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A devastação do Brasil no governo tucano-neoliberal

A devastação do Brasil no governo tucano-neoliberal: uma memória (1)

No recente relatório da Fitch Ratings, tão aplaudido por alguns, está a afirmação de que os supostos avanços da economia brasileira que motivaram a “elevação” do rating do país no conceito (ou no apetite) dos bancos externos foram aqueles do governo Fernando Henrique – o que, para uma “agência” que obedece aos interesses estrangeiros mais espoliadores e parasitários da face da Terra, é compreensível. Muito menos compreensível são certas afirmações, por quem não é tucano nem fez parte daquele infeliz governo, de que o sucesso do presidente Lula em seu segundo mandato foi devido à continuidade em relação àquela época catastrófica para o Brasil. Quando Lula assumiu a Presidência, em 2003, o país estava à beira do colapso – e foi a ruptura com o período anterior que possibilitou, sob a liderança de Lula, que o país se reerguesse, assim como foram os elementos que ainda restavam desse malfadado período que mais obstaculizaram esse reerguimento. Tudo isso nos parece óbvio, mas, infelizmente, a memória às vezes falha a alguns – e de tanto ouvir a mídia repetir o seu cantochão sobre os supostos “fundamentos” que alguns devastadores do país teriam assentado, há quem faça, inconscientemente, coro a essa infâmia. Além disso, existem os jovens, alguns que são tão jovens que mal viveram aquela época. Por todas essas razões, veio-nos a ideia lembrar, brevemente, o que foi aquela aflição para o país e seu povo – para os trabalhadores, para os empresários, para os estudantes, para as mulheres, crianças e homens deste país. Não encontramos forma melhor de isto fazer do que apresentar uma condensação do relato e análise de Nílson Araújo de Souza em seu livro “A Longa Agonia da Dependência”. Chamamos a atenção do leitor para o fato de que se trata de obra volumosa – mas acessível a todos os interessados em melhor conhecer a economia e, de resto, a História de nosso país. O que apresentamos aqui é apenas uma amostra – mas suficiente para que conheçamos (ou refresquemos a nossa memória) sobre um dos mais terríveis períodos que o Brasil já passou. O seu desfecho, com a derrota da reação, do atraso e dos destruidores da nação, apesar das marcas que ainda não foram inteiramente superadas, é uma advertência presente aos inimigos do país. Não há continuidade possível e não há volta possível àquela época. Os que o tentaram, aliás, receberam do povo o seu saudável e bem colocado repúdio.

(CL)

NILSON ARAÚJO DE SOUZA

O capital estrangeiro invadiu a economia nacional já no primeiro ano de governo FH. Sob a forma de “investimento direto”, pulou da média de US$ 1,68 bilhão de 1991 a 1994 para US$ 5,48 bilhões em 1995. Os novos empréstimos e financiamentos subiram de US$ 12,58 bilhões anuais do período 1992-94 para US$ 20,46 bilhões em 1995. O ingresso das aplicações especulativas em carteira, que não passava de US$ 3,86 bilhões em 1992, subiu sistematicamente até atingir o montante de US$ 22,6 bilhões em 1995, mas, dada a enorme volatilidade desses capitais, o retorno também acelerou-se; assim, o ingresso líquido, depois de subir de 1992 para 1993, começou a cair: era de US$ 6,6 bilhões em 1993 e de US$ 4,75 bilhões em 1995.

Além da crescente perda do controle da economia nacional resultante da desnacionalização e do endividamento externo, o violento aumento do passivo externo que se aceleraria a partir dali implicava não apenas no aumento da fragilização das nossas contas externas e do conjunto da economia, mas também na crescente drenagem de recursos para o exterior. Como a balança comercial não gerava os recursos para garantir essa drenagem, o resultado passaria a ser o crescimento, em bola de neve, da dívida e da desnacionalização.

