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Keynes e o fim do laissez-faire

John Mayard Keynes nasceu em 1883, o ano da morte de Karl Marx. Nesse momento a economia mundial vivia o tempo da Grande Depressão do século XIX e das profundas transformações da 2ª Revolução Industrial. Entre 1873 e 1896 o aço, a eletricidade, o motor a combustão interna, a química da soda e do cloro, alteraram radicalmente o panorama da indústria, até então marcado pelo carvão, pelo ferro e pela máquina a vapor. A aplicação simples da mecânica cedeu lugar à utilização e integração sistemática da ciência nos processos produtivos. Esta segunda revolução industrial veio acompanhada de um processo extraordinário de ampliação das escalas de produção.

O crescimento do volume de capital requerido pelos novos investimentos impôs novas formas de organização à empresa capitalista. A sociedade por ações tornou-se a forma predominante de estruturação da propriedade. Os bancos, que concentravam suas operações do financiamento do giro dos negócios, passaram a avançar recursos para novos empreendimentos (crédito de capital), e a promover a fusão entre as empresas já existentes. Pouco a pouco todos os setores industriais foram dominados por grandes empresas, sob o comando de gigantescas corporações financeiras. O movimento de concentração do capital produtivo e de centralização do comando capitalista tornou obsoleta a figura do empresário frugal que confundia o destino da empresa com sua própria biografia. O magnata da finança é, agora, o herói e o vilão do mundo que nasce.

Estas violentas transformações sacudiram a Inglaterra e a Alemanha, os Estados Unidos e o Japão. A Inglaterra, pioneira da indústria, foi incapaz de deter o avanço dos demais e de preservar sua supremacia econômica. Os Estados Unidos e a Alemanha ingressaram no cenário. Fizeram valer a superioridade de suas respectivas estruturas capitalistas, especialmente a agilidade de seus bancos e a presença ativa de seus respectivos Estados nacionais. A emergência de novas potências inaugurou um período de grande rivalidade internacional. A disputa pela preeminência econômica intensificou a penetração de capitais nas áreas provedoras de matérias primas e alimentos, alterando a configuração da chamada periferia do mundo capitalista.

O padrão ouro foi a organização monetária do apogeu da Ordem Liberal Burguesa. Isto quer dizer que ele se apresentava como a forma “adequada” de coordenação do arranjo internacional que supunha a coexistência de forças contraditórias: 1) a hegemonia financeira inglesa, exercida através de seus bancos de depósitos e de sua moeda; 2) a exacerbação da concorrência entre a Inglaterra e as “novas” economias industriais dos trusts e da grande corporação, nascidos na Europa e nos Estados Unidos, 3) a exclusão das massas trabalhadoras do processo político (inexistência do sufrágio universal) e 4) a constituição de uma periferia “funcional”, fonte produtora de alimentos, matérias primas e, sobretudo, fronteira de expansão dos sistemas de crédito dos países centrais.

No seu célebre artigo O Fim do Laissez-Faire, John Maynard Keynes cuidou de refletir sobre as transformações que deixaram para trás os mitos do capitalismo liberal. Não por acaso, ironizou a idéia de que a busca do interesse privado levaria necessariamente ao bem estar coletivo. “Não é uma dedução correta dos princípios da teoria econômica afirmar que o egoísmo esclarecido leva sempre ao interesse público. Nem é verdade que o auto-interesse é, em geral, esclarecido.”

Conservador, Keynes professava a convicção de que a sociedade e o indivíduo são produtos da tradição e da história. Cultivava os valores de uma moral comunitária. Tinha horror ao utilitarismo e à hipocrisia da Era Vitoriana. Isso não quer dizer que recusasse o programa da modernidade, empenhado no avanço das liberdades e da autonomia do indivíduo. Não acreditava, porém, que esta promessa pudesse ser cumprida numa sociedade individualista em que os possuidores de riqueza orientam obsessivamente o seu comportamento para as vantagens do ganho monetário.

