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Nunca fomos tão participativos

Algumas reflexões sobre os movimentos sociais urbanos por ocasião da realização da 3ª Conferência Nacional das Cidades, que acontece até o próximo dia 29 de novembro, em Brasília.

O único ponto de partida possível para uma esquerda realista nos dias de hoje é um registro lúcido de sua derrota histórica.
Perry Anderson

Antes de classificar a frase de Perry Anderson excessivamente pessimista, peço ao leitor ou à leitora para fazer algumas reflexões que extravasem cada pequeno mundinho que ferve de tanta atividade participativa, mas que, no entanto, não tem praticamente efeito sobre o capitalismo global ou até nacional. Explico melhor, usando o raciocínio de Paulo Arantes: nunca a esfera da política esteve tão cheia e, ao mesmo tempo, tão vazia. Do Banco Mundial, passando pela Banco Itaú e um número incontável de ONGs, a participação democrática está em todas as agendas envolvendo, de preferência, também os pobres da periferia.

No World Urban Fórum, que teve lugar em Vancouver, em 2006, a representante do Banco Mundial foi uma das mais fervorosas defensoras da participação democrática em uma mesa redonda denominada Poverty Alliviation and Participation. Certamente, a diretora do Bird se referia à participação dos moradores na busca de soluções para aplicar de forma eficiente, e sem corrupção, os parcos recursos destinados a melhorar a rua, a casa ou o bairro, local de moradia da comunidade. Não passava pela sua cabeça incentivar a participação dos pobres urbanos no debate sobre a gigantesca transferência de recursos públicos para a esfera financeira por meio do pagamento de juros da dívida pública, como acontece em países periféricos como o nosso. Ela não deve ter pensado, tampouco, quando teceu tantos elogios aos processos participativos, que eles pudessem tratar dos recuos nos investimentos em políticas sociais levados a efeito em tantos países pobres do mundo, durante 27 anos, por inspiração do próprio Bird ou do FMI.

Mas essa possibilidade, de debater temas estruturais, é longínqua não apenas para a diretora do Bird, mas também para a maior parte dos movimentos sociais e ONGs que se multiplicam no Brasil e no mundo, guiados pela hegemonia do “participativismo”. É evidente que esses movimentos estão ocupados com problemas importantes como gênero, raça, meio ambiente, saneamento, habitação etc, mas, aparentemente, nos ocupamos em buscar melhores condições de vida, compondo um cenário dividido e fragmentado, tomando a parte pelo todo, contidos nos limites de um horizonte restrito, sem tratar do presente ou do futuro do capitalismo. Desistimos de fazê-lo.

Se de um lado é preciso reconhecer que o fim do capitalismo ou qualquer forma de socialismo não estão nos esperando na próxima esquina, é preciso reconhecer, de outro, que não há explicação para a ausência de estudos, textos e reflexões que ajudem a nos situarmos no mundo (fora da esfera acadêmica). O neoliberalismo não foi uma evolução natural do mundo, como querem fazer crer, mas uma construção ideológica e programática persistente e vitoriosa. A promessa neoliberal de corte nos gastos públicos não se realizou nos países centrais, mas, ao contrário, os gastos sociais aumentaram (especialmente sob Thatcher e Reagan) devido ao desemprego. Explicando melhor, as políticas sociais sofreram cortes e foram desmontadas, assim como muitos sindicatos e partidos, mas os gastos não diminuíram. Há muitas evidências como estas, de que a construção teve muito de ideológica.

Apropriando-se da reestruturação produtiva do capitalismo propiciada pelo avanço tecnológico, o neoliberalismo causou um impacto no mundo que teve o efeito de um tsunami. No Brasil, podemos constatar tanto o meio rural quanto o urbano revolucionados. O que restava de território ainda não subsumido à atividade propriamente capitalista até 30 anos atrás está em franco processo de incorporação. Basta acompanhar o que acontece nos Estados do Centro-oeste , em Rondônia ou no Pará. Perdemos a oportunidade de fazer a Reforma Agrária (embora ela deva ser afirmada sempre e sempre devido a objetivos sociais e ambientais) e a grande propriedade ganha uma nova força, reafirmando a grande propriedade com o papel que a globalização nos delegou no mercado internacional: produtores de grãos, carne, madeira, minérios, celulose e álcool.

Nas cidades, embora o caráter da mudança não tenha sido tão acentuado, sua profundidade foi devastadora. A diminuição do crescimento econômico a partir de 1980, o desemprego massivo e o recuo das políticas sociais conformaram um cenário de tragédia em que não faltaram a volta das epidemias, a emergência de uma violência até então desconhecida nas áreas urbanas, a explosão do crescimento de favelas, a multiplicação de “menores infratores” e crianças abandonadas, entre outras mazelas. O Estado não se tornou mínimo como prometia a receita neoliberal, ele simplesmente mudou. Como destaca R. Kurz, a ampliação do mercado corresponde à ampliação do Estado. Os cortes nas políticas de transporte, habitação e saneamento, por exemplo, que impactaram profundamente as cidades, foram acompanhados por transferência massiva de recursos públicos para a esfera financeira privada por meio do pagamento dos juros da dívida.