De um lado, o Banco Central emitia títulos da dívida pública a fim de “enxugar” os reais emitidos para trocar pelos dólares especulativos que entravam para cobrir o déficit externo e formar as reservas; de outro, os juros altos praticados para atrair esses capitais vadios incidiam sobre a dívida pública, fazendo-a crescer em bola de neve. A dívida mobiliária em poder do público (isto é, a dívida em títulos), que era de R$ 61.78 bilhões quando FH assumiu o governo, já era de R$ 108.49 bilhões ao final de seu primeiro ano de governo, num espetacular aumento de 75,6%. Se considerarmos sua evolução desde que ele assumira o Ministério da Fazenda, em junho de 1993, quando seu montante equivalia a R$ 35.5 bilhões, o aumento foi de 205,6%. O conjunto da dívida do setor público (descontados seus créditos) aumentou de R$ 153.2 bilhões ao final de 1994 para R$ 208.5 bilhões no fim de 1995. A dívida dos Estados e municípios aumentou de R$ 20 bilhões no primeiro mês do Real para R$ 40 bilhões em dezembro de 1995, ou seja, dobrou, não porque tenham tomado mais dinheiro emprestado para investir ou realizar gasto social, mas porque foram sobrecarregados dos juros extorsivos impostos pelo governo federal. O resultado foi que, sobrecarregados de encargos financeiros da dívida, União, Estados e municípios tiveram em 1995 um rombo nas contas, no conceito de déficit operacional, equivalente a 5% do PIB (o maior até então na década de 90), num montante de R$ 32.6 bilhões, quando havia tido um superávit de 1,3% do PIB em 1994 (R$ 8.2 bilhões). A política de FH recriara o déficit público que ele tanto dizia combater.

QUEBRADEIRA

A crise financeira chegou a patamares tão elevados que começou a quebrar até grandes bancos, como o Econômico, o Nacional e o Bamerindus. Parece ironia que, diante de juros tão elevados e, portanto, de grandes possibilidades de ganhos pelos bancos, eles tenham começado a quebrar. Ocorre que os juros eram tão elevados (no crediário variavam de 400% a 450% ao ano) que inviabilizaram a capacidade de pagamento dos tomadores (tanto empresas quanto consumidores), gerando a inadimplência generalizada. Além disso, como mostramos anteriormente, houve naquele ano um brutal aperto da liquidez da economia. Os bancos não recebiam o pagamento dos empréstimos realizados e não contavam com aporte de liquidez pelo Banco Central; ao contrário, o compulsório, ou seja, o repasse dos bancos ao BC, foi aumentado. Os ganhos que obtinham em suas aplicações em títulos públicos não eram capazes de cobrir os prejuízos que tinham em suas aplicações ao setor privado. Nesse caso, só conseguiram sobreviver os bancos em cuja carteira predominavam as aplicações seguras e rentáveis em títulos do governo. Além disso, como ficaria claro no caso do Bamerindus, o governo trabalhou conscientemente no sentido de quebrar vários bancos a fim de entregá-los a bancos estrangeiros. Com o objetivo de “saneá-los” e entregá-los “enxutos” a bancos estrangeiros, o governo criou o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (PROER). Não passava de mais um disfarce para injetar, através do Banco Central, toneladas de dinheiro público nos bolsos dos tubarões da economia. Nesse caso, o BC assumiu que entregou R$ 20.3 bilhões, mas os cálculos feitos pelos economistas da Cepal Pedro Saínz e Alfredo Calcagno indicaram a cifra de R$ 43.4 bilhões. Além disso, o governo assumiu a “parte podre”, não saneada, dos bancos, entregando a “parte boa”, a preço de banana, a bancos privados, sobretudo estrangeiros. Isso sem contar a parte aportada pelo Banco do Brasil e Caixa Econômica em programas de assistência aos bancos falidos, com destaque para a compra dos “créditos podres” das suas carteiras imobiliárias. Em função desse aporte, o BB teve prejuízo de R$ 4 bilhões em 1995, enquanto a CEF sofreu forte queda de rentabilidade. O Banco Central, por sua vez, teve um prejuízo de R$ 36 bilhões e uma perda patrimonial de R$ 16.6 bilhões, fato inédito na história do Banco.

