fetec@fetecpr.com.br | (41) 3322-9885 | (41) 3324-5636

Por 18:25 Sem categoria

A Revolta da Chibata: há 100 anos, uma luta dos trabalhadores brasileiros!

A Revolta da Chibata: há 100 anos, a saga do Almirante Negro e seus companheiros – 1

CARLOS LOPES

Há 100 anos, no dia 22 de novembro, a Revolta da Chibata colocava fim ao mais repugnante resquício, até então, da escravidão. Apesar de decorrido um século, há ainda polêmica sobre esse acontecimento histórico. No entanto, a Marinha de hoje não é a mesma de um século atrás. Portanto, é possível ver que a Revolta da Chibata foi um acontecimento que livrou-a de uma mancha indigna.

A chibata fora introduzida na Marinha pelo almirante Cochrane e outros ingleses durante a Guerra de Independência. Em 1862, os castigos corporais levaram a uma polêmica parlamentar, com a defesa, pelo então deputado Tavares Bastos, da sua abolição. Permaneceu, porém, aquela mentalidade escravocrata, retratada por Gastão Penalva no almirante monarquista Luís Filipe Saldanha da Gama: “Saldanha, sobretudo, foi um temível chibateiro. Educado e fidalgo, originário do mais precioso estofo marinheiro – descendente dos Gama – filho dileto dos mais limpos armoriais do reino, impunha no seu navio a deplorável usança como torpe relíquia a conservar-se nos obscuros museus do crime” (cit. por Evaristo de Moraes Filho in Edmar Morel, “A Revolta da Chibata”).

A proclamação da República tornou ilegal a chibata. Os monarquistas da revolta da Armada a exumaram. Foi outra vez proibida pelo almirante Júlio César Noronha, ministro da Marinha do governo Rodrigues Alves. Mas, a despeito da posição do seu sucessor, almirante Alexandrino de Alencar, que conhecia bem – e amistosamente – desde jovem o líder da Revolta da Chibata, ela voltara a afligir os marinheiros, em geral negros, da então terceira maior esquadra do mundo.

Após um castigo de 250 chibatadas de um marinheiro do encouraçado Minas Gerais, a revolta estourou. Seu líder, o principal timoneiro do encouraçado, João Cândido, telegrafou ao Palácio do Catete: “Não queremos a volta da chibata. Isso pedimos ao presidente da República, ao ministro da Marinha. Queremos resposta já e já”.

E, na proclamação ao ministro da Marinha, depois de apresentar suas razões, diziam os marinheiros: “Por isto pedimos a V. Exa. abolir o castigo da chibata e os demais bárbaros castigos pelo direito da nossa liberdade, a fim de que a Marinha Brasileira seja uma Armada de cidadãos, e não uma fazenda de escravos, que só têm dos seus senhores o direito de serem chicoteados”.

O governo do marechal Hermes da Fonseca, que recém tomara posse, enviou o comandante da Marinha e deputado José Carlos Carvalho para conversar com os marinheiros. Eis um trecho do relato deste comandante ao Congresso:

“… perguntei quem se responsabilizava por aqueles atos. Responderam-me: ‘todos’. E um deles acrescentou: ‘estamos em um verdadeiro momento de desespero; sem comida, muito trabalho, e as nossas carnes rasgadas pelos castigos corporais que chegam à crueldade. Não nos incomodamos com o aumento de nossos vencimentos, porque um marinheiro nacional nunca trocou por dinheiro o cumprimento de seu dever e os seus serviços à Pátria. (….) Nada queremos senão que nos aliviem dos castigos corporais, que são bárbaros, que nos deem meios para trabalhar compatíveis com nossas forças. V. Sª pode percorrer o navio, para ver que está tudo em ordem, e até o nosso escrúpulo, sr. comandante, chegou a este ponto: ali estão guardando o cofre de bordo quatro praças, com as armas embaladas; para nós aquilo é sagrado. Só queremos que o sr. presidente da República nos dê liberdade, abolindo os castigos bárbaros que sofremos, dando-nos alimentação regular e folga no serviço. V. Sª vai ver se nós temos ou não razão’. Mandaram vir à minha presença uma praça que tinha sido castigado na véspera. As costas desse marinheiro assemelhavam-se a uma tainha lanhada para ser salgada”.