Descreveu sua utopia no artigo Perspectivas Econômicas para Nossos Netos: “Estou à espera, em dias não muito remotos, da maior mudança que já ocorreu no âmbito material da vida, para os seres humanos em seu conjunto. Vejo-nos livres para voltar a alguns dos mais seguros e tradicionais princípios da religião e da virtude tradicional – de que a avareza é um vício, a usura uma contravenção, o amor ao dinheiro algo detestável.. Valorizemos novamente os fins acima dos meios e preferiremos o bem ao útil. Honraremos os que nos ensinam a passar virtuosamente e bem a hora e o dia, as pessoas agradáveis capazes de ter um prazer direto nas coisas, os lírios do campo que não mourejam nem fiam.”

O “amor ao dinheiro”, dizia, é o sentimento que move o indivíduo na economia mercantil-capitalista. Fator de progresso e de mudança social, the love of money pode se transformar em um tormento para o homem moderno. Seus efeitos negativos precisam ser neutralizados mediante a ação jurídica e política do Estado Racional e, sobretudo, pela atuação de “corpos coletivos intermediários”; como, por exemplo, um Banco Central dedicado à gestão consciente da moeda e do crédito.

Keynes acreditava que a cura para os males do capitalismo deve “ser buscada, em parte, pelo controle da moeda e do crédito por uma instituição central e, em parte, por um acompanhamento da situação dos negócios, subsidiados por abundante produção de dados e informações”.

Keynes falava “da direção inteligente pela sociedade dos mecanismos profundos que movem os negócios privados”; particularmente os processos que envolvem as decisões de investimento, ou seja, a criação de riqueza nova.

Na Teoria Geral, Keynes tratou do caráter instável do investimento privado, concebido por ele como uma vitória do espírito empreendedor sobre o medo decorrente da “incerteza e da ignorância quanto ao futuro”. É a tensão não mensurável entre as expectativas a respeito da evolução dos rendimentos do novo capital produtivo e o sentimento de segurança proporcionado pelo dinheiro que vão determinar; em cada momento, o desempenho das economias de mercado. A vida do homem comum vai depender do volume de gastos que os capitalistas – detentores dos meios de produção e controladores do crédito – estarão dispostos a realizar, criando mais renda e mais emprego. O destino da sociedade é decidido na alma dos possuidores de riqueza, onde se trava a batalha entre as forças de criação de nova riqueza e o exército negro comandado pelo “amor ao dinheiro”.

As decisões de gasto estão subordinadas às expectativas dos capitalistas – enquanto possuidores de riqueza monetária – do sistema bancário em derradeira instância – de abrir mão da liquidez, criando crédito e incorporando novos títulos de dívida à sua carteira de ativos.

Nos momentos em que o medo do futuro atropela o espírito de iniciativa, a demanda capitalista por riqueza pode se concentrar em ativos líquidos já existentes, inchando a circulação financeira e jogando para baixo os preços dos papéis (e, portanto, afetando as taxas de juros), com prejuízos para o emprego e a renda da comunidade. Esta demanda por liquidez não suscita o aumento da produção e a contratação de novos trabalhadores para satisfazê-la. Por isso, o investimento não deve ser deixado exclusivamente aos caprichos do ganho privado. Deixados à sua lógica, os mercados são incapazes de derrotar a incerteza e a ignorância.

Não é surpreendente que nos trabalhos elaborados para as reuniões que precederam as reformas de Bretton Woods, Keynes tenha tomado posições radicais em favor da administração centralizada e pública do sistema internacional de pagamentos e de criação de liquidez. Ele imaginava que o controle de capitais deveria ser “uma característica permanente da nova ordem econômica mundial”.

Uma instituição supranacional-um banco central dos bancos centrais – seria encarregada de executar a gestão “consciente” das necessidades de liquidez do comércio internacional e dos problemas de ajustamento de balanço de pagamentos entre países, superavitários e deficitários. Keynes pretendia evitar os métodos de ajustamento recessivos e assimétricos impostos aos países deficitários e devedores por um sistema internacional em que os problemas de liquidez ou de solvência dependem da busca da “confiança” dos mercados de capitais.

