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O “efeito China” na economia e na agricultura do Brasil

A China importa 64% da soja comercializada no mercado internacional. Desse total, o Brasil supre 45%. (Portal Brasil/ Reprodução)

 Fabiano Escher (*)

Todos já devem ter ouvido alguma vez a expressão “efeito China”. O efeito China afeta a bolsa de valores. O efeito China acelera ou desacelera a economia global. O efeito China aprecia ou deprecia o câmbio. O efeito China eleva os preços das commodities. O efeito China sustenta o crescimento do Brasil, ou então causa sua desindustrialização. De tão naturalizado, o efeito China parece um fenômeno natural, tipo um furacão, um tsunami. Mas a verdade é que ele tem causas econômicas e sociais definidas. O efeito China tem a ver tanto com as causas provenientes das transformações da China quanto com as especificidades do país em que os efeitos incidem.

O desenvolvimento econômico e a ascensão internacional da China como grande potência representa o fato mais notável do capitalismo na era da globalização. Os ocidentais chamam o sistema econômico chinês de “capitalismo de estado”. O próprio governo chama de “socialismo de mercado com características chinesas”. Nessa controvérsia ficamos com Deng Xiaoping, o pragmático líder que comandou as reformas econômicas na China após a morte de Mao Zedong, que em certa feita declarou: “Não importa se o gato é preto ou branco, desde que pegue os ratos.”

A China, que dependendo de como se mede é a primeira ou a segunda maior economia do mundo, cresceu a uma taxa de 10% ao ano entre 1980 e 2010, 7,5% entre 2011 e 2014, e vem crescendo a 6,5% a partir de então. No mesmo período, sua população passou de 963 milhões para 1,4 bilhão. Antes 82% viviam no campo. Hoje 51% vivem nas cidades. A pobreza – medida pelo critério de 1,25 dólares por dia – reduziu de 64% para 12% da população. A classe média, antes praticamente inexistente, hoje chega aos 30% da população. Era uma economia agrícola; tornou-se a maior economia industrial do mundo; e corre para ser uma economia baseada na inovação.

No plano externo, a China reconfigura a economia mundial. A Europa e principalmente os Estados Unidos, são os compradores em última instância das suas exportações. Superavitária, com o que recebe a China compra os títulos da dívida dos EUA, ajudando a garantir a solvência deste, além de acumular mais de 3 trilhões de dólares em reservas para si. Por sua vez, os países do leste asiático, que lucram muito vendendo para a China, são seus fornecedores de máquinas e equipamentos, peças, componentes e serviços intermediários, que a China transforma em produtos finais e reexporta para os Estados Unidos e a Europa. Já os países da África, do Oriente Médio e da América Latina figuram nessa nova divisão internacional do trabalho como supridores de recursos naturais na forma de commodities agropecuárias, minerais e energéticas, em geral conseguindo acumular superávits comerciais e reservas monetárias, mas de maneira um tanto instável, haja vista a queda nos preços.

É nesse último grupo que se insere o Brasil. O chamado “efeito China” aqui é observável de três maneiras. Primeiro, através dos impactos diretos. No comércio, o Brasil exporta commodities agrícolas e minerais e importa máquinas, equipamentos e eletrônicos, mantendo um saldo comercial positivo, com superávits em produtos primários e déficits em manufaturas e bens de capital. Nos investimentos, por um lado, recebemos a maior parte em fusões e aquisições, principalmente nos setores de petróleo, gás, mineração, energia elétrica e crescentemente agronegócios, e, por outro lado, poucas das nossas empresas têm conseguido entrar na China.

Segundo, através dos impactos indiretos. Entre 2005 e 2012 os termos de troca (a razão entre os preços das nossas exportações e os preços das nossas importações) foram excepcionalmente altos, e de 2013 em diante experimentaram queda e se normalizaram em um patamar mais baixo. Houve nesse período uma tendência de apreciação cambial, associada em certa medida à composição do comércio exterior. Isso guarda relação com a competição que enfrentamos com a China em terceiros mercados, com perdas de mercado nas exportações de manufaturados para Estados Unidos (-12,87%), União Europeia (-5,49%) e América Latina (-7,3%).

Por fim, em terceiro lugar, há ainda consequências estruturais mais amplas, ligadas à “especialização regressiva” da economia brasileira, com os processos de “reprimarização” (mais de 50% do que exportamos são produtos primários agrícolas e minerais) e “desindustrialização” (em 1980 a nossa indústria de transformação representava 33% do PIB e 25% do emprego, hoje representa cerca de 12% em ambos os indicadores).

