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A falsa crise do Sistema de Seguridade Social no Brasil – segunda parte

Adital – Uma análise financeira do período 1990 – 2005 – Parte II

A legislação infraconstitucional foi desconstruindo os esquemas de gestão administrativa e financeira da seguridade social concebidos em 1988. A Lei 8.212, de 24 de julho de 1991, intitulada Lei Orgânica da Seguridade Social, estabelece no seu artigo 33 (com grifos nossos):

Ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) compete arrecadar, fiscalizar, lançar e normatizar o recolhimento das contribuições sociais previstas nas alíneas a, b e c do parágrafo único do art. 11 [contribuições sociais das empresas, incidentes sobre a remuneração paga; dos empregadores domésticos; e dos trabalhadores, incidentes sobre seu salário de contribuição]; e ao Departamento da Receita Federal (DRF) compete arrecadar, fiscalizar, lançar e normatizar o recolhimento das contribuições sociais previstas nas alíneas d e do parágrafo único do art. 11 [contribuições sociais das empresas sobre faturamento e lucro e as incidentes sobre a receita de concursos de prognósticos].

Essas receitas, entretanto, continuam vinculadas à seguridade social e por ela geridas, ou seja, devem ser aplicadas em saúde, assistência social e previdência, ainda que sejam arrecadadas, fiscalizadas, lançadas e normatizadas pela Receita Federal, pois os órgãos da seguridade social têm assegurada a gestão de seus recursos pela Constituição Federal, conforme estabelece, adicionalmente, o inciso I, §2º do art. 195 (com grifos nossos):

A proposta de orçamento da seguridade social será elaborada de forma integrada pelos órgãos responsáveis pela saúde, previdência e assistência social, tendo em vista as metas e prioridades estabelecidas na lei de diretrizes orçamentárias, assegurada a cada área a gestão de seus recursos.

Quando são utilizados para análise os dados estatísticos da seguridade social como um todo, com números não apenas da previdência, mas também da saúde e da assistência social, a auto-suficiência financeira do sistema fica mais evidente. A série histórica contendo o resultado da execução orçamentária da seguridade social é apresentada nas Tabelas 3 e 4. Estão demonstradas na Tabela 3 as receitas e despesas ao longo dos anos 1995 a 1999 e, na Tabela 4, para os anos de 2000 a 2005.

Antes de qualquer comentário mais específico, convém fazer alguns esclarecimentos preliminares sobre a metodologia de cálculo empregada nas Tabelas 3 e 4, por diferir dos demonstrativos contidos nos relatórios oficiais. Do lado das receitas, são computados os ingressos de recursos legalmente vinculados ao sistema de seguridade social, tomando-se a base de dados dos relatórios da Receita Federal. Do lado das despesas, foram levantadas aquelas liquidadas e pagas, utilizando-se a classificação por função (saúde, assistência social e previdência), fornecida através de relatórios da Secretaria do Tesouro Nacional. Incluem-se nessas despesas por função, gastos com pessoal, outros custeios e encargos da dívida.

O resultado da seguridade social das Tabelas 3 e 4 foi montado com base nos preceitos da Constituição de 1988. É relevante mencionar que a existência de mais de um sistema previdenciário no Brasil é a chave para o entendimento de graves distorções que aparecem nas estatísticas do setor e que a metodologia empregada nesta pesquisa busca superar. Além do RGPS, destinado aos trabalhadores da iniciativa privada, há os regimes próprios de previdência social dos servidores públicos (RPPS) da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios[9], bem como o de categorias profissionais; esses regimes, no entanto, são inteiramente distintos. Apenas o RGPS é público, universal e integra o orçamento da seguridade social; portanto, só os números do RGPS foram computados no resultado da seguridade social apresentado nas Tabelas 3 e 4. Num cálculo rigoroso, o RPPS dos servidores federais deve ser excluído, por se tratar de um sistema que estabelece uma relação entre a administração pública e seus funcionários, patrocinado por contribuições específicas de seus beneficiários (Contribuição ao Plano de Seguridade Social do Servidor – CSSS) e pela contribuição patronal da União, esta última efetuada através de repasses do orçamento fiscal.[10] É muito freqüente, entretanto, que esses regimes distintos (RGPS e RPPS) se misturarem nas estatísticas de despesas do governo federal e, como conseqüência, o total dos gastos com a previdência social pública ficam inflados com itens que lhe são estranhos.

