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Tamires Gomes, da periferia ao Centro Acadêmico, via Prouni

A primeira mulher negra a presidir um CA no Mackenzie atribui avanços sociais do país aos movimentos, é devota da participação política e avisa aos que se acham donos da política: a juventude pede passagem

tamires mackenzie

Para Tamires, sociedade brasileira nunca foi estimulada a pensar coletivamente. ‘Muita gente confunde democracia com fazer o que quer’

A técnica em laboratório Rosemary Gomes Sampaio, 47 anos, contou com a ajuda dos pais e irmãos para criar a filha única. Moradora da zona leste de São Paulo, trabalhava em posto de saúde da prefeitura paulista enquanto cursava a faculdade de Psicologia em Guarulhos, na região metropolitana. No início da década passada, saiu do aluguel para o atual apartamento em Guaianazes – num prédio de quatro andares, dois dormitórios, sala, cozinha e banheiro. Rosemary sempre foi frequentadora do sindicato dos servidores e ativista do movimento negro. Levava tanto a filha pequena em eventos e manifestações que, Tamires Gomes Sampaio, fã incondicional da mãe, desenvolveu paixão própria por “participar das coisas”.

Tamires faz 21 anos neste 13 de novembro. Desde os 18, começou a militar com as próprias pernas e opiniões em movimentos contra a violência policial sobre a juventude negra e contra a discriminação racial. Em setembro tornou-se a primeira mulher, negra, moradora da periferia, bolsista do Prouni, a presidir o Centro Acadêmico João Mendes Júnior, da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, uma das instituições privadas mais tradicionais de São Paulo. Sua chapa, Catarse, foi formada por integrantes da Frente Perspectiva, coletivo de estudantes de esquerda de diversos matizes ideológicos. Venceu a eleição com maior número de participantes da história do CA, pouco mais de 1.600. “Diante de 6.600 alunos do Direito, é pouco ainda, né?”

Para ela, a participação política é a principal atitude que a sociedade pode ter para mudar a realidade. As políticas de cotas, ações para a juventude pobre, a criação de órgãos como a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e o Estatuto da Igualdade Racial são resultados práticos de demandas dos movimentos sociais transformadas em políticas públicas. “Elas ainda precisam ser melhoradas e ampliadas, mas já surtem efeitos nas condições de vida e na criação de oportunidades para muita gente que não tinha”, avalia, ela própria um exemplo de oportunidade.

Tamires sempre estudou em escola pública. Conseguiu bolsa para fazer cursinho pré-vestibular enquanto terminava o colégio. Por meio das notas no Enem, e graças ao Prouni, conseguiu ingressar, em 2011, e se manter até hoje no Mackenzie. Lá, nunca se considerou diretamente discriminada em razão de sua origem. “É o ambiente da universidade que compõe um retrato mais amplo do processo de discriminação que está na formação da nossa sociedade”, observa. “Você sente ao entrar no campus, passar por um segurança negro, deparar com a faxineira negra no banheiro e chegar numa sala com 80 alunos e apenas quatro negros. E ver outras que não têm nenhum.”

O feminismo discutido fora da questão racial não traz a emancipação de todas as mulheres. Se a gente não consegue protagonismo para todas, não serão todas as emancipadas; será a branca e ‘tudo bem’, vivemos em uma sociedade racista

Como é a rotina de estudante que leva o curso a sério, faz estágio, preside um Centro Acadêmico de quase 60 anos de tradição e ainda participa de movimentos sociais?