Mas é no setor agroalimentar que a relação Brasil-China apresenta seu caráter mais emblemático. O filósofo Mêncio, discípulo de Confúcio, disse que nutrir o povo é o primeiro princípio de governo. E que a noção de ‘Mandato do Céu’ (Tianming) expressa a crença de que as calamidades naturais, se causarem desnutrição e fome, eram produtos do mau governo, justificando a retirada do apoio do povo ao regime. A Grande Fome, que resultou na morte de aproximadamente 30 milhões de pessoas nos anos de 1959 a 1961, teve como causas as inundações ocorridas em toda a China, ao que se somaram erros humanos. Mas estes desastres da era Mao legaram uma maior atenção à produção e ao acesso aos alimentos para a população. A segurança alimentar é hoje um requisito fundamental para a estabilidade social e legitimidade política do governo na China.

A questão é que a elevação da renda, a urbanização e a ascensão da nova classe média no mercado interno tem induzido mudanças nas dietas e hábitos de consumo alimentar dos chineses. Diminuiu o consumo de arroz e trigo e aumentou o de carne, leite e pescado. Hoje se come em média 61 quilos de carne por pessoa por ano. Uma média baixa comparada a dos Estados Unidos (120 kg), mas razoável comparada a do Brasil (73 kg) e acima da mundial (42 kg). A principal é a carne de porco. A China produz e consome mais da metade da carne de porco do mundo, o que representa 39 quilos por pessoa/ano, com estimativas de chegar a 50 quilos em 2025. Sua produção, antes dois ou três porquinhos atrás de casa, hoje é cada vez mais em sistema de integração com a agroindústria, como no sul do Brasil. E a alimentação dos porcos não é mais à base de restos de comida ou lavagem, mas crescentemente de ração, a qual tem no farelo de soja o seu principal componente.

A China importa 64% da soja comercializada no mercado internacional. Desse total, o Brasil supre 45%, os EUA 39% e a Argentina 13%. Os chineses esmagam 85% dessa soja na forma de farelo para fazer ração de porco, sendo o óleo um subproduto, e os 15% restantes vão para outros derivados. Em 2003, 54% das exportações de soja em grãos do Brasil iam para a Europa e somente 30% para a China. Mas, em 2013, só 12% da nossa soja ia para a Europa e 75% para a China. Por conta da demanda chinesa e seu efeito nos preços das commodities, as exportações de soja do Brasil cresceram a uma taxa de 8,8% ao ano entre 2001 e 2015, passando de 15,5 para 44,5 milhões de toneladas. A produção de soja cresceu 6,7% ao ano, saltando de 38,4 para 95,4 milhões de toneladas no período. E a área plantada cresceu a 6,2% ao ano, indo de 14 para 33,2 milhões de hectares, empurrando a fronteira agrícola para o MAPITOBA (região fronteiriça entre Maranhão, Piauí, Tocantins e Bahia) e inclusive para o Bioma Pampa gaúcho.

No entanto, a China também é uma potência agropecuária. É o segundo maior produtor mundial, atrás dos EUA e na frente do Brasil. Então por que não produz a soja que consome? A soja convencional ou orgânica, usada para fazer tofú, shoyu e outras comidas, é sim produção interna dos camponeses chineses. Mas a soja transgênica, que não é comida, mas matéria prima para a ração dos porcos é importada. Além da soja, o Brasil também é um supridor chave da China de celulose para papel, tabaco para cigarro e algodão para tecido. A razão é que, como a China tem 21% da população, mas apenas 9% da terra arável e 7% da água doce do mundo, eles acham melhor importar os produtos agrícolas utilizados como matéria prima e usar a pouca terra e recursos naturais que dispõem para produzir aquilo que é alimento básico do povo, como arroz, trigo e milho (embora o último sofra pressão para ser liberalizado como a soja).

Não surpreende, portanto, que a China tenha adotado uma série de estratégias visando assegurar o controle ao acesso dos recursos naturais necessários para o fornecimento de matérias primas e a produção de alimentos. Principalmente através da saída das suas empresas de agronegócio para a realização de investimentos diretos externos. Isso indica a indisposição da China em confiar exclusivamente no comércio mundial, particularmente nos mercados de commodities dominados pelas “quatro grandes” tradings globais, conhecidas como ABCD (Cargill, Bunge, ADM e Dreyfuss).