Para evitar essa distorção, as Tabelas 3 e 4, seguindo as regras da Constituição de 1988, não incluem nas receitas da seguridade social a Contribuição ao Plano de Seguridade Social do Servidor (CSSS), a contribuição ao custeio e pensões de militares e nem as contribuições ao FGTS, FUNDESP, FUNPEN e outras. Por conseqüência, nas despesas da seguridade social também não estão incluídos os gastos com aposentadorias e pensões dos servidores civis e militares. Os dados do regime próprio dos servidores públicos serão incluídos logo a seguir, na Tabela 6.

O PIS/PASEP não é incluído integralmente como receita da seguridade social nas Tabelas 3 e 4. Só foram computados os 60% de seu total que se destinam ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), uma vez que este fundo custeia, principalmente, os programas de seguro-desemprego e o pagamento do abono salarial. Os 40% restantes são destinados ao BNDES para aplicação em programas de desenvolvimento econômico. Assim, o seguro-desemprego foi incluído também nas despesas, por ser um benefício da seguridade social.

A amortização e juros da dívida contraída pelos setores do sistema de seguridade social foram incluídas na despesa das Tabelas 3 e 4, embora sua inclusão seja discutível. A ANFIP argumenta, com muita procedência, que as despesas da seguridade social ficam superestimadas com encargos da dívida:

Quando, por exemplo, o Ministério da Saúde realiza despesas com recursos do BIRD para recuperação da rede hospitalar, são propriamente incluídas no Orçamento da Seguridade Social as despesas com obras, instalações e equipamentos realizadas com os recursos externos. No entanto, quando posteriormente forem feitos esses pagamentos ao financiador, se considerarmos essas despesas também como da Seguridade, incorreremos em dupla contagem […] Não é razoável supor que o País gastou duplamente em despesas com saúde, ou construção de hospitais, idêntico montante de recursos, em dois momentos diferentes (ANFIP, 2006, p.15).

Seria mais apropriado classificar juros e amortização da dívida no órgão Encargos Financeiros da União, junto com os outros encargos da dívida interna e externa sob a supervisão do Ministério da Fazenda. Entretanto, por falta de informações mais detalhadas para uma série histórica longa, as despesas das Tabelas 3 e 4 incluem encargos da dívida, mas sem prejuízo das conclusões gerais, visto que os valores não são significativos.

Feita esta ressalva, as tabelas trazem duas das principais conclusões deste trabalho. A primeira é que o sistema de seguridade social tem-se mostrado superavitário ao longo de todos os anos do período de 1995 a 2005, tendo o excedente de recursos se elevado de R$ 4,3 bilhões, em 1995, para R$58,1 bilhões em 2005. A segunda conclusão é de que houve desvio de recursos do orçamento da seguridade social para além dos 20% legalmente autorizados pelo mecanismo da DRU, conforme se pode constatar pela última linha das referidas Tabelas 3 e 4, exceto nos anos de 1995 e 1998.[11] Com exceção desses dois anos, o excedente de recursos extraído da seguridade social, anualmente, variou entre R$12,4 bilhões, em 2001 e R$26,5 bilhões, em 2005, acima do limite de 20% legalmente autorizado pelo mecanismo da DRU, conforme Tabela 4.

