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Os poliglotas descalços

Sempre causou perplexidade entre os analistas o apoio de Kissinger e de sua diplomacia às truculentas intervenções militares na América do Sul. Mas não é difícil de entender isso quando se olha os interesses dos EUA da perspectiva de longo prazo, traçada por Nicholas Spkyman em 1942.

Heinz Alfred Kissinger, o diplomata norte-americano mais influente, da segunda metade do século XX, nasceu em Fürth, na Alemanha, em 1923. Mas imigrou para os Estados Unidos, e se nacionalizou norte-americano em 1943, antes de doutorar-se na Universidade de Harvard, em 1954, onde foi professor e diretor do seu Centro de Estudos Internacionais e do seu Programa de Estudos de Defesa, até 1971. Apesar disto, Henry Kissinger não foi um acadêmico, foi sobretudo um consultor, funcionário e executivo da segurança nacional, e da política externa norte-americana. Desde 1953, no governo de Dwight Eisenhower, até o final da sua gestão como Conselheiro de Segurança da Presidência, e como Secretario de Estado das administrações de Richard Nixon e Gerald Ford, entre 1968 e 1976. Neste último período, em particular, Henry Kissinger exerceu uma diplomacia pouco convencional e extremamente ágil, como formulador e operador direto de suas próprias decisões, cioso de suas idéias e do seu poder pessoal e institucional. Foi nesta época que ele tomou algumas decisões e liderou iniciativas do governo americano, que deixaram marcas profundas na história da segunda metade do século XX.

Entre suas iniciativas com sinal “positivo”, destacam-se: a distensão das relações com a União Soviética e a negociação dos tratados de “não proliferação nuclear”, de “limitação das armas estratégicas” e de controle dos “mísseis balísticos”, na década de 70; as negociações de paz no Vietnã, que levaram à assinatura dos Acordos de Paris, em 1973; e, finalmente, a mais famosa de suas acrobacias diplomáticas, as viagens secretas a Pequim, e suas negociações pessoais, com Chou en Lai e Mao Tse Tung , em 1971 e 1972, que levaram à reaproximação dos Estados Unidos com a China nas décadas seguintes.

Por outro lado, entre suas decisões e iniciativas “sangrentas”, destacam-se: a autorização do bombardeio aéreo do Camboja e do Laos, tomada sem a autorização do Congresso Americano, em 1969; o apoio à guerra do Paquistão com a Índia, no território atual de Bangladesh, em 1971; o apoio e financiamento ilegal da invasão do Chipre, pela Turquia, em 1974; o apoio à invasão sul-africana de Angola, em 1975; e, finalmente, também em 1975, o apoio à invasão do Timor Leste, pela Indonésia, que se transformou numa ocupação de 24 anos, e custou 200 mil vidas.

Separadamente, a América do Sul ocupa um lugar de destaque nesta lista “negra” das grandes decisões tomadas por Henry Kissinger, entre 1968 e 1976. Basta ler os documentos oficiais americanos que já estão disponíveis e as várias pesquisas jornalísticas e acadêmicas que apontam para o envolvimento direto do ex-secretário de Estado Norte-americano com a preparação e execução dos violentos golpes militares que derrubaram os governos eleitos do Uruguai e do Chile, em 1973, e da Argentina, em 1976. Além, disto, existem inúmeros processos judiciais – em vários países (nota 1) – envolvendo Henry Kissinger com a Operação Condor (nota 2), que integrou os serviços de inteligência das Forças Armadas da Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, para seqüestrar, torturar e assassinar personalidades políticas de oposição.

Sempre causou perplexidade entre os analistas o apoio de Kissinger e da diplomacia americana a estas “intervenções militares”, que se caracterizaram por sua extraordinária truculência. Mas não é difícil de entender o que aconteceu quando se olha para os interesses estratégicos dos Estados Unidos e sua defesa na América do Sul, da perspectiva de longo prazo, traçada por Nicholas Spkyman, em 1942. Spykman definiu o continente americano, do ponto de vista geopolítico, como primeira e última linha de defesa da hegemonia mundial dos Estados Unidos. Dentro deste hemisfério, ele considerava improvável que surgisse um desafio direto à supremacia dos Estados Unidos na “América Mediterrânea”, onde ele incluía o México, a América Central e Caribe, mas também a Colômbia e a Venezuela.