As instituições multilaterais de Bretton Woods – o Banco Mundial e o FMI – nasceram com poderes de regulação inferiores aos desejados inicialmente por Keynes e Dexter White respectivamente representantes da Inglaterra e dos Estados Unidos nas negociações do acordo, que se desenvolveram basicamente, entre 1942 e 1944. Harry Dexter White pertenceu à chamada ala esquerda dos New Dealers e foi por isso, depois da guerra, investigado duramente pelo Comitê de Atividades Anti-Americanas do Congresso. Seu plano inicial previa a constituição de um verdadeiro Banco Internacional e de um Fundo de Estabilização. Juntos o Banco e o Fundo deteriam uma capacidade ampliada de provimento de liquidez ao comércio entre os países-membros e seriam mais flexíveis na determinação das condições de ajustamento dos déficits do balanço de pagamentos. Isso assustou o establishiment americano. Uns porque entendiam que estes poderes limitavam seriamente o raio de manobra da política econômica nacional americana. Outros porque temiam a tendência “inflacionária” desses mecanismos de liquidez e de ajustamento.

Keynes propôs a Clearing Union, uma espécie de Banco Central dos bancos centrais. A Clearing Union emitiria uma moeda bancária, o bancor, ao qual estariam referidas as moedas nacionais. Os déficits e superávits dos países corresponderiam a reduções e aumentos das contas dos bancos centrais (em bancor) junto à Clearing Union. Uma peculiaridade do Plano Keynes era a distribuição mais eqüitativa do ônus do ajustamento dos desequilíbrios dos balanços de pagamentos entre deficitários e superavitários. Isto significava, na verdade, dentro das condicionalidades estabelecidas, facilitar o crédito aos países deficitários e penalizar os países superavitários. O propósito de Keynes era evitar os ajustamentos deflacionários e manter as economias na trajetória do pleno-emprego. A proposta também sofreu sérias restrições dos Estados Unidos, país que emergiu da segunda guerra como credor do resto do mundo e superavitário em suas relações comerciais com os demais.

O enfraquecimento do Fundo, em relação às idéias originais, significou a entrega das funções de regulação de liquidez e de emprestador de última instância ao Federal Reserve. O sistema monetário e de Bretton Woods foi menos “internacionalista” do que desejariam os que sonhavam com uma verdadeira ordem econômica mundial.

Por Luiz Gonzaga Belluzzo.

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Não se pode brincar com o sistema

Cozido e fervido nos temperos e pruridos ideológicos de Henry Paulson e Ben Bernanke, o colapso do Lehman Brothers custou mais aos contribuintes do que pesaria em seus bolsos uma intervenção tempestiva, corajosa e sem preconceitos. A hesitação do Federal Reserve e do Tesouro americano fez saltar os ponteiros que marcam o grau de desconfiança dos investidores.

A vacilada das autoridades provocou conseqüências nefastas. Por um lado, ela acelerou os saques nos fundos mútuos e fundos de hedge administrados por bancos de investimento, induzindo as instituições a queimar os ativos ou a bloquear as retiradas. De outra parte, precipitou a corrida para a retirada de recursos das aplicações de curto prazo que financiavam posições alavancadas nos ativos originados em empréstimos hipotecários e outras operações de crédito securitizadas.

A clientela bancária cuidou de retirar os depósitos das instituições menores e mais frágeis para concentrar o rico dinheirinho nos bancos de maior porte. Os sobreviventes, por sua vez, adotaram os critérios mais rigorosos de concessão do crédito e, assim, fizeram periclitar as instituições ilíquidas, mas solventes. Em tais condições, é mínima a distância que separa a iliquidez da insolvência.