Para se avaliar a dimensão do desvio de recursos, o superávit que é retirado da seguridade supera o gasto anual com saúde pública, em todo o período que vai de 2000 a 2005. Isso significa que, se nos últimos seis anos, esse excedente tivesse sido investido no setor de saúde, seus recursos seriam ampliados em mais de 100%, o que poderia implicar numa transformação radical na oferta dos serviços de saúde.

Essa realidade seria facilmente detectada se o dispositivo constitucional, presente no parágrafo 5º do artigo 165 da Constituição Federal, que estabelece que o Poder Executivo deve elaborar e executar três orçamentos – o orçamento fiscal, o orçamento de investimento das empresas da União e o orçamento da seguridade social -, fosse cumprido à risca. O governo, entretanto, apresenta dados consolidados de apenas dois demonstrativos de execução orçamentária: o Orçamento de Investimento das Empresas Estatais e o Orçamento Fiscal e da Seguridade Social. Neste último, as receitas e gastos fiscais e da seguridade são agregados num único orçamento. Por conseguinte, as receitas próprias da seguridade social (as contribuições sociais) aparecem unificadas às outras receitas de impostos pertencentes ao orçamento fiscal, assim como as despesas misturam-se para daí sair um resultado consolidado de dois orçamentos.

Como conseqüência de mais este artifício metodológico, o superávit do orçamento da seguridade social é automaticamente incorporado ao orçamento geral da União, resultando na geração dos elevados superávits primários ao longo dos últimos oito anos. Assim, parte do excedente retirado de toda a sociedade, principalmente dos consumidores assalariados de baixa renda, que são os que efetivamente pagam tributos indiretos incorporados nos preços, é desviada das aplicações nas ações de saúde, previdência e assistência social, para se destinar ao pagamento de outras despesas que mais à frente serão apontadas. Essas operações de transferência de recursos entre orçamentos extrapolam os limites permitidos nos dispositivos constitucionais que vinculam esses recursos às despesas do orçamento da seguridade social.

Se houvesse a elaboração, de forma isolada, do orçamento da seguridade social, ficaria revelado, com clareza: 1) que o desequilíbrio orçamentário está no orçamento fiscal e não no orçamento da seguridade social ou no orçamento da previdência social; 2) que a seguridade social não recebe recursos do orçamento fiscal, ao contrário, parte substancialmente elevada de seus recursos financia o orçamento fiscal; e, 3) que não é a previdência que causa problemas de instabilidade econômica e crise de confiança nos investidores, mas é a política econômica que atinge a previdência, a saúde pública e a assistência social, precarizando serviços essenciais à sobrevivência da classe trabalhadora.

Foi com a intenção de produzir superávit primário crescente que a política tributária dos anos 90 buscou a ampliação da carga tributária através, principalmente, do aumento de contribuições que são destinadas ao orçamento da seguridade social. Como já foi amplamente tratado, o sistema tributário consolidado pela Constituição de 1988 prevê uma partilha mais ampla de impostos arrecadados pela União com Estados e Municípios, o que reduziu a disponibilidade de recursos próprios para o governo federal. Diante da necessidade de mobilizar mais recursos, o Tesouro Nacional buscou solução nas contribuições à seguridade social, por dois motivos: 1) o aumento de alíquotas das contribuições não segue o princípio da anterioridade, o que significa que podem vigorar noventa dias depois de instituída, diferente dos aumentos de impostos que precisam de lei a ser aprovada em um ano, para vigorar apenas no ano seguinte, o que, em situações emergenciais, pode ser problemático; e, 2) as contribuições sociais têm a característica de não serem partilhadas com Estados e Municípios.

