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Bendita Previdência

Aposentadorias e demais benefícios da Previdência brasileira são o maior programa de proteção social da América Latina. Crucial para milhões de famílias, o tema não é para o bico de alguns economistas, colunistas e políticos. Pertence a toda a sociedade

“Meu nonno, aos 80 e poucos anos, estava carpindo, se sentiu mal e parou. Ficou de cama três dias e morreu. Meu pai também morreu carpindo, com a enxada na mão”, lembra, misturando tristeza e orgulho, José Chiese, morador do município de Embu-Guaçu, na grande São Paulo. Chiese é agricultor, acostumado a trabalhar pesado. “Meu pai ficou doente e passou um ano de cama. Aos 14 anos, tive de largar a escola para ajudar meu avô”, conta. Hoje, aos 82 anos, há três com um marca-passo no coração, José Chiese não tem mais o mesmo pique, mas sua vida é um pouco menos difícil que a do pai e do nonno. Há 14 anos é aposentado pelo INSS. “Se não fosse isso, muitos velhinhos iam passar fome”, diz. Ele e a mulher, Lúcia Brunelli, de 78 anos, ainda cuidam de galinhas, vacas, plantam frutas. Mas o rendimento não é mais o mesmo. “A gente ainda trabalha o dia todo, desde cedinho”, conta dona Lúcia, também aposentada rural. “Senão, não ia dar.”

Seu José e dona Lúcia fazem parte das 28 milhões de pessoas no Brasil que têm na aposentadoria sua principal fonte de renda. Segundo dados do IBGE, em 2003, a Previdência beneficiava 76,3 milhões de pessoas, entre aposentados, pensionistas e seus familiares, atingindo 43% da população brasileira. É, portanto, o maior programa social do país.

Apesar disso, a Previdência só aparece na mídia como “vilã do desenvolvimento”, já que vem quase sempre junto da expressão “déficit”. Assim, os especialistas de plantão costumam dizer que o Brasil “gasta” muito, por isso não consegue investir em infra-estrutura ou diminuir impostos. Essa é uma visão meramente contábil de um problema muito maior que um livro-caixa.

O conceito de seguridade social hoje vigente no Brasil vigora desde a Constituição de 1988. Desde então, trabalhadores rurais passaram a ter direito a aposentadoria e benefícios como auxílios doença e acidentário. Além disso, o piso básico de todos os benefícios passou a ser fixado pelo salário mínimo, incluindo de uma só vez milhões de trabalhadores.

“Foi o mais importante esforço de modernização da história da Previdência Social brasileira”, avalia Denise Gentil, professora de economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Há o princípio de que o Estado deve proporcionar os serviços de saúde, assistência e previdência social a todos os indivíduos, indistintamente. Um novo pacto social se estabeleceu, com mudanças nas relações entre Estado e sociedade.” Segundo a pesquisa A Previdência Social e Os Municípios, realizada pelo auditor Álvaro Sólon de França, em 64% das cidades brasileiras a soma dos benefícios previdenciários de seus habitantes é maior que o Fundo de Participação dos Municípios – ou seja, de cada dez cidades, em mais de seis e economia local depende mais do dinheiro dos velhinhos que dos tributos repassados pela União. “Os aposentados sustentam a economia local e servem de âncora familiar porque são os únicos que têm renda garantida. As casas com beneficiários da Previdência têm melhor qualidade de vida, não só o aposentado”, diz o estudo.

E não é só nos pequenos municípios que o fenômeno acontece. Em Mauá, ABC paulista, o metalúrgico aposentado Gildásio Rodrigues de Oliveira, de 74 anos, com “um pouquinho mais de mil reais” que recebe do INSS sustenta a esposa Ana, os filhos Ailson e Ailton e o neto André, filho de Aílton. “A aposentadoria é o que é certo mesmo”, conta Gildásio. “É com ela que as contas não atrasam”, concorda Ana.