Nos momentos de crise financeira, sustenta o economista Franklin Allen, da Wharton School, a interação entre as instituições e os mercados pode levar a situações críticas em que os preços dos ativos não refletem os fluxos de receitas gerados por eles, mas sim a “disposição do mercado” em adquiri-los. Em tais circunstâncias, a derrocada dos preços dos ativos afeta diretamente o valor das carteiras dos bancos. Isso pode levar ao contágio e forçar os bancos à insolvência, mesmo se eles estiverem aptos a cumprir seus compromissos, caso continuassem a operar até o vencimento dos empréstimos.
Keynes considerava que a formação de preços dos ativos dependia do “equilíbrio” de opiniões entre altistas e baixistas, ou seja, entre os dispostos a vender e os inclinados a comprar. Isso significa que, quando a opinião está dividida entre “comprados e vendidos”, não ocorrem desequilíbrios nos mercados financeiros e na liquidez capazes de perturbar a trajetória estável da economia.

Se, ao contrário, as opiniões se concentram numa só direção, a atuação “normal” e rotineira do banco central é ineficaz para estabilizar a economia. Caso venha a ocorrer, por exemplo, uma “polarização de opiniões” comandada pelos baixistas, a formação de preços se torna errática, para não dizer inexistente. As flutuações pronunciadas nos preços dos ativos podem comprometer a liquidez e a solvência de todos os agentes, bancos, empresas e famílias.

Há quem se revolte contra a intervenção dos governos, destinada a impedir o colapso das instituições financeiras. Foi de inconformismo a reação de alguns críticos à medida provisória do governo brasileiro que permite a aquisição de instituições com problemas de liquidez pelos bancos públicos.

Mas bancos centrais e as autoridades do Tesouro estão obrigados a intervir para domar “a mula-sem-cabeça” dos mercados infectados pela desconfiança. Deixar o bicho à solta é grave irresponsabilidade. Entregue à sua própria dinâmica, a crise de liquidez transforma-se na crise de crédito, depois transfigurada num festival de insolvências. Nos países da periferia, a sarabanda pode terminar num triste episódio de fuga da moeda local e caos monetário.

Os bancos comerciais são instituições singulares: responsáveis pela criação de moeda, dispõem da faculdade de avançar poder de compra, até então inexistente, aos proprietários de riqueza, a partir da avaliação dos riscos de crédito. Não são simples intermediários financeiros, mas detêm a prerrogativa de conceder empréstimos que excedem o valor de seus depósitos. A capacidade dos bancos, em conjunto, de expandir o crédito e, portanto, de criar depósitos que servem como meio de pagamento vai depender, numa economia fechada, da demanda do público e das condições impostas pelo banco central para o abastecimento de liquidez aos integrantes do sistema bancário.

A visão convencional supõe que as decisões privadas são “estabilizadoras”: as expectativas são racionais e, portanto, os “erros” de avaliação são residuais e absorvidos pela capacidade dos agentes – diante das informações disponíveis – de decidir de acordo com o modelo “correto”, ou seja, conforme as leis universais – válidas em qualquer tempo e lugar – que regem a trajetória de longo prazo da economia de mercado competitiva.

Quem tem um mínimo conhecimento do assunto sabe que, na história da economia mercantil-capitalista, as incessantes transformações nos regimes monetários e financeiros resultam do conflito permanente entre as “regras” do jogo e a compulsão dos possuidores de riqueza para transgredi-las. Não há, portanto, um “modelo” e muito menos um conjunto de regras de gestão que possam ser tomados como absolutos.

Resta falar da troca de moedas entre os bancos centrais. Os gestores das moedas nacionais são, ademais, partícipes de um sistema universal e “hierarquizado” de pagamentos e de liquidez. Os que administram moedas conversíveis, isto é, aquelas que denominam em grande escala as transações financeiras e de mercadorias no mercado mundial, estão relativamente protegidos das flutuações entre suas moedas. Para elas há quase sempre um “ponto de compra” ou existem mercados de hedge líquidos e profundos, onde os agentes “comprados” e “vendidos” nas distintas moedas podem buscar proteção contra eventuais flutuações cambiais a um custo conveniente. Ainda assim, num momento de fuga desabalada para a liquidez, os detentores de riqueza correm para a moeda-reserva, último refúgio dos capitais outrora destemidos, agora medrosos.