Para que o aumento da carga tributária se tornasse adequado aos propósitos do governo federal, foi criada a desvinculação das receitas da União (DRU), estabelecida através de emenda ao texto constitucional, autorizando o governo a utilizar parcela significativa dos recursos arrecadados – 20% das receitas de contribuições – de forma livre de qualquer vinculação a despesas específicas. Com este mecanismo, receitas da seguridade social passaram a ser legalmente deslocadas do seu orçamento próprio para o orçamento fiscal, para serem utilizadas em qualquer rubrica. Apenas 20% delas, entretanto, foram insuficientes. Têm sido desviados muito mais, conforme foi demonstrado na última linha das Tabelas 3 e 4 e como pode ser melhor visualizado através da Tabela 5 a seguir. No período de 1995 a 2005, as desvinculações de receita totalizaram R$ 267 bilhões, dos quais R$107 bilhões estão além do limite legalmente autorizado pelo mecanismo da DRU.

Se forem agregados aos dados da seguridade social os números do regime próprio de previdência dos servidores federais – RPPS -, ou seja, os inativos e pensionistas civis e militares, ainda assim será possível observar uma situação muito distante da crise que é freqüentemente proclamada. A Tabela 6 mostra esses valores em percentual do PIB, ao longo dos últimos quinze anos, sem a aplicação da DRU sobre as receitas. Ressalte-se que nesta Tabela 6, do lado das receitas, não estão computadas as contribuições da União como empregador do setor público, que deveria corresponder ao dobro da contribuição dos servidores, conforme preconiza a Lei n° 9,717/1998.

É possível constatar que, em apenas cinco anos, pertencentes à década de 1990, houve necessidade de usar recursos do orçamento fiscal para cobrir despesas com a previdência dos servidores públicos. A realidade mais recente é muito mais promissora. Após 1999, a receita foi sempre superior ao gasto. Mais precisamente, há sete anos as contribuições sociais de trabalhadores, empregadores e servidores públicos superam os gastos com previdência social (dos servidores públicos e do setor privado), saúde e assistência social da esfera federal, produzindo excedente de recursos para o orçamento fiscal.

A Tabela 7 a seguir apresenta informações da seguridade social e do RPPS com valores em moeda corrente e utiliza uma metodologia de maior detalhe e precisão. Novamente é preciso observar que, do lado da receita, não foi computada a contrapartida da União como empregador, que deveria corresponder ao dobro da contribuição previdenciária dos servidores. É importante ressaltar que o excedente de recursos gerados de R$ 18,3 bilhões em 2004 e de R$ 19,9 bilhões em 2005 é considerável e mais que o dobro dos anos anteriores.

A Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Previdência Social (ANFIP) já vinha alertando que recursos são subtraídos da seguridade social para além dos 20% permitidos legalmente através da DRU.[12]

Tomando por base as informações aqui constatadas, a questão central deixa de ser sobre a auto-suficiência financeira do sistema de seguridade social, que tem se mostrado sólida, e passa a ser sobre o destino que foi reservado a esses recursos excedentes pelo governo federal.

Na Tabela 8 são mostrados, ao longo de dez anos (1995 – 2005) e de uma maneira condensada, quais foram os tipos de gasto que as receitas com COFINS, CPMF e CSLL, financiaram. Os dados foram obtidos de uma ampla pesquisa no SIAFI, de onde foram extraídos vários relatórios, sendo o principal o Acompanhamento da Execução Orçamentária da União, que classifica a despesa por fonte de recursos e projeto/atividade.

Nessas tabelas, os números são de uma magnitude que impressiona. Podem-se extrair as seguintes constatações:

1) A maior magnitude das receitas desviadas da seguridade social é proveniente, como seria de se esperar, dos 20% de DRU. Esses recursos são tragados para a fonte 100 (Recursos Ordinários) e são livremente empregados no orçamento fiscal. Os relatórios mostram que essa fonte financia vários tipos de despesa (em diferentes órgãos e ministérios), entre elas os encargos financeiros da União (juros e amortização da dívida pública). A política econômica, que pretensamente tem a virtude da responsabilidade fiscal, priorizou pagar contas do orçamento fiscal com recursos desvinculados do orçamento da seguridade social. Assim, minimiza-se o déficit do orçamento fiscal provocado pela taxa de juros em alto patamar – freqüentemente, o mais alto do mundo -, ao mesmo tempo em que se respaldam privilégios e desigualdades graves na distribuição de recursos dos fundos públicos.

