O legado da Comissão Nacional da Verdade e todo o movimento que se construiu em torno do tema do Resgate da Memória, Verdade, Justiça e Reparação. Estão contidos em três grandes e importantes frentes.
A Primeira é o da reunião de um grande acervo nacional de documentos e de história oral para reconstruir versões e dar possibilidade de conhecimento a outros personagens que compuseram a história política no Brasil, e não tiveram a oportunidade histórica de contar suas versões dos fatos e acontecimentos, ou seja a possiblidade de transformar o processo histórico, num processo democrático, onde através das versões é possível que as pessoas possam formular suas próprias conclusões do processo histórico.
A segunda será o teor do relatório final e das recomendações que serão apresentadas ao final dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade no sentido de acabar os entulhos antidemocráticos que ainda atrapalham o funcionamento das instituições políticas e administrativas no Brasil. E o principal e mais importante, que é, se o próximo governo Dilma ou o próximo governo eleito nas eleições de 2014 irá encaminhar na prática a execução das recomendações contida no relatório.
A terceira e não menos importante frente que se pretende trabalhar com os encaminhamentos e os trabalhos das comissões é a questão da justiça de transição. Com o legado que será deixado no sentido de fomentar novas pesquisas e estudos sobre o que se acumulou de documentos e de fontes orais. Mas tudo isso não faria sentido se não houvesse um esforço enorme no sentido de consolidar a justiça de transição no Brasil. Pois como dissemos para que possamos nos desfazer dos entulhos antidemocráticos que restaram do processo de ditadura no Brasil é preciso que se consolide e se estabeleça uma nova justiça que tenha um caráter mais humano, mais ético, mais fraterno.
Essa nova justiça é fundamental no sentido de que se faça no país justiça sem lado, que se faça justiça para aprimorar a vida em sociedade, somente assim poderemos atingir um novo patamar na nossa organização social contemporânea. Um transitar numa justiça que desfaça os erros jurídicos que ainda persistem na sociedade será de fato a garantia que se avançou de fato e não foram meras mudanças ocasionais e conjunturais que aconteceram em nosso país.
Mas para podermos entender todas essas frentes é necessário que se conheça um pouco do histórico do movimento que levou a criação da Comissão Nacional da Verdade.
A Instalação da Comissão Nacional da Verdade é fruto de uma vontade popular latente desde os processos de abertura e já começou seus trabalhos por duas vezes. Mas com a eleição para presidência república no ano de 2010 de Dilma, uma ex-militante de um grupo revolucionário de esquerda denominado Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, VAR – Palmares. Que fez reacender as demandas pela criação de uma nova Comissão da Verdade. O movimento por verdade, memória, justiça e reparação se alastrou pelo Brasil inteiro criando uma grande onde popular que reivindicava a formação da Comissão Nacional da Verdade, o que deu resultado com a aprovação da lei no ano de 2011 pelo Congresso Nacional.
Com a Comissão Nacional da Verdade nomeada em dezembro de 2011 pelo governo federal através da lei nº Lei 12528/2011 no Congresso Nacional, e em sequências as Comissões Estaduais da Verdade criadas por leis estaduais, como por exemplo a Comissão Estadual da Verdade do Paraná – Teresa Urban, que foi criada pela lei Estadual nº Lei 17362 – 27 de Novembro de 2012, porém sua posse somente ocorreu em Abril de 2013. Mas a exemplo dessas e outras comissões oficiais hoje existem aproximadamente 150 comissões, comitês ou grupos de trabalho ligados ao tema da Verdade, memória e justiça espalhadas por pelo país. São comissões de caráter estadual, municipal, de instituições federais, de centrais sindicais e de sindicatos.
Com a movimentação política pela criação da Comissão Nacional da Verdade que impulsionou a organização também dessas comissões e grupos de trabalho que mencionamos acima, trouxe o tema para um espaço de divulgação e de visibilidade importante na sociedade, que passou a fomentar a discussão e o acompanhamento dos trabalhos da Comissão. E não somente isso. Essa quantidade de organizações e comissões ligadas ao tema tem dado um suporte fantástico ao trabalho da Comissão Nacional da Verdade com realização de atos políticos, de oitivas, de depoimentos, de coleta de documentos com ampla divulgação do tema para a sociedade. Ou seja, a grande contribuição dessas comissões e comitês formados no Brasil inteiro dúvida nenhuma é o fato de que se construiu um arcabouço muito grande de história oral, documental e fontes das mais variadas naturezas, na perspectiva histórica dos resistentes, fugindo da única e exclusiva versão oficial e conciliadora estabelecida a partir da Lei de Anistia que perdura até pouco tempo atrás.