A crise financeira haveria de rebater sobre a economia real. Espremida entre os juros altos e a concorrência predatória externa, a taxa de lucro das empresas tenderia a cair. Por qualquer critério de lucratividade, análise de balanço feita pela FIESP junto a 183 grandes empresas mostrou queda de rentabilidade de 1994 para 1995: rentabilidade do capital próprio – queda de 6,4% para 4,6%; rentabilidade do capital total – queda de 7% para 5,6%; margem de lucro – queda de 6,4% para 4,8%. Além disso, 26% dessas empresas deram prejuízo. O levantamento da rentabilidade sobre o patrimônio das 500 maiores empresas, feito pela publicação “Melhores e Maiores”, indicou uma queda maior: de 10,7% em 1994 para 6,1% em 1995 . Imaginem só o que terá ocorrido com as pequenas e médias empresas, que não tiveram acesso a crédito mais barato no exterior, como ocorreu com as grandes. Nem mesmo a queda do salário e o consequente aumento da taxa de mais-valor conseguiram compensar o efeito corrosivo produzido pelos juros altos na taxa de lucro das empresas.

Com as empresas amargando lucros mais baixos, a produção nacional tenderia a encolher. O detonador foi a subida dos juros em março de 1995. Já no mês de abril a produção despencou. A produção industrial nacional e paulista, que já vinha declinando desde antes, caiu em abril 20% em relação ao primeiro trimestre, segundo dados do IBGE e da FIESP; as vendas industriais nacionais, conforme levantamento da Confederação Nacional da Indústria (CNI), diminuíram 15,33% no mesmo mês; o faturamento do comércio varejista na região metropolitana de São Paulo caiu 7,7% de março para abril, segundo a Federação do Comércio do Estado de São Paulo (FCESP); a indústria de embalagens plásticas, um dos termômetros da atividade industrial, registrou queda em maio de 9,9% de sua capacidade ocupada, de acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Embalagens; a produção nacional de aço caiu 12,79% de março para abril, conforme dados do Instituto Brasileiro de Siderurgia; a indústria automobilística, que acumulava em seus pátios estoques de carros três vezes superior ao normal, deu férias coletivas aos seus funcionários.

PRODUÇÃO INDUSTRIAL

Esse encolhimento da economia persistiu ao longo do ano. A produção industrial nacional, que caiu sistematicamente desde abril, sofreu queda de 8,4% entre o primeiro e o último trimestre de 1995, segundo levantamento do IBGE, sendo de 11,7% entre dezembro de 1994 e dezembro de 1995 (a queda no setor de bens de capital foi de 32,7%). Nesse mesmo período, ainda segundo o IBGE, o PIB caiu 4,5%. Segundo a FIESP, a produção industrial paulista de dezembro de 1995 era 16,6% menor do que a de dezembro de 1994 e 23,73% menor do que o pico de março de 1995. As vendas no comércio varejista também sofreram brutal retração, caindo 13,7% entre dezembro de 1994 e dezembro de 1995, conforme a FCESP. A situação era tão dramática que até o chefe do cartel da mídia, o grupo O Globo, teve que reconhecer que, naquele ano, as empresas arcariam com encargos financeiros da ordem de US$ 70 bilhões. Diante de tal escorcha financeira e da queda das vendas e da produção, o resultado haveria de ser o brutal aumento das falências e das concordatas: as falências requeridas na capital paulista aumentaram 139% de 1994 para 1995 e as concordatas aumentaram 227%.

Ao longo do ano, a produção industrial ainda conseguiu crescer 1,9% – contra 6,7% em 1994 -, graças ao crescimento que obtivera no primeiro trimestre do ano, bafejado pela ilusão monetária que levara ao uso farto do crédito no primeiro momento do real. Mas a ilusão de que se estava pagando um juro barato no crediário, quando, na verdade, o juro real era altíssimo, começou a se desfazer na hora do pagamento das prestações, explodindo em inadimplência generalizada. Medido pelo SPC de São Paulo, já em abril de 1995 o número de inadimplentes aumentou 266% em relação a igual mês do ano anterior, sendo de 130% em maio e de 245% em junho; o número de cheques sem fundos incluídos na listagem do Banco Central aumentou 218% em maio e 267% em junho. Ao final do ano, havia dobrado em relação ao ano anterior. E assim desaparecia essa válvula de escape para os empresários e consumidores.