Já os que emitem moedas inconversíveis estão obrigados, no mundo globalizado, a segurar as reservas em moeda forte e manter os excedentes comerciais de forma permanente. Esses bons fundamentos podem, no entanto, não ser suficientes para impedir as vendas maciças da moeda local. Os bancos centrais ficam dilacerados: conter a desvalorização da moeda local ou impedir a invasão de seu território pelas forças recessivas que dominam a economia global. Expostos à fuga de capitais, os países de moeda inconversível dificilmente serão capazes de aplacar com a elevação dos juros os movimentos abruptos de desvalorização do câmbio.

Por Luiz Gonzaga Belluzzo.

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O insaciável Moloch

O indivíduo racional e maximizador da utilidade é a argamassa do pensamento social dominante. Nas versões eruditas ou nas traduções vulgares, a hipótese da racionalidade individual é um pressuposto metafísico da ideologia dominante, necessária para apoiar a “construção” do mercado como um servo-mecanismo capaz de conciliar os planos individuais e egoístas dos agentes.

Para esse paradigma, a sociedade onde se desenvolve a ação econômica é constituída mediante a agregação dos indivíduos, articulados entre si por nexos externos e não necessários, tais como os que atavam Robinson Crusoe a Sexta-Feira. Essa operação ideológica permite a oposição entre Estado e Mercado como instâncias antitéticas da vida social. Trata-se de uma operação de “limpeza ideológica” que pretende eliminar as condições em que se trava a luta social, conflito que nasce na “esfera das necessidades”, ou seja, no âmbito das relações de produção e da concorrência, inescapavelmente mediado na esfera política pela intervenção do Estado.

Na visão liberal conservadora, Estado e Mercado deixam de ser instâncias da constituição do capitalismo enquanto sistema histórico de relações sociais, políticas e econômicas e passam a representar alternativas abstratas de organização da sociedade. Desde o início dos anos 1980, sob a liderança de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, foi desaçaimada a ofensiva global – ideológica e política – contra as práticas do Estado regulador e os direitos criados pelo Estado do Bem-Estar. A “ideologia economicista” que viria conquistar os corações e as mentes de todos estava comprometida com uma idéia fundamental: é preciso libertar as forças criativas da iniciativa privada e permitir a fluência mercantil, na medida do possível desimpedida das restrições impostas pela intervenção estatal.

Os liberais de todos os matizes sustentam que o Estado interventor criou uma clientela que, entre outras coisas indevidas, quer garantia de emprego, além de sombra e água fresca, tudo fornecido graciosamente pelo Estado munificente. Garantem os adversários do Estado Social que a insistência em políticas “irracionais e populistas” produziria menos crescimento e mais desemprego a longo prazo, ao contrário do que pretendem os defensores das iniciativas voltadas intencionalmente para contrabalançar os efeitos dos solavancos da economia. Numa versão um pouco mais sofisticada, essa pérola poderia ser assim engastada nos adornos do livre-pensamento: está fadada ao fracasso qualquer proposta de intervenção, em nome da segurança coletiva, que esteja em desacordo com as hipóteses científicas da escolha racional do indivíduo “utilitarista”, cuja ação deve estar apenas limitada por restrições impostas pela escassez de recursos e pelo funcionamento dos mercados competitivos.

A recomendação para os mercados financeiros, por exemplo, é a desregulamentação e a eliminação das barreiras à entrada e saída de capital-dinheiro nos países, sejam fracos ou fortes, de modo que a taxa de juro possa exprimir, sem distorções, a oferta e a demanda de “poupança” nos espaços integrados da finança mundial.