No meio rural, essa importância é ainda maior. O comerciante Mario Pirahi, fundador da Associação Comercial e Empresarial de Sete Barras, na região do Vale do Ribeira (SP), confirma: “Dois terços da população vivem na zona rural e muitos são aposentados. Nos primeiros dias do mês, quando sai o pagamento dos aposentados, o comércio melhora”, conta.

“Na área urbana, o custo de vida é alto e um salário mínimo ajuda pouco. No interior, é um complemento vital para a renda das famílias”, avalia Alessandra da Costa Lunas, secretária de Políticas Sociais da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). Ela observa que o modelo brasileiro é único no mundo ao reconhecer que o trabalho rural é desgastante, por isso garante aposentadoria aos 60 anos para os homens e aos 55 para as mulheres, além de auxílios maternidade, doença ou acidente.

Maria Borges, de 62 anos, e seu marido Manoel Ribeiro Pavão, 70, estão entre os 7 milhões de aposentados rurais do país e, em sua região – São Luiz do Maranhão –, esse dinheiro faz muita diferença. Manoel é aposentado por invalidez desde 1992, quando teve um derrame que paralisou um lado de seu corpo. Maria conseguiu o benefício há menos tempo, por idade e com dificuldade em continuar trabalhando. “Parei de trabalhar porque tenho um problema de diabetes. Ainda botei uma roça, como a gente diz por aqui, mas não consegui terminar”, reclama. “Esse trabalho é para quem tem coragem. Eu fazia por prazer, hoje sinto saudade.”

A grama do vizinho

Na América Latina, a grita por cortes na Previdência começou nos anos 80, quando o modelo econômico liberal passou a predominar. O Chile, sob a ditadura do general Augusto Pinochet, privatizou todo o seu sistema previdenciário em 1981 e encantou os economistas cujas teorias não costumam levar em conta que as ações do Estado deveriam justamente ser direcionadas a quem mais dele precisa.

No Brasil, a Previdência do setor privado passou por uma reforma nos anos 90, no governo FHC, que mudou o conceito de tempo de serviço para tempo de contribuição, acabou com a aposentadoria proporcional e impôs limite de idade (35 anos de contribuição e 53 de idade para homens; e 30 e 48, respectivamente, para mulheres). O estrago só não foi maior devido à forte reação da sociedade. O sonho de quem pensou a reforma era aumentar o limite de idade até 65 anos e reduzir o teto do benefício, hoje de 2.801 reais, para no máximo cinco salários mínimos – de modo a estimular as pessoas a recorrer às previdências complementares vendidas pelos bancos. No setor público, a reforma visando tentar aproximar os regimes do setor público e privado começou a ser feita em 2003.

Do outro lado do mundo, lembra o economista José Prata Araújo, especialista em políticas sociais, a situação é ainda pior. Se na América Latina, com exceção do Brasil, a previdência pública foi desmantelada, nos países emergentes asiáticos ela nunca existiu. “Na China, só quem trabalha em empresas estatais ou é servidor público direto tem previdência”, conta. Dos 200 milhões de chineses com mais de 50 anos, só 40 milhões têm aposentadoria. No Brasil, 10% das pessoas com mais de 69 anos vivem abaixo da linha de pobreza; sem a Previdência, seriam mais de 70%.

O descompasso entre os benefícios pagos e a receita arrecadada deve fechar este ano em 42 bilhões de reais. Mas há controvérsias. A economista Denise Gentil aponta que o suposto déficit considera apenas as contribuições de patrões e empregados, ignorando outras fontes de receita (Cofins, CPMF e Contribuição sobre o Lucro) que, se consideradas, diz a professora da UFRJ, haveria superávit operacional.