2) Outro destino de parcela significativa dos recursos desviados é o pagamento de aposentadorias e pensões do RPPS. Esse emprego, entretanto, não é legítimo. Cabe repetir a observação, já feita antes, sobre o RPPS. Pela Constituição Federal de 1988, não há no Brasil um sistema de previdência composto por dois regimes, conforme esclarece Vianna (2003a). A Constituição estabelece um sistema de seguridade universal para todos os cidadãos (RGPS) e um sistema especial para o funcionalismo público (RPPS). A operacionalização financeira da seguridade é atribuição do INSS; ativos e inativos do serviço público federal estão a cargo do Tesouro Nacional. Os servidores públicos contribuem para suas aposentadorias com recursos que compõem um fundo de um regime específico, exclusivo, o RPPS, que não dá acesso a benefícios aos outros trabalhadores da sociedade. Estes, entretanto, tornaram-se patrocinadores das aposentadorias do regime especial dos servidores públicos. Recursos vinculados à saúde pública, à assistência social e à aposentadoria dos trabalhadores do setor privado vêm financiando a aposentadoria de servidores públicos, incluindo os do Legislativo e Judiciário, cujas aposentadorias têm valores elevados, se comparados ao salário mínimo, piso e nível da maioria das aposentadorias do RGPS.

3) Uma parte significativa dos recursos da seguridade social é desviada de seu orçamento, mas não recebe nenhum tipo de aplicação, o que quer dizer que podem ter ficado retidos na Conta Única do Tesouro. São valores que podem ser identificados nas tabelas 8 a 17 através da coluna “sem identificação de aplicação”. Em 2005, por exemplo, R$ 14,5 bilhões de recursos da seguridade não tiveram uso identificável nos relatórios de execução orçamentária e R$ 56,8 bilhões foram aplicados fora da seguridade social. Todos os anos da série de 1995-2005 apresentam esse fenômeno, mas os valores apresentam uma dimensão maior a partir de 2001. A esterilização desses recursos, além de impossibilitar o atendimento de necessidades urgentes por serviços públicos essenciais, significa uma forte contenção de demanda agregada, pois deixam de circular no mercado, contribuindo para reduzir o dinamismo da economia. É mais uma demonstração do forte caráter recessivo da política fiscal, feita com o sacrifício das políticas sociais.[13]

3. CONCLUSÕES

A conclusão a que se chega – na verdade mera constatação – pode e deve surpreender a muitos: nem a previdência social brasileira nem o sistema de seguridade social instituído pela Constituição Federal de 1988 são deficitários; são, ao contrário, superavitários, e esse superávit, cuja magnitude é expressiva, vem sendo sistematicamente desviado para outros usos. Essa constatação, no entanto, coloca uma questão relevante para o pesquisador: como e por que foi criada essa aura de crise e urgência em torno a um problema que não é nem crítico nem urgente?

A maior eficiência financeira do sistema previdenciário – que é sempre desejável – não depende de corte de benefícios, restrições de direitos ou maior tributação. A questão fundamental para dar sustentabilidade para um sistema previdenciário é o crescimento econômico, porque as variáveis mais importantes de sua equação financeira são emprego formal e a renda média do mercado de trabalho. Só essa estratégia permitirá a incorporação ao sistema de uma parte significativa da classe trabalhadora que vive de empregos informais, sem cobertura previdenciária.

A visão fiscalista ortodoxa normalmente se resume a reivindicar reformas do sistema previdenciário e ignorar os efeitos da política econômica sobre o mercado de trabalho e o sistema previdenciário. Além de não produzir uma solução adequada, destrói a limitada proteção social existente hoje. É, portanto, socialmente nefasta. É preciso desafiar a prática atual que dá prioridade ao equilíbrio orçamentário a qualquer preço, sacrificando valores sociais importantes de uma sociedade mais evoluída, ao invés de protegê-los.