Posteriormente, no discurso em que propôs a anistia aos revoltosos, diria o senador Ruy Barbosa:

“… é necessário não esquecermos o valor da gente que tripula essas máquinas de guerra. Digamo-lo, com alguma vaidade, com algum desvanecimento, por honra dos nossos compatriotas. O que constitui as forças das máquinas de guerra não é a sua mole, não é a sua grandeza, não são os aparelhos de destruição – é a alma do homem que as ocupa, que as maneja, e as arremessa contra o inimigo. As almas dessas máquinas que povoam os nossos grandes dreadnoguths [vasos de guerra], hoje, em nossa baía, sejamos justos (…), as almas desses homens têm revelado virtudes que só honram a nossa gente e a nossa raça. (…) Gente dessa ordem não se despreza. (…) Estes castigos foram abolidos por ato legislativo do Governo Provisório. Abusos com os quais, na gloriosa época do abolicionismo, levantamos a indignação dos nossos compatriotas, quando nos batíamos pela liberdade, abusos que fazem desconhecer no soldado e no marinheiro as qualidades principais daqueles que têm de expor a vida para defender a Nação. A escravidão começa por desmoralizar e aviltar o senhor antes de desmoralizar o escravo”.

No entanto, não era essa a mentalidade predominante no governo da época – o que haveria de ser demonstrado pela traição à anistia – que é melhor representada, como disse Evaristo de Moraes Filho em seu prefácio à obra clássica de Edmar Morel, “A Revolta da Chibata”, pelo elitismo do então ministro da Guerra, Dantas Barreto, ao descrever os danos à casa do comandante do Batalhão Naval: “A casa do comandante Marques da Rocha, um primor de arte nos seus arranjos e decorações interiores, onde aos domingos aquele oficial levava homens da mais elevada categoria social do Brasil para almoços ou jantares especiais, estava como as outras construções da ilha [das Cobras], toda crivada de balas, com as paredes esboroadas, pinturas e quadros inutilizados por completo”.

Aos 87 anos, no dia 28 de março de 1968, o líder da revolta da Chibata concedeu entrevista para os arquivos do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Os trechos a seguir são dessa entrevista, realizada pelo historiador Hélio Silva, pela jornalista Dulce Alves, pelo superintendente do museu, Sérgio Junqueira e por seu diretor-executivo, Ricardo Cravo Albim, com a paritcipação do filho mais novo de João Cândido, Adalberto Cândido.

Entrevista do líder da Revolta da Chibata ao MIS, em 1968

Hélio Silva – Se hoje você voltasse a ser o mesmo marujo daquele dia [22 de novembro de 1910], você teria agido hoje como agiu?

JOÃO CÂNDIDO – Teria agido da mesma forma.

H.S. – Com que idade você ingressou na Marinha?

JOÃO CÂNDIDO – Com 14 anos. Pertenci à Marinha de 5 de dezembro de 1895 a 30 de dezembro de 1912. Eu entrei na Marinha com 14 anos e entrei bisonho. Entrei bisonho, toda luz que me iluminou, que me ilumina, graças a Deus, que é pouca, foi adquirida, posso dizer, na Marinha.

H.S. – Você teria, se possível, pertencido até hoje à Marinha?

JOÃO CÂNDIDO – Certamente. Eu estaria afastado já, pois já teria passado da idade.

H.S. – Você não guarda queixas da Marinha?

JOÃO CÂNDIDO – Não, nenhuma.

H.S. – Você não tem queixas do mar?

JOÃO CÂNDIDO – Não, o mar é meu amigo.