José Prata Araújo, autor do livro Um Retrato do Brasil – Balanço do Governo Lula (Editora Perseu Abramo), questiona essa abordagem. Ele lembra que, durante a era FHC, a carga tributária subiu algo em torno de 10% do PIB. Mas em lugar de aumentar impostos, que por lei devem ser divididos com estados e municípios, o ex-presidente optou por aumentar as contribuições, cuja receita é toda da União. “Isso inflou artificialmente as receitas da Previdência Social. Existe uma crise, sim”, sustenta o economista. Os dois concordam, entretanto, que não há urgência de nova reforma no setor.

A Central Única dos Trabalhadores defende a reativação do Conselho Nacional de Seguridade Social, em que representantes das empresas, dos trabalhadores e dos aposentados passem a acompanhar de perto as decisões envolvendo a Previdência pública. A CUT quer ainda que as contribuições das empresas sejam baseadas no faturamento, e não na folha de salários. “Hoje, uma empresa de alto desempenho, mas que gera poucos empregos diretos, contribui menos do que pode para o INSS. Se recolher pelo que fatura, a empresa deixa de ter um incentivo para driblar contratos de trabalho e seu faturamento passa a ter maior função social”, argumenta Artur Henrique da Silva Santos, presidente da Central.

Essa possibilidade é estudada desde 2003, mas o governo ainda não está certo de que seja viável politicamente e, na ponta do lápis, compensatória. “É preciso verificar com cautela se mudar a base de recolhimento melhoraria de fato a receita, em que setores isso seria possível e como vencer as barreiras políticas e jurídicas para isso”, diz uma fonte do Ministério da Previdência. “Mudanças têm de ser muito claramente negociadas para evitar ‘esqueletos’ futuros. Falhas no reajuste dos benefícios decorrentes da antiga OTN (1977-1988) ou na conversão da URV para o real (1994), por exemplo, geraram um alívio de caixa lá atrás e uma enxurrada de processos que hoje têm de ser executados”, lembra.

“Temos um compromisso com a Previdência Social pública, tanto no regime geral, o INSS, quanto nos regimes dos servidores públicos”, garante o secretário de Políticas para a Previdência Social, Helmut Schwarzer. Segundo ele, uma das medidas será a criação do fundo de pensão para os servidores públicos prevista na Emenda 41, aprovada em 2003. Aquela reforma, segundo Schwarzer, está dando frutos. Em 2003, União e estados tinham um déficit de 3% do PIB. Em 2005, chegou a 2,4%.

No caso do INSS, as medidas visam principalmente a aumentar a eficiência do sistema. Trabalhadores afastados por motivo de doença ou acidente são exemplos dessas medidas. “Hoje, boa parte dessas pessoas acaba ficando incapacitada para sempre e necessitando de um benefício por invalidez”, afirma o secretário. A intenção do governo é acelerar e melhorar o atendimento médico de forma a recuperar esses trabalhadores para que eles retornem ao mercado de trabalho.

No mesmo sentido vem a criação do “fator acidentário”, índice que vai condicionar a contribuição de cada empresa à sua periculosidade e que premiará com taxas menores empresários que invistam em prevenção de acidentes.

Essa é uma das pendências para a regulamentação de uma lei aprovada no final do ano relacionada ao nexo epidemiológico – que estabelece maior responsabilização por parte das empresas para prevenção e recuperação de doenças ocupacionais.

Para CNI, Previdência é gasto

Quando Fernando Henrique Cardoso começou a mexer na Previdência dos trabalhadores do setor privado, nos anos 90, empresários, banqueiros e setores políticos identificados com as teorias liberais pressionavam por uma reforma mais radical. O “modelo” mais mencionado era o chileno. Lá, empregadores não são obrigados a contribuir. Dos 20% descontados do salário de um trabalhador, em média 10% vão para sua caixa de previdência, 7% para a seguridade e o restante é taxa embolsada pelo administrador privado do fundo, geralmente um banco. “Foi um grande retrocesso. Até nos EUA, país mais liberal do mundo, as empresas contribuem”, afirma o economista José Prata Araújo. A Confederação Nacional da Indústria (CNI), em seu encontro de final de ano com jornalistas, voltou a bater na tecla de que a Previdência precisa de reforma por ser o maior “gasto” do governo (o orçamento é de 170 bilhões de reais em 2007).