(risos) Eu saio de casa às 6h da manhã para chegar na faculdade às 7h30. Com atividade no Centro Acadêmico, fico entrando e saindo no decorrer da aula várias vezes, os professores ficam até meio “assim” comigo. Saio da aula, passo mais um tempo no CA, almoço, vou para o estágio na Secretaria de Promoção da Igualdade Racial da prefeitura, às 13h30, à noite volto para o CA e fico até umas 22h. E aí, se tem manifestação a gente vai, se tem reunião a gente vai… O CA representa 6.600 alunos – só da Faculdade de Direito. Participaram da eleição pouco mais de 1.600 votantes, a maior participação da história da faculdade, e mesmo assim a gente percebe que ainda é pouco, né? É preocupante. É como nas eleições gerais, que tiveram 20% de abstenção. A gente luta tanto por democracia para as pessoas não participarem? Nossa chapa, Catarse, teve 627 votos e uma vantagem de mais de 200 sobre a segunda colocada – e isso foi surpreendente, porque a gente se elegeu dizendo que era de esquerda, que queria fazer o combate às opressões, que faltava horizontalidade para estimular a participação dos alunos nos assuntos da universidade. Na semana seguinte já estávamos organizando sabatinas entre candidatos a cargos legislativos, e temos dito que é preciso estimular o movimento estudantil no Mackenzie. Muitos vêm falar com a gente, parabenizar. E não falta também oposição. Faz parte.

Você observa uma relação de ódio permeando as divergências na sociedade?

Nossa sociedade nunca foi estimulada a pensar coletivamente. Muita gente confunde democracia com “fazer o que a gente quer”. Como se se resumisse a poder votar e seu candidato ganhar, se ele não ganhar os que votaram nos outros estão errados, são burros. E isso acontece com gente de oposição e da situação. A gente vê as pessoas perdendo a capacidade de aceitar a crítica e de ser tolerante com a opinião do outro. Não sei de onde vem essa predisposição. Acho que é um misto de várias coisas. Uma delas é o processo de educação, que não estimula a formação crítica, o pensar, debater ideias. Outra é essa luta de classes diária, parcela da sociedade mais abastada pensa de uma forma, e outra parcela que não teve acesso a tantas oportunidades pensa de outra. São vários pontos de vista sobre o Brasil – e tudo isso é o Brasil – mas essas pessoas não conseguem entender essa diversidade de ideias, cultural, étnica e de gênero que a gente tem. A gente vive em uma sociedade estruturalmente racista, machista, classista, homofóbica, e isso se reflete nessas ações.  

Que tipo de leitura a atrai e faz parte da sua formação?

Gosto muito de filosofia, de ciência política. A nossa chapa, a Catarse, utilizou esse termo porque o Gramsci (o pensador antifascista italiano Antonio Gramsci, 1831-1937) considera catarse a transição de um momento mesquinho, individual, para um momento ético-político em que todo mundo vai ser representado. A gente queria fazer uma catarse no movimento estudantil, para o CA deixar de ser de um grupo e representar a coletividade. Estou lendo muito sobre segurança pública, pois meu trabalho de conclusão de curso vai ser sobre o genocídio da juventude negra. Estou lendo muito sobre o sistema prisional, a desmilitarização da polícia, a mentalidade policial. Esse é o meu foco. Como sou militante do movimento negro, acho que o movimento deve vir até a academia, ocupar a academia para, combinado com pesquisas, dados concretos, trazer a realidade para dentro da academia. Por exemplo, a gente sabe que a Polícia Militar mata três vezes mais jovens negros do que brancos. Se a gente não tiver a academia mostrando que não são dados da minha boca, mas de uma pesquisa de um grupo de pesquisadores da UFSCar, a gente não consegue convencer todo o mundo. A gente vive em um país que viveu dois terços da sua história sob regime de escravidão e, ao assinar a Lei Áurea, um papel, não se acabou o processo de exploração e opressão de uma raça sobre outra. Não foi feita nenhuma política de inserção da raça que foi explorada. E não existe mágica. Esse preconceito histórico se tornou estrutural e, hoje, institucional.

Junho de 2013 foi um momento em que as pessoas foram para as ruas e mostraram que participação social pode mudar o curso de um governo. Os antigos meios de se organizar precisam se transformar também

A polícia pode funcionar sem ter a força da arma e da hierarquia militar?