Para os mercados de bens, submeter as empresas à concorrência global, eliminando os resquícios do protecionismo ou quaisquer políticas deliberadas de fomento. E para os mercados de trabalho, a flexibilização e a remoção de cláusulas sociais, ineficientes e danosas para os trabalhadores.

Tais reformas devem ser levadas a cabo num ambiente macroeconômico em que a política fiscal esteja encaminhada para uma situação de equilíbrio intertemporal sustentável e a política monetária controlada por um banco central independente. Essas condições macroeconômicas significam que as duas dimensões públicas das economias de mercado – a moeda e as finanças do Estado – devem ser administradas de forma a não perturbar o funcionamento das forças que sempre reconduzem a economia privada ao equilíbrio de longo prazo.

Mas escapou a esse ideário bem-comportado que os fenômenos centrais do capitalismo destravado de nosso tempo são o acirramento da concorrência entre as grandes empresas internacionais, a escalada da financeirização e as rápidas mudanças na geoeconomia mundial. As posições relativas de países, continentes e classes sociais sofrem, já há algum tempo, alterações tão radicais quanto perturbadoras.

O economista de Harvard Richard Freeman diz, em artigo recente, que a velha conversa sobre os benefícios do comércio – na situação em que os países avançados produzem bens de alta tecnologia com trabalho qualificado enquanto os menos desenvolvidos se dedicam aos setores de mão-de-obra não qualificada – “tornou-se obsoleta com a presença da China e da Índia”.

Nos anos 90, Paul Krugman, o economista recém-laureado com o Nobel, patrocinou uma cruzada ideológica contra os movimentos antiglobalização que protestavam pela perda dos bons empregos americanos para os trabalhadores produtivistas da Ásia. Em artigo recente sobre os efeitos da migração de empresas para a China, Krugman foi obrigado a reconsiderar seus pontos de vista. Os moradores de Flitch, no estado de Michigan, perderam o emprego na fábrica de autopeças fechada sob pressão da concorrência chinesa.

Indagado sobre o destino dos desempregados, o economista Gregory Mankiw respondeu candidamente: “As pessoas têm de se mover”. Afirmou isso depois de ter proclamado a necessidade de se ministrar um curso de economia no ensino médio para que o público em geral possa ter uma visão mais acurada da globalização.
A internacionalização da economia é um fenômeno constitutivo do capitalismo, o que não significa que haja uma única maneira de lidarmos com os processos que a constituem. É fácil, hoje em dia, confundir as limitações crescentes impostas ao Estado-nação com a construção de um espaço de livre circulação dos indivíduos, promovido pelo movimento desembaraçado de mercadorias e capitais. Os entusiastas da globalização asseguram que a liberdade humana decorre do impulso natural do homem à troca, ao intercâmbio, à aproximação por meio do comércio etc. Adam Smith corretamente chamou a atenção para o caráter libertador da economia mercantil capitalista e para as suas potencialidades. Marx, herdeiro e defensor das postulações do Iluminismo e da Revolução Francesa, indagou se as relações de produção e as forças produtivas do capitalismo permitiriam, de fato, a realização da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade.

O capitalismo pode ser definido como a coexistência entre a enorme capacidade de criar, transformar e dominar a natureza, suscitando desejos, ambições e esperanças, e as limitações intrínsecas à sua capacidade de entregar o que prometeu. Não se trata de uma perversidade, mas do seu modo de funcionamento.

As novas formas financeiras contribuíram para aumentar o poder das grandes corporações. As fusões e aquisições suscitaram um maior controle dos mercados e promoveram campanhas contra os direitos sociais e econômicos, considerados um obstáculo à operação das leis de concorrência. A abertura dos mercados e o acirramento da concorrência coexistem com a tendência ao monopólio e, assim, restringem a soberania estatal e impedem que os cidadãos, no exercício da política democrática, tenham capacidade de decidir sobre a própria vida.