H.S. – No Brasil, legalmente, o castigo corporal foi abolido com a proclamação da República…

JOÃO CÂNDIDO – O terceiro decreto assinado por Deodoro foi abolindo o castigo corporal nas Forças Armadas.

H.S. – Por que faltas eram castigados os marinheiros?

JOÃO CÂNDIDO – Pelas mínimas, mínimas faltas. Era só antipatia. Tomava antipatia do oficial, pronto.

H.S. – Como era chicoteado o marinheiro?

JOÃO CÂNDIDO – Amarrados em um aparelho, um ferro que tem na coberta dos navios, eram expostos ali, amarrados e castigados brutalmente.

H.S. – Nus da cintura para cima?

JOÃO CÂNDIDO – Nus da cintura para cima.

H.S. – E a marujada formada, era um espetáculo público?

JOÃO CÂNDIDO – Era um espetáculo público.

H.S. – Como era esse instrumento de suplício?

JOÃO CÂNDIDO – Quando não eram as varas de marmelo, era uma corda intitulada corda de barca, linha de barca, e sempre os carrascos colocavam agulhas e pregos, preguinhos pequenos, na ponta cobertos…

H.S. – Alguma vez você foi chicoteado?

JOÃO CÂNDIDO – Não senhor, graças a Deus.

Ricardo Cravo Albin – Por que, com o seu tratamento, pelo menos ao senhor um tratamento correto, o que lhe deu o germe que culminou nesta revolta?

JOÃO CÂNDIDO – Vamos entrar nesse assunto. Já de moço, a rapaziada congregava muitos moços, eles sempre tinham uma certa confiança em mim. Eu, mesmo em criança, já era líder até dos velhos. Eu tinha interesse pelo bem estar de todos, pela saúde de todos e essas coisas.

H.S. – Havia uma conspiração em curso, um movimento articulado para um determinado protesto ou foi uma coisa que num dado momento espontâneo se generalizou?

JOÃO CÂNDIDO – Havia uma conspiração, havia uma conspiração de protesto. E a Marinha seguramente sabia, a Marinha toda sabia. Foi um movimento organizado. Levamos mais de dois anos como movimento organizado.

R.C.A. – Quais eram os outros chefes?

JOÃO CÂNDIDO – Dias Martins, que comandou mais tarde o cruzador “Bahia”, Gregório do Nascimento que mais tarde comandou o encouraçado “São Paulo”, André Avelino que comandou o encouraçado “Deodoro”. Todos congregaram os marinheiros dos navios em que serviam e outras repartições.

H.S. – Esse movimento pretendia, realmente, tomar conta de navios e fazer um ultimato ou pretendia lançar apenas um protesto, esperando que fosse bem ouvido?

JOÃO CÂNDIDO – Não senhor, nós pretendíamos era impor, impor como impusemos. Nada nos foi oferecido, nós só impusemos, queremos isso e tem que se decidir por isso. Há mil inimigos, inimigos a que pouca importância dou, eles criticam a revolta dos marinheiros, por esse ou aquele motivo. A chibata, na Marinha do Brasil, aqueles oficiais ingleses, Cochrane e outros que eram piratas na Marinha inglesa, expulsos de lá andaram pelo mundo roubando. Primeiro, organizou a Marinha chilena, depois veio para o Brasil, aqui no Brasil ele impunha. Eu, quando vim para a Marinha, ainda encontrei uma porção de oficiais ingleses contratados. Oficiais austríacos, portugueses, ainda na Marinha.

H.S. – No momento em que você tomou conta do navio, você tinha uma especialização, era marinheiro de primeira classe, portanto, você era um marinheiro já com certos estudos. Era o primeiro timoneiro…

JOÃO CÂNDIDO – Do Minas Gerais.

H.S. – Como foi possível você, assumindo o comando, dirigir as manobras do navio, você já tinha prática de fazer isso sob o comando dos oficiais?