Constrói-se a possibilidade de passar a limpo a história política do Golpe militar com apoio civil de 1964. Que a priori esperava-se que fosse uma intervenção rápida para poder tirar de cena através da manobra golpista, setores da sociedade que vinham construindo um diálogo social na perspectiva de um desenvolvimento social ligado as camadas sociais que mais precisavam desse desenvolvimento social, baseado numa proposta de reformas profundas que a sociedade brasileira precisava em diversos campos como da educação, da terra, do sistema financeiro, dentre outras e que uma elite política civil ligada ao capital internacional não queria que houvessem tais mudanças, portando organizaram, apoiaram e financiaram o golpe de estado de 01 de abril de 1964.
Sem dúvida, uma contribuição muito rica para a história em diversos sentidos, afinal foram coletados milhares de metros cúbicos de documento, muitas oitivas foram realizadas, audiências públicas, para dar conhecimento a sociedade dos trabalhos das comissões da verdade em diversas frentes políticas de atuação e ainda estão sendo coletados, documentos, provas, entrevistas, depoimentos, etc.
As atividades que marcaram os 50 anos do golpe civil militar no Brasil se demonstrou um momento de efervescência política. Foram exibidos muitos filmes, novos e antigos, documentários produzidos recentemente, além de palestras, reuniões audiências públicas, ciclo de debates, inauguração de museu de percurso, caravanas de anistia, entre tantas outras atividades que marcaram a data. Isso foi fundamental para ajudar a construir na sociedade uma opinião diferente das pessoas sobre o golpe civil militar no Brasil.
Em outros momentos políticos chegávamos a ouvir pesquisas que diziam que os brasileiros prefeririam a ditadura, que sentiam saudades dos militares, etc. Isso por que desconheciam o grau de atrocidades que foram cometidos contra pessoas, que sofreram as graves violações aos direitos humanos. Situação que mudou nos últimos tempos, pois a opinião pública na sociedade mudou, justamente pelo fato de que houve um processo de conscientização do ponto de vista do esclarecimento desse que foi o pior processo de exceção no pais.
E por que isso aconteceu? Aconteceu justamente pelo processo de organização da sociedade civil no sentido de denunciar os crimes de exceção cometidos, aconteceu por que organizou-se na sociedade um momento importante de resgaste da memória, verdade e justiça. Aconteceu por que a sociedade civil organizada compreendeu que era necessário lutar por uma comissão de verdade, que apurasse as graves violações cometidas, levantasse e apontasse a quantidade de mortos, desaparecidos, torturados, enfim, aqueles que direta ou indiretamente sofreram com essa intervenção.
A Comissão Nacional da Verdade ao ser formada deslancha pelo país a criação de mais de uma centena comissões estaduais, de comissões de verdade nas seccionais da Ordem de Advogados do Brasil na maioria dos estados, nas universidades federais e estaduais, de sindicatos e movimentos sociais. E essa proliferação de comissões, apoiadas pelos históricos movimentos ligados a questões dos mortos e desaparecidos, pelos grupos de combate a tortura como o grupo Tortura Nunca Mais, pelo partidos políticos progressistas e pelas entidades de representação dos estudantes e dos trabalhadores.
A comissão Nacional da Verdade estruturou seus trabalhos em mais de uma dezena de grupos de trabalho. O grupo 13 é o de grave violações aos trabalhadores e suas entidades. Este grupo de trabalho formou-se graças a pressão política por parte das Centrais Sindicais especialmente a da Central Única dos Trabalhadores a CUT, que dentre outras medidas para dar suporte aos trabalhos do grupo criou sua própria comissão nacional de verdade, memória e justiça, para fazer o levantamento entre seus sindicatos e federações filiados no Brasil inteiro sobre as violações que estes sofreram. A Iniciativa da CUT vem no sentido de demonstrar para a sociedade e para a opinião pública que foram os trabalhadores os que mais sofreram com ação dos órgãos de repressão durante a ditadura.
Outro ponto importante que o Grupo 13 trabalha e que as centrais que o dão suporte buscam apresentar é a ligação das empresas com a sustentação política e financeira do Golpe. Um importante documentário nesse sentido é do “Cidadão Boilesen” história do homem que organizava o setor empresarial para dar suporte financeiro do golpe. As empresa com suas viseiras de futuro, voltadas somente para a obtenção do lucro, não se davam conta que estavam sendo iludidas com as histórias de “terror comunista”, de “ameaça vermelha”, do perigo de “o bolchevismo” invadir o país, etc. Fez com muitos colaborassem, e inclusive tivessem benesses do estado por essa colaboração. Empresas, bancos, Industrias urbanas e rurais caíram no conto do vigário dos arquitetos civis do golpe de 1964. O que foi decisivo por que sem o suporte desses importantes setores o golpe não se sustentaria por muito tempo.