Na visão de Elizabeth Roudinesco, o sujeito moderno, aquele “consciente de sua liberdade, mas atormentado pelo sexo, pela morte, pela proibição”, é substituído pela concepção “mais psicológica de um indivíduo depressivo que foge de seu inconsciente e está preocupado em retirar de si a essência de todo o conflito”.

Os trabalhos de destruição da subjetividade moderna são realizados por uma sociedade que precisa exaltar o sucesso econômico e abolir o conflito. As ciências humanas e sociais contemporâneas exprimem essas necessidades da sociedade capitalista, ou seja, desse sujeito abstrato, mediante duas visões: a universalidade naturalista, deduzida de disciplinas sérias como as neurociências ou a genética e a diversidade do culturalismo empírico.

Para os primeiros, os males do mundo podem ser solucionados com doses maciças de Prozac ou de qualquer substância química capaz de aliviar o sofrimento dos “aparelhos biológicos”. Para os outros, os do culturalismo, o melhor é abandonar as dores que acompanham a constituição de um saber universal e eternamente inacabado, refugiando-se na completude do mundo mítico e mágico das verdades particulares e supostamente originárias. As duas visões do sujeito, aparentemente antitéticas, têm em comum o horror à diversidade concreta e irredutível do mundo da vida. Esse horror não pode ser aplacado pela sociabilidade do mercado que transforma o Outro num inimigo-competidor.

Apoiados em convenções e constrangidos pela concorrência, essas subjetividades, os detentores de riqueza não podem escapar dos estados de euforia e apetite pelo risco que culminam na decepção, na crise e na desvalorização da riqueza. Os indivíduos racionais e calculadores são atropelados pela “busca desesperada da riqueza líquida”, a volúpia coletiva pela forma geral da riqueza que, em seu movimento maníaco, termina por destruir não só as suas formas particulares como também os particularismos dos indivíduos tomados pelo instinto de manada. Em todas as crises, o descontrole da manada só é aplacado com intervenções de suporte de liquidez que visavam e visam impedir que a busca da riqueza geral produza a generalização do empobrecimento causado pela “sagrada fome do ouro”. Auri Sacra Fames.

A intervenção salvadora dos bancos centrais, sem dúvida, corre o risco de fortalecer a crença de que os desatinos dos investidores estarão sempre a salvo de perdas pronunciadas e definitivas. As eventuais crises seriam momentâneas, apenas oportunidades em que se apresentariam pontos de compra convidativos para o início de uma nova temporada de alta generalizada.

Ainda assim, a experiência dos últimos anos, estimulada, entre outras causas, pela imprevidência do ex-presidente do Banco Central dos EUA Alan Greenspan, não é suficiente para assegurar que a sucessão de episódios de euforia e depressão vá terminar sempre com a salvação dos protagonistas mais alavancados.
Os ataques frenéticos de desorientação e desespero são apenas os aspectos mais explicitamente homicidas do capitalismo “financeirizado”. Nele, a pretensão dos bem-sucedidos de acumular “tempo livre” sob a forma de capital fictício é, ao mesmo tempo, a “liberação” dos dependentes para as agruras do desemprego, da crescente insegurança e precariedade das novas ocupações, da queda dos salários reais, da exclusão social.

Nesse ambiente darwinista são cada vez mais freqüentes as arengas dos economistas, sacerdotes da religião dos mercados, contra as tentativas dos simples cidadãos e cidadãs de barrar a marcha do Moloch insaciável e ávido por expandir o seu poder. A grita dos sábios da finança é desferida contra os “desvios” da política, os surtos de “populismo”. Com esses slogans os ideólogos pretendem enquadrar a sociedade na camisa-de-força de uma suposta racionalidade econômica.

Os mercados e seus agentes, diga-se, não estão certos nem errados. Estão simplesmente obrigados a tomar decisões que, em seu imaginário peculiar, são as apropriadas para proteger ou acrescentar o valor de sua riqueza. Na verdade eles são “pensados” por uma lógica que não controlam.

Por Luiz Gonzaga Belluzzo.

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