JOÃO CÂNDIDO – Já, já. A gente já tinha prática, estava tudo dividido. (…) todas as frações, quem devia ocupar os postos de combate…

H.S. – Então a marujada executou aquilo que estava habituada a executar, apenas os oficiais não estavam dando ordens…

JOÃO CÂNDIDO – Quem estava dando as ordens era eu. Para o Minas Gerais e para todos os navios que haviam aderido ao movimento de pronto, além de que julgamos inconveniente e dispensamos. Dispensamos, não, aproveitamos a tripulação nos navios que estavam com a revolução.

H.S. – Você declara em seu depoimento: “o resto foi rotina de um navio de guerra”.

JOÃO CÂNDIDO – Além dos conhecimentos que já tínhamos na Marinha, ganhamos mais conhecimentos durante o tempo que estivemos lá assistindo à construção da nova esquadra. Eu, na Marinha, posso dizer, a arte de governar navio não é difícil, mas é espinhosa.

Continua na próxima edição

======================================

A Revolta da Chibata: há 100 anos, a saga do Almirante Negro e seus companheiros – 2

Continuação da edição anterior

Entrevista do líder da Revolta da Chibata, João Cândido, ao Museu da Imagem e do Som, no Rio de Janeiro, em 1968

Hélio Silva. – Eu queria que você contasse o que se passou nesses seis dias do seu domínio sobre a esquadra, depois contasse o resultado desse movimento e a sua vida como passou.

JOÃO CÂNDIDO – Depois ao estourar o movimento, isso foi no dia 22 de novembro de 1910, primeiro entramos em contato com o governo do Marechal Hermes. Recebemos por meios telegráficos que ele não confabulava com os revoltosos. Esta foi a resposta do Marechal. Então resolvemos nos fazermos ao mar, até que o governo tomasse outra atitude. Nós nos fizemos ao mar, fomos para alto mar. Depois começou aquela confusão, de ataca, não ataca, e os oficiais do Exército impunham: o governo tinha força para atacar. Como de fato tinha. O governo na época tinha força para atacar, pois tinha uma flotilha de 10 destroieres novinhos, saídos da fábrica no mesmo ano. Havia mais de, talvez, 50 torpedos com cabeça de combate preparadas. Em seguida viemos ao porto depois de dois dias nos abastecermos. Depois entramos em contato novamente com o governo, até que começaram um movimento na Câmara, o da anistia.

O governo enviara seu embaixador. Nós não pedimos embaixador, o governo enviou o seu embaixador, deputado e capitão-de-mar-e-guerra José Carlos de Carvalho, deputado federal pelo Rio Grande do Sul. Entramos em contato. O governo propôs e nós aceitamos na boa fé. Eu tinha a responsabilidade de não molestar a cidade, era um dos compromissos que eu tinha. Depois de quatro ou cinco dias, isso já para o dia 25/26, fora votada a anistia com grande oposição no Senado. Rui Barbosa falando a noite inteira. Irineu Machado achando os deputados encurvados e os jornais da oposição também marretando. Eram paixões partidárias, que não tinham nada a ver com a revolução. Depois aceitei, de acordo com os poderes que tinha, a anistia. Indicamos os oficiais que deviam ocupar os novos postos, todos foram indicados pela revolução, pelos revoltosos, para assumir o comando dos novos navios, os navios que seriam entregues ao governo. Para o “Minas Gerais” foi o capitão-de-mar-e-guerra João Pereira Leite, os outros não me recordo. Para o “São Paulo” eu creio, foi o capitão-de-fragata Raimundo, um caboclo amazonense muito valente e muito meu amigo.