Muitos empresários acreditavam que essas dificuldades eram acidentes de percurso do Plano Real. Algo como: o “Real é bom, mas tem tido problema de administração ou de turbulências externas”. Ledo engano. Eram condições essenciais, estruturais, desse Plano. A chamada “âncora cambial” era a base fundamental de sustentação do Real, na medida em que permitia o ingresso de produtos estrangeiros mais baratos e forçava as empresas instaladas no país a segurarem seus preços. No entanto, além do efeito devastador sobre a indústria nacional, esse importacionismo provocava a deterioração e consequente estrangulamento da balança comercial. A fim de atrair capitais externos para cobrir esse rombo, o governo adotava uma política de juros altos, isto é, a “âncora monetária”, que espremia mais ainda a empresa nacional. Era a lógica do Plano. Nada de acidental.

A agricultura, contraditoriamente, apesar de haver colhido uma supersafra naquele ano, também amargou uma profunda crise. Os agricultores plantaram em 1994 iludidos pelas promessas de juros baixos do real, mas na hora da colheita enfrentaram um duplo problema: o governo não garantiu o preço mínimo através de compras governamentais e, além disso, elevou as taxas de juros. Premidos por dívidas, que eram corrigidas a juros astronômicos, e sem garantia de compra pelo governo, os agricultores venderam seus produtos aos atravessadores a preços aviltantes: o preço do feijão caiu 63,1% em relação ao ano anterior, soja – menos 30,8%, milho – menos 21,8%, algodão – menos 12,9%, arroz – menos 9%. Em conseqüência, segundo estimativa do economista brasileiro que mais tem se dedicado ao estudo da agricultura, o professor da USP Fernando Homem de Melo, a renda agrícola caiu 32,5%, perda equivalente a R$ 5.6 bilhões. Além de haver provocado a quebra de milhares de pequenos e médios produtores, ceifou 450 mil empregos rurais.   Era essa a outra face da famosa “âncora verde” – a queda dos preços dos produtos agrícolas -, que contribuíra para manter a inflação sob controle na fase inicial do real.

A contração da economia provocou o alastramento do desemprego, que já era grave. Dados da FIESP mostram que, de maio de 1995 a janeiro de 1996, foram ceifados 10% dos postos de trabalho na indústria paulista. O IBGE revelou queda semelhante na indústria brasileira, entre dezembro de 1994 e dezembro de 1995. O salário real também seguiu se deteriorando. Estudo da SEADE/DIEESE mostra que, entre dezembro de 1994 e dezembro de 1995, o rendimento médio do trabalho assalariado em São Paulo caiu 8,4%.

RECESSÃO

Em meio a todas essas dificuldades, Fernando Henrique resolveu, em meados do ano, convocar rede de rádio e televisão para comemorar o primeiro ano do Real. E, sem o menor constrangimento, declarou que, durante o primeiro ano, seu Plano fez a economia crescer, gerar 500 mil novos empregos e aumentar em 20% o poder de compra do salário. Não conseguiu convencer nem a cúpula empresarial, que foi a grande entusiasta do Real desde o primeiro momento. Foi o que declarou Mário Amato, então presidente da Confederação Nacional da Indústria:  “já estamos em recessão, porque não acreditamos no dia de amanhã”. Quanto ao crescimento, vimos que, no momento dessas comemorações, a economia, depois de uma lua-de-mel inicial com o ilusório crédito barato, já entrara em recessão. O nível de emprego, que melhorara naquele primeiro momento, também já começara a declinar com a desaceleração da economia. O salário real, pelo levantamento do DIEESE/SEADE na Grande São Paulo, caíra 12,54% no primeiro ano do Real. A inflação também seguia resistindo. O IPC-r (que media a inflação para famílias de 1 a 8 salários mínimos) foi de 35,3% e o ICV do DIEESE atingiu 55% (para famílias de 1 a 30 salários mínimos). No entanto, se se excluíssem os importados e as tarifas públicas, a inflação seria de 134%, revelando que foi o congelamento do câmbio e das tarifas que impediu a explosão inflacionária. Só que ao mesmo tempo o congelamento do câmbio estava levando à explosão das contas externas e também das contas públicas.

Mas o grupo de FH, que um empresário designara de autista, não conseguia ver essa realidade, a ponto de que, mesmo depois da quebradeira generalizada e da queda da produção e das vendas, seguia alardeando que a economia brasileira não estava em recessão.

Continua na próxima edição.