Não tenho respostas, mas acho que a transformação vem a partir da educação. Falta formação crítica nas escolas, onde vão estudar inclusive crianças e jovens que um dia vão querer ser policiais. Precisa haver uma formação mais humanizada dos policiais, e uma formação mais crítica da sociedade para cobrar que se cumpra a lei. Por exemplo, a Lei 10.639, que exige o ensino da história afro-brasileira. Se a gente tivesse essa disciplina bem aplicada, seria muito diferente. Nossa cultura é muito grande, a religião é muito rica. A ausência do ensino desse processo histórico acaba refletindo na formação da personalidade do negro, que é criado para não ter a autoestima, não ocupar os espaços de poder.

Você é religiosa?

Sou batizada na Igreja Católica, fiz catequese, mas não adotei religião. Ultimamente tenho estudado sobre o candomblé, umbanda. Nas escolas, não se tem noção de que a África é um continente com tanta diversidade. É a partir do movimento negro que você descobre que a diversidade cultural é enorme. Sou muito curiosa. A religião africana é fascinante, orixás, guerreiras… Se, antigamente, as nossas referências de mulheres bonitas eram Branca de Neve e Cinderela, ali você descobre Iansã, Oxum, Iemanjá, princesas guerreiras. Isso é muito bacana porque você passa a ter referência de uma mulher negra bela, guerreira, rainha, com poderes para influenciar positivamente a vida das pessoas, e isso muda bastante a concepção de como você se vê.

Você também atua em questões de gênero? Acompanho alguns grupos. Por exemplo, sou coordenadora nacional do Para Todas, um coletivo de movimentos estudantis, que se organiza nas universidades do Brasil inteiro, a partir da UNE. Acompanho a Marcha Mundial de Mulheres. Minha mãe fez um curso de promotoras legais, que surgiu depois da Lei Maria da Penha e estimula pessoas da comunidade a mediar conflitos, e eu acompanho também. O debate de gênero está muito ligado à questão do racismo, na minha concepção, porque são opressões estruturais. A gente tem de debater isso em todos os espaços porque não é uma questão pontual. O feminismo, em si, é uma questão muito diversa porque, mesmo na questão de gênero, a questão de raça é deixada de lado. É progressista, quer a transformação social, mas se é colocada uma questão de raça, dificilmente é considerada com tranquilidade. De um tempo para cá, as mulheres negras têm se auto-organizado numa vertente diferente, o feminismo negro. Se a mulher branca sofre machismo, a mulher negra sofre o machismo e o racismo, o tratamento diferente, e é importante saber fazer essa ligação e esse recorte.

Os movimentos de mulheres, descolados da questão racial, têm conseguido ampliar mais seus espaços de oportunidade? É uma causa que tem alcançado resultados mais efetivos?

Por exemplo, na minha sala de aula são 80 pessoas, 50 são mulheres. Na maior parte das salas de aula, na universidade, as mulheres têm ocupado os espaços, mas a mulher negra não. São apenas duas universitárias negras na minha sala. O feminismo discutido fora da questão racial não traz a emancipação de todas as mulheres. Cada mulher tem a sua especificidade. Se a gente não consegue dar o protagonismo para todas, não serão todas as que serão emancipadas. Vai ser a mulher branca, porque a gente vive em uma sociedade racista, e tudo bem. A gente tem sempre de fazer esse recorte, porque senão não teremos a emancipação, de fato, de todas as mulheres.

A Dilma é guerreira, enfrentou a ditadura e enfrentou o ódio. E venceu. Que bom. Mas o resultado da eleição mostrou que é preciso diálogo, e o PT voltar às bases. Senão, na próxima vai perder

Você acha que a presidenta Dilma conseguiu uma grande vitória por enfrentar uma situação de massacre da imprensa e mesmo assim vencer, ou acha que o resultado apertado é para o governo e o PT quase uma derrota?