Essas poucas referências sobre a mudança por que passamos não estão na ordem do dia dos movimentos sociais, ou dos milhares de pontos que compõem esse universo participativo, com exceção do MST. Apesar de todas as dificuldades, o MST não deixa de estar na ofensiva, cuidar da renovação de quadros e lideranças, discutir democraticamente seus passos e, acima de tudo, conservar-se independente ainda que apoiado, em parte, em recursos públicos e doações internacionais. O MST é alimentado pela forte prioridade que é dada à formação política ou educação. A importância dada à informação, que contraria o que parece ser o senso comum, revela o lugar essencial ocupado pela comunicação. Observá-lo nos ajuda a perceber que há grandes diferenças entre os processos participativos e também entre os grandes movimentos sociais no Brasil.

Muitos desses cuidados não estão sendo observados em todos os chamados movimentos urbanos. A renovação ou ampliação de lideranças poderia ser mais valorizada, assim como o surgimento de novos movimentos. Os processos pedagógicos ligados à identidade e compreensão científica e ideológica do mundo têm sido esquecidos. Nota-se uma atração muito forte pelo espaço institucional ou pela institucionalização de práticas participativas, como se isso constituísse um fim em si.

É evidente que algum controle social sobre o Estado constitui uma experiência fundamental para o aprendizado dos movimentos sociais, assim como também é importante ampliar as conquistas por demandas sociais. Ao contrário do que pensam muitos intelectuais que vêem ali um desprezível reformismo, as conquistas de reivindicações concretas imediatas são alimento essencial para qualquer movimento reivindicatório de massas. Mas é preciso entender o que é o Estado em sua complexidade, especialmente numa sociedade como a nossa, patrimonialista e desigual. Seu poder de cooptação e mesmo de corrupção parece imenso. O rumo seguido em anos recentes pelo Partido dos Trabalhadores, quase restrito à prática eleitoral e institucional, comprova isso. Não sendo possível a cooptação, a anulação do outro tem sido a alternativa em qualquer conflito que envolva classes dominadas. A história do Brasil é que permite tais generalizações aparentemente radicais. Não se trata, portanto, de ignorar a luta por espaços institucionais por via eleitoral ou qualquer outra via, mas de dar a ela a devida dimensão no processo de construção de um outro mundo marcado por outras relações sociais. Esse raciocínio vale para quem está fora ou dentro do aparelho de Estado.

Entretanto, o cenário não está completo. Essas críticas são precoces e incorretas se não reconhecermos que os chamados movimentos urbanos lograram uma condição rara no Brasil se comparado a outros países do mundo: uma certa unidade em torno do ideário da Reforma Urbana, o qual poderíamos sintetizar em direito à cidade e à cidadania para todos, em especial os excluídos territorialmente. Essa reunião de movimentos, federações de sindicatos, associações profissionais e acadêmicas e ONGs, muito dos quais participam do Fórum de Reforma Urbana, contabiliza muitas conquistas ao longo dos últimos 20 anos: alguns capítulos na Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Cidade em 2000, a MP 2220 em 2001, a criação do Ministério das Cidades em 2003, as conferências nacionais das Cidades em 2003, 2005 e 2007, um Programa Nacional de Regularização Fundiária, inédito em nível federal em 2003, o Conselho Nacional das Cidades em 2004, a lei federal que institui o marco regulatório do Saneamento Ambiental em 2005, a Lei Federal dos Consórcios Públicos em 2005, a Lei Federal do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social em 2005, a instituição do Fundo Nacional da Habitação de Interesse Social em 2006, a Campanha Nacional do Plano Diretor Participativo, um PL (atualmente no Congresso) que visa instituir um marco regulatório da mobilidade urbana, e o PAC da habitação e do saneamento, em 2007. Essa relação, extraordinária, mostra a força da organização e da unidade desse movimento. Boa parte dessas conquistas foi impulsionada pelo Ministério das Cidades e pelo Conselho das Cidades a partir de 2003, mas é preciso lembrar que estas instituições foram, elas mesmas, conquistas sociais.