Aceitando a anistia, ficamos à disposição do governo e o governo, para desafronta, preparou uma revolução interna para invadir os navios e assassinar os marinheiros que haviam tomado parte na revolução. O governo fomentara a revolta na Ilha das Cobras, levantando o regimento naval para daí irem para o mar e atacarem os navios cujas tripulações estavam anistiadas, para sacrificar os marinheiros. Nós, os marinheiros do “Minas Gerais” e dos demais navios que ainda nos conservávamos a bordo, tomamos aquilo como uma afronta, que os navios estavam considerados como desarmados e de forma que arrebentara a revolução na Ilha das Cobras, os marinheiros que estávamos a bordo ficamos sem ação. A oficialidade que estava a bordo fugiu. Abandonaram os navios no porto, de forma que os marinheiros novamente me confiaram o comando dos navios que haviam tomado parte na revolta e haviam sido entregues ao governo, e foram abandonados mais uma vez pelos seus oficiais. Levei o ‘Minas’ para me proteger dos bombardeios da Ilha das Cobras. Aqui no Largo do Paço tinha um oficial austríaco, especialista em mira, atirando na Ilha das Cobras, no Morro do Castelo, Santa Cruz e nos navios que estavam com o governo. Então, levei o “Minas Gerais” para ficar protegido do bombardeio da esquadra do governo. Levei lá para a Ilha do Viana, no Estado do Rio. Por isso, dois ou três dias sem comunicações com os oficiais em terra, resolvi vir ao Arsenal de Marinha. No Arsenal de Marinha fui preso, acusado de haver fomentado a segunda revolta, a preparada pelo governo, que era para tirar o efeito da anistia conseguida. A metade já tinham sido deportados, fuzilados em alto mar naquele navio “Satélite”, daquele capitão do Exército, não sei o que, Melo.

H.S. – Você esteve preso naquele calabouço, na solitária onde só você e um companheiro sobreviveram. É uma gruta cavada na pedra, fechada com uma porta de madeira e depois com uma grade de ferro.

JOÃO CÂNDIDO – São dois ou três compartimentos. São prisões ainda do tempo colonial, do tempo dos holandeses, do tempo de Tiradentes. Todos os dias eles iam saber se João Cândido já havia morrido. Eles prometiam de só alimentar e dar água depois que João Cândido morresse. Então eu pedi aos outros que dissessem que eu já havia morrido. No dia que eles abriram, encontraram aquele espetáculo. Na que eu estava, morreram 18 homens.

H.S. – Tinha dois sobreviventes e dezoito mortos.

JOÃO CÂNDIDO – E na segunda, creio que morreram 6 ou 8. Esses cadáveres foram levados para o cemitério do Caju e a administração do cemitério recusara o enterro porque não havia uma declaração oficial. O médico era um oficial-marinheiro, capitão Ferreira de Almeida, creio, capitão-de-mar-e-guerra. Recusara atestar as mortes e por isso no jornal O Correio, que era jornal de oposição ao governo, houve um furo qualquer e a cidade veio a saber. O jornal começou a gritar “onde é que está João Cândido?”. Já os ingleses lá se interessavam, queriam saber onde é que estava João Cândido. Tive oferta oficial, um oficial inglês foi a bordo do “Minas Gerais” e me entregou um oficio do comandante do esquadrão inglês que estava aqui, esse almirante creio que Smith, Smith, entregou oferecendo asilo em nome de Sua Majestade Britânica. Recusamos a oferta inglesa, recusamos a oferta argentina, veio missionário argentino aqui, me entregou o oficio em nome do almirante Sãenz Peña, que era o ministro da Marinha argentina, oferecendo asilo. Tudo isso nós recusamos. Dissemos ao inglês que jamais sairíamos do Brasil. A esquadra inglesa estava aí, já protegendo os interesses ingleses.

H.S. – Quando saiu da prisão, você foi dado como louco, foi mandado para o hospício.

JOÃO CÂNDIDO – Não, aquilo foi um arranjo deles para não depor nos inquéritos que certamente estavam em andamento. Para que eu não depusesse me mandaram para o hospício. Estive lá no hospício, mas lá tinha um grande professor, Juliano Moreira, que me disse: a casa é sua, quando quiser voltar para a ilha volte, a casa é sua. Depois a ilha fora ocupada pelo Exército, o Exército tomara conta da ilha, foram para lá oficiais muito distintos que deram todos os direitos humanos, do homem, aos prisioneiros. Tinha lá um oficial, morreu como Marechal Crispim Ferreira, era um oficial muito distinto, o coronel Saraíba, oficial muito distinto. Teve um também, Alfredo Leão da Silva Pedra.