No entanto, ele considerava que poderia surgir um desafio desta natureza na região do ABC, no Cone Sul da América. E, neste caso, ele considerava inevitável o recurso à guerra. A sigla ABC refere-se a Argentina, Brasil e Chile, mas a região do ABC inclui também o território do Uruguai e do Paraguai – exatamente os cinco países que estiveram envolvidos na Operação Condor. Neste sentido, se pode dizer que Henry Kissinger seguiu rigorosamente as recomendações de Nicholas Spykman com relação ao controle desta região geopolítica. Sua única contribuição pessoal, foi a substituição da “guerra externa”, proposta por Spykman, pela “guerra interna” das Forças Armadas locais contra setores de suas próprias populações nacionais. Mas, mesmo neste ponto, Kissinger não foi original: recorreu ao método que havia sido utilizado pelos ingleses na Índia, durante 200 anos. E em todos os lugares em que a Grã Bretanha dominou Estados fracos, utilizando suas elites divididas e subalternas, para controlar as suas próprias populações locais.

Nas décadas de 80 e 90, Henry Kissinger afastou-se da diplomacia direta, mas manteve sua influencia pessoal e intelectual dentro do establishment americano e dentro das elites conservadoras sul-americanas. Em 2001, ele publicou um livro sobre o futuro geopolítico e sobre a defesa dos interesses americanos ao redor do mundo (nota 3). Com relação à América do Sul, o autor atenuou a forma, mas manteve o “espírito” de Spykman: segundo Kissinger, a América do Sul segue sendo essencial para os interesses americanos, e deve ser mantida sob a hegemonia dos Estados Unidos. Só que, hoje, a ameaça à esta hegemonia já não vem da Alemanha, nem da União Soviética, vem de dentro do próprio continente. No plano econômico: dos projetos de integração regional que excluam ou se oponham à Alca. E no plano político: dos populismos e nacionalismos que, segundo ele, estão renascendo no continente, segundo Kissinger. Por fim, mesmo que não tenha escrito de forma explícita, o entusiasmo demonstrado por Kissinger com as reformas liberais dos anos 90 e com os governos de Menem e Cardoso não deixa dúvidas com relação à sua preferência e sua estratégia atual para a “região do ABC”: depois dos militares, os “poliglotas descalços”.

Notas

(1) Na França, Henry Kissinger foi chamado a depor, pelo juiz Roger Lê Loire, no processo sobre a morte de cidadão franceses na Operação Condor, e sob a ditadura militar chilena. O mesmo ocorrendo na Espanha, com a investigação dp juiz Juan Guzman, sobre a morte do jornalista americano Charles Horman, sob a ditadura chilena. E também na Argentina, onde Kissinger está sendo investigado pelo juiz Rodolfo Canicoba, por envolvimento na Operação Condor, assim como em Washington , onde existe um processo na corte federal com acusação, contra Kissinger de haver dado a ordem para o assassinato do Gal Schneider, Comandante em Chefa das Forças Armadas Chilenas, em 1970.

(2) O interesse sobre o assunto foi reavivado recentemente, pelo livro do jornalista Chistopher Hitchens, The Trial of Henry Kissinger(2203), e pela resenha de Kenneth Maxwelll, do livro de Peter Kornbluh, The Pinochet file: a Desclassified Dossier on Atrocity and Accountability, publicado na Revista Foreign Affairs, de Dezembro de 2003, sobre as relações de Kissinger com o regime de Augusto Pinochet, em particular com o assassinato do diplomata chileno Orlando Letelier, em Washington, 1976.

(3) Kissinger, H., (2001), Does America Need a Foreign Policy. Toward a Diplomacy for the 21 st Century, Simon&Schuster, New York.

Por José Luís Fiori, que é cientista político, e é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

ARTIGO COLHIDO NO SÍTIO www.cartamaior.com.br.

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