Num momento inicial, influenciados por suas experiências na África e também na Ásia, os chineses se concentraram na compra de grandes porções de terras tanto no Brasil como na Argentina. Em ambos os países, as reações negativas foram seguidas por leis que limitaram a propriedade de terras por estrangeiros. A negociação de contratos de soja de longo prazo foi então realizada com os governos estaduais, mas estes se tornaram condicionados ao compromisso de investir na capacidade de esmagamento local, o que é contrário ao interesse da China em manter a capacidade e os empregos no seu território. O engraçado é que se falou muito dos chineses comprando terras, mas pouquíssimos casos foram confirmados, enquanto quase nada se fala dos americanos, europeus e japoneses, estes sim comprando vastíssimas extensões de terra Brasil afora.

Então, num momento posterior, a estratégia dos chineses muda da aquisição de terras para o cultivo direto para fusões e aquisições de ativos de empresas do agronegócio com o objetivo de controlar etapas e processos nas cadeias de valor de determinadas commodities em certas regiões chave, principalmente a soja no Mato Grosso, contando inclusive com a construção de infraestruturas de logística, transporte e armazenagem. O caso mais recente é a aquisição da Syngenta pela ChemChina, que hoje controla 8% do mercado de sementes e 20% do mercado mundial de pesticidas, com grande peso nos mercados brasileiro e sul americano. Ainda em 2011 a ChemChina havia adquirido a israelense Adama, com duas fábricas no Brasil, e agora em 2017, por meio da Syngenta, adquiriu a Nidera Sementes da também chinesa COFCO.

Na logística, a China Communications & Construction Company adquiriu a Concremat e estabeleceu a CCC South America, visando investir nos portos e terminais de carga no norte do Brasil, e a China Railway Construction Corporation pretende participar de consórcios para a construção das sonhadas ferrovias. Porém, é a própria estatal COFCO o caso mais decisivo.

Em 2014, as ABCD responderam por 46% dos grãos exportados pelo Brasil, ante 36% das tradings asiáticas, incluindo as japonesas. Mas em 2015 ocorreu uma súbita inversão, quando as asiáticas, incluindo a COFCO, embarcaram 45% dos grãos exportados pelo Brasil, enquanto as ABCD ficaram com 37%. Em 2014 a COFCO adquiriu a holandesa Nidera e a parte agrícola da singapuriana Noble, entrando para o mesmo ranking das ABCD, que agora são as “cinco grandes”. Até já se fala das ABCCD, com o segundo C referindo-se à COFCO, que já entrou dominando 11% do mercado de grãos no Brasil e pretende chegar a 22% nos próximos cinco anos, tornando-se a maior firma do ramo de trading no país.

Essa relação crescente com a China, aqui analisada um pouco mais aprofundadamente para o caso do chamado “complexo soja-carne Brasil-China”, é inevitável e pode ser uma possibilidade interessante e promissora para o Brasil. O problema é que enquanto a China tem uma visão clara das suas prioridades, o Brasil se encontra no momento fragilizado econômica e politicamente, o que torna tarefa difícil a consolidação de estratégias articuladas em benefício mútuo de um segmento tão central para os padrões de consumo que se difundem nos países emergentes. O interesse da China é que o Brasil exporte grãos in natura, cuja agregação de valor se dá dentro do seu território. Para o interesse brasileiro, todavia, a agregação de valor seria a alternativa preferida, até por razões fiscais e de emprego.

Aqui está posto um claro conflito de interesses que só uma política deliberada de favorecimento da agregação de valor em território brasileiro poderia nivelar. Mas, para isso, faz falta uma visão de longo prazo, que busque construir certos consensos entre os atores e instituições envolvidos nos complexos agroindustriais sobre seus papeis na dinâmica geral da economia, bem como sobre questões sociais e trabalhistas, ambientais e de saúde. E, mais do que isso, o Brasil precisa encontrar uma estratégia de desenvolvimento rural que integre questões mais amplas, como geração de emprego e renda, diversidade social e produtiva da agricultura familiar, justiça social e distributiva, segurança alimentar nutricional e sustentabilidade ambiental. Mas nem a China nem ninguém pode fazer isso por nós. É nossa tarefa construir uma economia e uma agricultura mais soberanas e compatíveis com o interesse de todo o povo brasileiro.

(*) GEPAD é um grupo de pesquisa sobre agricultura familiar e desenvolvimento rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Artigo colhido no sítio https://www.sul21.com.br/jornal/o-efeito-china-na-economia-e-na-agricultura-do-brasil/

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