Assim, concluímos que as graves violações que os trabalhadores sofreram de todas as ordens foram em consequência do patronato brasileiro aceitar os argumentos dos golpistas. Claro que não somos ingênuos e sabemos que muitos desses empresários tinham interesses direto na execução do golpe. Mas foi de fato um núcleo duro de apoiares e arrecadadores de fundos para a manutenção das violações que eram cometidas, chega-se ao absurdo de ouvirmos relato nas comissões que diziam que existiam até lista de preços por revolucionários que fossem mortos e presos. E daí exposto a todas as consequências dessas prisões.
A Comissão Nacional da Verdade que teve seus trabalhos prorrogados até dezembro de 2014, além da quantidade enorme de documentação que tem recebido e conseguido reunir, das oitivas e audiências públicas que tem feito pelo Brasil afora, também conta o suporte das demais comissões para sua grande finalidade que é a de apresentar um relatório final. Porém esse relatório tem a tendência de que existirá muitos espaço para os grupos de trabalho. Ou seja, tudo que tem se pesquisado no Brasil, nas áreas afeitas para cada Grupo de trabalho, não se estenderá muito nos temas, pois o espaço que cada grupo terá no relatório é limitado, muito pequeno por assim dizer. Além é claro do espaço no relatório final para as recomendações, elas que de fato que interessam para o Presente.
As recomendações que conterá o relatório podem apresentar uma luz no sentido de efetivar mudanças importantes no cenário brasileiro, que ainda funcionam sobre as luzes, leis e orientações do período de exceção. Ou seja, repousam nas recomendações as esperanças da sociedade civil organizada de se ver pessoas que cometeram as graves violações contra os direitos humanos e que as pessoas sejam responsabilizadas, serem, até por que não dizer punidas pelos crimes que cometeram. Isso por que muitos dos crimes cometidos são imprescritíveis. Ou ainda estão imprescritíveis como nos caso dos sequestros, dos desaparecidos políticos que até hoje ainda não aparecerem. É necessário que as recomendações abordem essas questões, que se recomende não continuemos mandando nossos filhos e filhas para escolas que tem em suas faixadas nomes de ditadores, de pessoas que foram responsáveis por essa sanguinária ditadura que vivemos no Brasil.
Afinal o que se conhece da história de horrores da ditadura civil militar no Brasil é somente a ponta do Iceberg. Ainda são muita restritas as informações, pouco arquivos importantes foram de fato abertos e ainda existe uma certa burocracia estatal e corporativa na possibilidade de manuseio desses documentos. Muitos dos torturadores que são convocados se negam a falar usando o direito constitucional de não produzir provas contra si mesmos. O que tem dificultado de sobremaneira apurar os fatos. Isso sem falar no receio de muitos depoentes de dar nomes, fatos importantes, por que se encontram num estado de alerta, pois acham que as retaliações ainda podem acontecer. Mas também existem aqueles que são ligados aos órgãos de repressão, que aceitam ir as oitivas da comissão e tem feito depoimentos com posição de ódio bem claras, reafirmam posturas autoritárias, de revanchismo e violentas, de que o processo foi uma guerra, de que eram dois lados. Tentam ainda nos dias de hoje justificar as posturas de violência do Estado, contra aqueles que apenas queriam a volta do processo democrático.
O grande fato é que temos ainda muito a esclarecer e que apesar da temporalidade do relatório final. As Comissões da Verdade, comitês, grupos de trabalho necessitam continuar funcionando para que se chegue de fato a bom termo no que diz respeito restituição da verdade, memória e justiça no Brasil. Pois o que temos é um início do processo que busca jogar luz em cima de fato históricos importantes. Recontar a história na perspectiva dos que sofreram na carne, na pele e na vida as agruras da ditadura militar, que foram afastados dos seus entes queridos, de seus lares, seus estudos, seus empregos, sua dignidade como seres humanos.
É nesse sentido que o legado das comissões da verdade, comitês e grupos de trabalho que acompanham cotidianamente o tema das graves violações ocorridas no Brasil entre 1946 e 1988 são importantíssimas para a sociedade do presente e também para as futuras gerações, pois já abriram as primeiras portas no sentido de esclarecer um passado sombrio, mas que ainda tem entrevado em suas entranhas muitas história e memórias que precisam ser reveladas e compartilhadas com a sociedade para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça!
Marcio Kieller
Vice-Presidente da CUT/PR, mestre em sociologia Política e membro da Comissão Estadual da Verdade do Paraná – Teresa Urban.