A sociedade precisa ter seu projeto

Integrantes do governo têm realizado nos últimos meses vários encontros com representantes dos movimentos sociais e sindical. Um dos objetivos é tranqüilizar: nenhuma reforma que altere regras e direitos previdenciários em curso deve acontecer neste segundo mandato de Lula. O governo espera melhorar o desempenho de caixa do sistema de seguridade social por meio de uma série de iniciativas de gestão, como maior esforço no combate a fraudes e sonegação e medidas de estímulo à formalização da mão-de-obra.

Dos atuais 75 milhões de brasileiros entre 12 e 79 anos de idade que compõem a população ocupada, 29 milhões não contribuem com a Previdência. A estratégia conta também com uma melhora na atividade econômica e com a manutenção do ritmo de crescimento dos empregos com carteira assinada. O saldo positivo das vagas formais no período 2003-2006 é estimado em 4,8 milhões, próximo da meta de 100 mil novos registros por mês.

Questões sobre “de quem é o déficit” também geram polêmica no interior da administração federal. Analisado secamente, o déficit de 2006 deve ficar em 42 bilhões. Mas se medidas de renúncia fiscal fossem contabilizadas pelas diferentes áreas do Tesouro diretamente envolvidas nessas renúncias, o saldo negativo da Previdência propriamente dita cairia pela metade.

Exemplos: 4,3 bilhões de reais que deixam de ser recolhidos por entidades filantrópicas, como santas casas ou universidades, não entram na contabilidade dos ministérios da Saúde ou da Educação; nem os 5 bilhões de INSS economizados pelos optantes do Simples afetam o balanço da Receita Federal. Mas afetam os números da Previdência e, no final das contas, incrementam o tal déficit.

Noves fora questões contábeis, aumento da eficiência, mais crescimento econômico e emprego formal, a Previdência Social pública tem fôlego para atravessar o segundo mandato sem sustos e sem reforma, garante o governo.

Seguro quanto ao curto e médio prazo, o governo tem aproveitado as reuniões com representantes da sociedade para enfatizar um temor quanto ao futuro. Esse alerta não é movido por teses econômicas ou ideológicas, mas por fenômenos demográficos que afetam o mundo e o Brasil. A população de jovens está encolhendo e a de idosos, crescendo. No Brasil, segundo o IBGE, a taxa de fecundidade caiu de 6,2 filhos por mulher em 1940 para 2 filhos hoje. Já a expectativa de vida dos brasileiros, que era de em média 66 anos década e meia atrás, chega hoje a 72 anos de idade. Em 2030, estimativa do IBGE aponta que a longevidade média do brasileiro deve chegar a 80 anos. A população acima de 80 anos, hoje na casa de 2,4 milhões de pessoas, chegará a 14 milhões em 2050.

Num país em que o regime de previdência pública segue o conceito de repartição solidária entre gerações – isto é, quem trabalha banca a aposentadoria dos inativos – isso significa que a base de contribuintes não conseguirá sustentar a população de idosos daqui a algumas décadas.

“A Previdência tem de ser pública, tem de ser solidária e tem de continuar exercendo seu papel social. Temos de pensar hoje a Previdência de 2030, 2040, 2050. Os trabalhadores têm que ajudar a pensar isso e ter a sua proposta, porque alguma coisa terá de ser feita e não faltarão outros setores da sociedade apresentando soluções”, alertou, em reunião com lideranças sindicais em dezembro, o ministro Nelson Machado.

Por Nicolau Soares e Paulo Donizetti de Souza.

NOTÍCIA COLHIDA NA Revista do Brasil – Número 8 – Janeiro de 2006. DISPONÍVEL EM www.revistadobrasil.net.

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