Embora os principais movimentos sociais não tenham deixado de realizar ocupações de imóveis ociosos que descumprem a Constituição brasileira e fazer amplas manifestações de rua, sempre ignoradas pela grande mídia, essa lista de ganhos que ocuparam um lugar central nas lutas sociais, é forçoso reconhecer, tem, talvez, um acento demasiadamente “juridicista” e institucional . E além dos aspectos já mencionados da tradição clientelista que caracteriza a relação do Estado brasileiro com os de baixo, eternamente dependentes de favor, é preciso lembrar a tradição arbitrária de aplicação da lei no Brasil.

Não foi por falta de leis que a maioria da população brasileira foi excluída da propriedade formal da terra, durante toda a história do Brasil, seja no campo ou na cidade. Um cipoal de leis, decretos, resoluções, registros e cadastros seguiu-se à instituição da propriedade privada da terra no Brasil, a partir da Lei de Terras de 1850. Muitas iniciativas e também a ausência delas serviu para confirmar a relação entre poder e propriedade da terra ao longo dos últimos 200 anos. Até mesmo a gigantesca fraude que permitiu a apropriação privada das terras devolutas teve formatos institucionais variados. Os movimentos sociais devem lutar por novos marcos jurídicos, mas é preciso ter em conta que isso está muito longe de assegurar conquistas reais, como estamos testemunhando com a quase nula aplicação dos instrumentos mais importantes do Estatuto da Cidade, seis anos após sua promulgação. Apesar da força e da unidade dos movimentos urbanos, o secularmente almejado acesso à terra concretamente pouco avançou nesses anos de conquistas institucionais. Esse parece ser o ponto de honra da elite brasileira: conservar os pobres na ilegalidade quando ela mesma se apropriou ilegalmente da maior parte do patrimônio em terras públicas. As raízes da explicação estão muito fundas.

Da mesma forma, não há que se criar ilusões sobre o Plano Diretor instituído por lei municipal. Sua elaboração permite aos participantes conhecer a cidade, entender as forças que a controlam. Seu processo participativo permite incorporar sujeitos ao processo político e ao controle (sempre relativo) sobre a Administração e a Câmara municipais. No entanto, é preciso não perder de vista a natureza desse poder municipal que inclui, entre suas maiores forças, a especulação imobiliária (nem sempre se trata de capital, mas sim de patrimônio mesmo). É preciso lembrar sempre da distância imensa que separa discurso da prática entre nós. Invariavelmente, os textos dos PDs são sempre muito bem intencionados, afirmando uma cidade para todos, harmônica, sustentável e democrática. A implementação do Plano, entretanto, tende a seguir a tradição: o que favorece alguns é realizado, o que contraria é ignorado. E os esquecidos continuam esquecidos caso não estejam lá para ressaltar suas necessidades, sem a ilusão de desenhar a cidade de todos ou a cidade dos nossos sonhos.

As mudanças globais, a crise política e partidária no mundo, o governo Lula com seus avanços e recuos, e a história recente das lutas urbanas no Brasil sugerem que estamos no fim de um ciclo. Entendermos a imensa transformação que é devida ao capitalismo internacional, entender o Brasil e a América Latina deve merecer a mesma atenção que é dada à agenda das ações cotidianas, sejam elas institucionais ou não, locais ou não. Estudar as determinações mais gerais, internacionais, regionais e nacionais não irá prejudicar as ações cotidianas, mas, ao contrário, deverá fornecer o necessário contexto de referência.

Nas lutas específicas ou urbanas, embora novas leis devam entrar na agenda (aí está o controverso PL 20 que pretende legalizar os loteamentos fechados), está na hora de enfrentar as forças que resistem à implementação dos marcos legais conquistados, incluindo aí, especialmente, judiciário, legislativos, executivos, Ministério Público e Cartórios de Registro de Imóveis. Entender porque essas instituições resistem em aplicar o Estatuto da Cidade significa entender a sociedade brasileira. Esse processo que valoriza a ação pedagógica forma sujeitos críticos.

Finalmente, vale a pena lembrar que a questão ambiental parece ser a única via de enfrentamento do capitalismo no mundo atual. Embora parte do movimento ambientalista desconheça a realidade empírica (social e territorial) e se oponha a muitas das propostas que os movimentos ligados à Reforma Urbana defendem, em especial, no Brasil, a de regularização fundiária, é preciso insistir na busca da unidade daqueles que querem um mundo baseado em padrões de consumo menos predatórios, mais éticos, mais igualitários, mais humanos, mais sustentáveis. A dinâmica avassaladora do capital ignora totalmente esses valores, submetendo o mundo – territórios, sociedades, culturas, recursos naturais – ao fetichismo da mercadoria. Esse pode ser o caminho para superarmos a fragmentação que nos enfraquece.

Por Ermínia Maricato, que foi secretária-executiva na gestão de Olívio Dutra no Ministério das Cidades e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

ARTIGO COLHIDO NO SÍTIO www.cartamaior.com.br.

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