Muito ainda precisa ser feito para melhorar o grau de cobertura proporcionado pelo sistema de seguridade social. Caberia, no entanto, acrescentar ao debate o significativo papel da política econômica altamente restritiva adotada desde o início da década de 1990, que conduziu à deterioração do trabalho formal e, portanto, à exclusão de uma grande parcela da população ocupada no setor privado da proteção oferecida pela previdência social. Esta população só contribui de forma indireta para o sistema de seguridade social, através do pagamento de contribuições embutidas nos preços dos produtos, e seu empobrecimento aumenta a demanda por gastos assistenciais e de saúde. A melhor alternativa para conduzir o sistema ao seu aperfeiçoamento seria, conseqüentemente, gerar mais empregos formais, que elevam as contribuições (receitas), ao mesmo tempo em que deixam a população menos exposta à penúria. Empregos formais adicionais, porém, só são gerados na fase ascendente do ciclo econômico, quando cada vez mais trabalhadores são incorporados ao mercado de trabalho. A política econômica atual, declaradamente voltada para o controle da inflação através do mecanismo de juros elevados, não apenas não conduzirá a esse caminho, como também impedirá qualquer projeto de desenvolvimento alternativo para o país.

A permanência dessa política por muitos anos consecutivos faz com que se possa prever, para o futuro, um grande contingente de “sem-previdência”, isto é, pessoas com idade superior a 60 anos que necessitarão de gastos assistenciais para seu sustento. Para evitar que essa previsão se confirme, é necessária, desde já, a incorporação dessa população ao mundo dos direitos da cidadania. E isso depende da mudança na atual política econômica, tanto quanto sua permanência posterior no sistema previdenciário está diretamente associada ao padrão de desenvolvimento econômico do futuro, muito mais do que de reformas tópicas ou radicais na área tributária, no código penal ou na legislação previdenciária e trabalhista.

REFERÊNCIAS

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Notas:

[9] Dentro do regime público há regimes especiais, como o dos magistrados, congressistas e militares. São regimes especiais porque as regras entre eles não são homogêneas.

[10] É o que deveria ser feito, ou seja, a contribuição patronal da União deveria ser patrocinada pelo orçamento fiscal, como parte dos gastos correntes com pessoal, mas, como será analisado mais à frente, o Tesouro Nacional retira recursos do orçamento da seguridade social para patrocinar o Regime Próprio de Previdência do Servidor da União (RPPS).

[11] Nesses dois anos, embora a seguridade social tenha produzido receitas maiores que despesas (superávit), a desvinculação das receitas (DRU) foi inferior a 20% (17,8% em 1995 e 9,2% em 1998). É exatamente isso que indicam os valores nulos dos anos de 1995 e 1998 na última linha da Tabela 3. Nos outros anos, depois de retiradas as desvinculações, ainda sobraram recursos, que se dirigiram para outras aplicações do orçamento fiscal, de forma contrária aos dispositivos legais.

[12] As publicações da ANFIP são “Análise da Seguridade Social em 2004”, de abril de 2005 e “Análise da Seguridade Social em 2005”, de abril de 2006, disponíveis em www.anfip.org.br

[13] Esterilizar tem, aqui, o sentido comumente utilizado pelos economistas quando tratam de recursos monetários que são retirados de circulação. Uma parte dos recursos gerados pelo sistema de seguridade foi retirada dos fins aos quais se destina – saúde, assistência social e previdência -, e também de outro qualquer campo da aplicação que pudesse ser identificado por esta pesquisa a partir dos relatórios de execução orçamentária. Saiu, portanto, da circulação.

Por Denise Lobato Gentil, que é Professora do Instituto de Economia – Universidade Federal do Rio de Janeiro.

ARTIGO COLHIDO NO SÍTIO www.adital.org.br.

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