Ricardo Cravo Albin. – Do hospício você passou para onde?

JOÃO CÂNDIDO – Do hospício voltei para a ilha, para vir responder a Conselho de Guerra.

R. C. A. – Como foi esse Conselho de Guerra?

JOÃO CÂNDIDO – Uma turma dos grandes juristas da época, entre os quais Evaristo Moraes, o velho, Caio Júlio César Monteiro de Barro, Jerônimo de Carvalho, por conta da igreja dos homens de cor, por conta da Igreja do Rosário. Eles só aceitaram a causa com a condição da Igreja não contribuir com um centésimo pelo feito deles, Evaristo e os outros.

Fui ao Conselho de Guerra, João Pessoa era o promotor de guerra, aquele que mataram na Paraíba, João Pessoa. Ele me dissera: vocês estão absolvidos, uns dois ou três meses antes da reunião do Conselho de Guerra. Eram mais de dois mil marinheiros. Só compareceram, creio, 16 ao Conselho de Guerra. De fato, fomos absolvidos. Absolvidos, e eu excluído da Marinha. Não me expulsaram, me excluíram, porque eu tinha tempo demais de serviço, de maneira que não deu mais para que fosse expulso. Excluído por conclusão de tempo legal de serviço.

R.C.A. – Em que dia se deu a sua exclusão, e como passou a viver como seu Cândido?

JOÃO CÂNDIDO – No dia 30 de janeiro de 1912. Passei a viver na vida civil. Muito perseguido pela Marinha.

R.C.A. – De que modo?

JOÃO CÂNDIDO – Queria seguir a vida do mar. Embarcava. Fui para a marinha mercante, embarcava hoje aqui, chegava no primeiro porto, os oficiais da Marinha cassavam meus direitos. Diziam que eu não podia embarcar, pois que era revoltoso. Fiz uma viagem para o Rio Grande do Sul, para a Argentina. Primeiro para o Rio Grande do Sul, navio brasileiro. Cheguei no Rio Grande do Sul, o capitão do porto me cassou os papéis. Voltei para o Rio. Cheguei aqui, fui ao almirante Alexandrino, que era ministro da Marinha, morava no Russel, e pelo telefone ele chamou o capitão dos portos e disse: “entregue os papéis de João Cândido imediatamente, eu também fui revoltoso e sou ministro da Marinha”.

Depois andei lá pela Argentina, andei pela Grécia, embarcando em navio grego e depois deu saudades e eu voltei para o Brasil. Passei para a pesca. Trabalhei 40 anos nos mercados de pesca e no serviço de pesca. Em 59, ali na Praça XV, no entreposto da pesca. No dia em que completei 40 anos, abandonei o serviço. Não tinha resultado, via que ia morrer de fome, abandonei o serviço e fui para o Rio Grande do Sul. O Estado dera-me uma pensão de oito mil cruzeiros, o Estado do Rio Grande do Sul. Hoje, graças a Deus, estou com uma pensão, sabe de quanto? Cinqüenta e oito cruzeiros. Foi quanto eu recebi no Banco do Estado esse mês, e graças a Deus. Representa milhões, para mim, por vir de onde vem, do meu glorioso Rio Grande do Sul. O chofer que esteve lá em casa viu, diploma de cidadão honorífico da Câmara Municipal de Cachoeiro do Sul, da União Estudantil de São João do Meriti e outras coisas mais. Hoje estou com 58 cruzeiros, imagine lá, da para alguém comer?

NOTÍCIAS COLHIDAS NO SÍTIO www.horadopovo.com.br.

Close