Um pouco das duas coisas. O resultado mostrou para o governo e para o PT que, se continuar esse modo de política e de governo, sem diálogo direto com o movimento social, como aconteceu nos últimos anos, na próxima eleição vai perder. Ainda assim, é uma grande vitória porque prevaleceu sob vários ataques. A Dilma é uma mulher guerreira, que enfrentou a ditadura e se mostrou forte, mostrou que consegue enfrentar qualquer coisa. Enfrentou o ódio. A gente falava que a esperança vai vencer o ódio, o amor vai vencer o ódio, e venceu. Que bom que venceu. Mas o governo e o PT precisam entender que não dá pra fazer política como vem sendo feita nos últimos anos. Se continuar nessa politica de concessão, o governo vai pender para a direita. É perigoso. O PT, historicamente de esquerda, fez uma transformação social muito grande. Se se deixar levar por esse Congresso que aí está, ou por acordos como os que foram feitos nos últimos anos, vai acabar toda a história.

Espero que tanto o PT como o governo tenham entendido esse recado dado pelas urnas. A gente saiu do mapa da miséria. Agora, o negro pode fazer universidade, pode trabalhar no serviço público, em cargos importantes. Tem o Pronatec, o Bolsa Família, vários outros programas que propiciaram uma transformação muito grande. A “nova classe média”, que surgiu no governo do PT, está votando no PSDB. Um colega da chapa conservadora na eleição do CA é negro, prounista e votou no Aécio. Tenho outro colega negro, prounista, filiado ao PSDB. Isso, em muito, culpa do PT que não fez esse debate na sociedade. Precisa fazer, voltar às bases. Dialogar com os movimentos sociais não só no momento da campanha, mas durante os quatro anos de governo.

Em que área do Direito você pretende se especializar? Em princípio penso na área penal, mas preciso amadurecer isso. Sei que quero ser professora universitária. Mas ainda não sei se vou ser advogada… criminal, se vou pleitear o Ministério Público, que foi o que me moveu a entrar na faculdade. Aí a gente vai percebendo que o Ministério Público não funciona como deveria.

Você escreveu em seu blog que 2013 foi um ano “muito louco” em sua vida. Por quê?

Ah, você encontrou meu blog? O ano passado foi especial porque depois dos 18 anos, quando parei de ser uma acompanhante da minha mãe em atividades de militância, passei a ser a militante Tamires. Então participei de congresso da UNE, de encontros de mulheres da UNE, da conferência de igualdade racial – tanto no encontro regional como no nacional –, foi um ano em que mergulhei de cabeça em movimentos sociais, feminista, negro, partido, e isso me transformou muito. Porque a luta transforma, muda o seu modo de ver as coisas, parece que havia uma venda nos meus olhos que sumiu a partir do momento em que mergulhei nela. Por isso 2013 mudou bastante a minha vida. Fora as manifestações de junho, que transformaram a sociedade como um todo. Foi um momento em que as pessoas foram para as ruas e mostraram que a participação social pode mudar o curso de um governo. Foi um momento que mostrou também que os antigos meios de se organizar estão ultrapassados, precisam se transformar também.

Foi um recado contra a política tradicional e os políticos tradicionais. Mas não foi esse o setor que se saiu melhor nas eleições para o Congresso, e quase também na presidencial? O PT perdeu mais que os conservadores pouco identificados pela marca partidária?

Não sei se foi o PT, só. A esquerda em geral, incluídas as organizações e movimentos tradicionais da sociedade que se organizam há muito tempo. Foi passado um recado. Tem de haver uma oxigenação. Terão de passar a ouvir mais essa juventude que está aí e quer lutar – e que não viveu as lutas que eles viveram no passado, mas que viveu essas jornadas de agora e quer se manifestar, quer uma forma diferente de se organizar. Se não houver essa autocrítica, em reconhecer que essa juventude que está se manifestando não quer mais ser comandada por quem se acha dono da política porque é mais velho e participou de outras lutas, esses setores serão engolidos por essa galera que está se organizando de outra forma.

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