da América Latina e alimenta a sua opção pelos pobres e trabalhadores. Na noite de celebração do seu aniversário, de acordo com o filme, Che festeja com médicos, religiosas e funcionários de um leprosário. Mas os leprosos estão separados pelo rio, estão na outra margem do rio, do lado de lá e não participam da festa. Os ‘sãos’ celebram. Os ‘doentes’ não estão convidados. Che, depois de um discurso de agradecimento onde fala da unidade latino-americana que haverá de acontecer, atira-se no rio, sob os protestos de todos, atravessa-o a nado e vai comemorar seu aniversário com os mais pobres entre os pobres. Está selada sua adesão à causa da transformação e à causa latino-americana.

O Che, que vira mito, continua produzindo coisas extraordinárias. Agora se revela que o suboficial boliviano Mario Terán, que deu o tiro fatal sob ordens militares, há pouco foi operado (tinha catarata) por médicos cubanos da Operação Milagre, plano oftalmológico exportado por Cuba para vários países. E recuperou a visão sem pagar um centavo.

Diz o jornal cubano Granma: “A quatro décadas de Mario Terán tentasse com seu crime destruir um sonho e uma idéia, Che torna a ganhar outro combate. E continua em campanha”.

O que interessa mesmo na vida do Che e na nossa: a outra margem do rio. Ali estão o futuro e a esperança. Lá não estão apenas os pobres, os deserdados, os humilhados e ofendidos. Há mais que isso. Lá estão os que se dispõem e podem abraçar a causa e o sentido da mudança. E são eles que vão fazê-la. Eles e seus braços, eles e suas cabeças, eles e seus sentimentos. Não importa que sejam fracos fisicamente. Mas eles acreditam na vida, têm sonhos, querem a libertação. Não apenas a individual, a de cada um sozinho, mas a que sonha junto, a que é coletiva e solidária.

Se o Che não simboliza e revive isso, se ele é apenas um rosto numa camiseta, uma frase de um texto ou discurso, nesta América Latina que ainda está empobrecida e subjugada em muitos aspectos, não tem sentido celebrá-lo nos 40 anos. Pensar hoje, no século XXI, quem são os leprosos, os que estão na outra margem do rio é o desafio de cada um de nós, estando no movimento popular, na pastoral social, numa ONG ou mesmo em algum governo: os trabalhadores, em especial os desempregados, os catadores e recicladores, os quilombolas, os ribeirinhos, os indígenas, os carrinheiros, os que recebem o Bolsa Família, os pescadores.

Há sinais hoje de que o sonho do Che avança, consciências e vozes se juntam para realimentar seu desejo de unidade e libertação em todos os cantos da América do Sul e da América Latina. A Operação Milagro, não só a dos médicos cubanos solidários, está acontecendo nas ruas, praças e campos do Brasil, da Venezuela, da Bolívia, do Equador, da Argentina, do Uruguai, da Nicarágua, do Chile, do Paraguai, com e sem governos que se juntem ao canto coletivo. O povo dá um grito de liberdade. Contra os poderes estabelecidos, contra os hegemonismos históricos, contra a ditadura das potências colonialistas.

O Che é isso. Ou não é. Ou como diria Paulo Freire, está sendo.

Por Selvino Heck, que é assessor especial do Presidente da República. Fundador e Coord. do Movimento Fé e Política.

ARTIGO COLHIDO NO SÍTIO www.adital.org.br.

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