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A devastação do Brasil no governo tucano-neoliberal: uma memória (2)

Continuação da edição anterior

O crescimento da mobilização popular aumentava o desgaste do governo, ampliando as dificuldades para a aprovação das anti-reformas no Congresso. Por isso, o grupo palaciano decidiu acelerar as votações, para isso atropelando todas as normas regimentais, sem contar a pressão, a chantagem e outros mecanismos espúrios que adotou sobre os parlamentares

NILSON ARAÚJO DE SOUZA

Apesar do forte abalo, o Plano Real ainda não naufragaria na turbulência do primeiro ano do governo FH. Como vimos, graças à correção do câmbio e das tarifas externas em março, mas também à promessa do governo de que realizaria uma “privatização selvagem”, os capitais externos, que haviam começado a fugir no primeiro trimestre do ano, voltaram às carradas, não apenas cobrindo o déficit externo, mas também reforçando as reservas. Vieram não apenas para se locupletar dos juros de agiotagem que se estava praticando. Queriam ser os primeiros da fila na hora em que FH começasse a pagar a conta com a entrega das estatais. Além disso, ao ajudarem a fechar as contas externas, davam a tranqüilidade de que o governo precisava para forçar a aprovação no Congresso da quebra do domínio público sobre os setores estratégicos da economia.

Foi para atendê-los que Fernando Henrique enviou para o Congresso, em meados de fevereiro de 1995 – portanto, menos de dois meses depois de assumir o governo -, as Propostas de Emenda Constitucional (PECs) que quebravam o domínio público sobre o petróleo, o subsolo, as telecomunicações e a energia, além de abrir para o capital estrangeiro a navegação de cabotagem e de conceder à empresa estrangeira o mesmo status da empresa nacional. O objetivo desde o início não era abrir esses setores para a instalação de novas empresas de origem privada, mas entregar o patrimônio das empresas públicas para grupos privados, sobretudo, como ficaria claro mais tarde pelo “modelo de privatização” adotado, a consórcios cujo “sócio estratégico” seria de origem estrangeira.

As “privatizações” não avançaram muito em 1995 porque, no fundamental, já haviam sido entregues as empresas que não estavam resguardadas na Constituição ou nas leis. A “privatização selvagem” dependia, portanto, de mudanças constitucionais e legais. Assim, em 1995, foram entregues apenas sete pequenas empresas do setor petroquímico, num total de US$ 603,7 milhões, e uma no setor de energia, a Escelsa do Espírito Santo, entregue por US$ 519,3 milhões. Naquele ano, iniciaria a grande batalha entre os que queriam se apoderar ou entregar o patrimônio público nacional e os que resistiam a essa entrega. O Poder Legislativo, que seria o palco dessa batalha, sofreria a pressão, de um lado, dos lobistas do capital estrangeiro, do governo e da mídia e, de outro, da crescente mobilização social.

Já antes de enviar a PEC da Previdência para o Congresso, o governo deflagrou o processo da anti-reforma previdenciária com a edição da medida provisória 841, que começava a extinguir a aposentadoria por tempo de serviço. Isso indicava que o governo decidira iniciar suas anti-reformas pela Previdência. A reação popular não se fez esperar. E, assim, já em janeiro de 1995, também se deflagrava a luta popular, particularmente dos aposentados e pensionistas, contra o golpe que o governo pretendia dar sobre os direitos previdenciários. No dia 24 de janeiro, realizou-se, na Praça da Sé, em São Paulo, com a presença de mais de 3 mil pessoas, o “Dia Nacional de Luta dos Aposentados e Pensionistas”, organizado pela Confederação Brasileira de Aposentados e Pensionistas – COBAP, liderada pelo veterano sindicalista Oswaldo Lourenço, vice-presidente da CGTB e que vinha das lutas sindicais de antes de 1964. No mesmo dia, atos semelhantes foram organizados em importantes cidades do interior de São Paulo. Dois dias depois, mais 3 mil pessoas foram às ruas no Rio de Janeiro. E, no domingo 29, mais de 5 mil lideranças de aposentados de todo o país se reuniram em Aparecida do Norte, São Paulo, no seu 6º Encontro Nacional, para organizar a luta em todo o território nacional. A decisão de Fernando Henrique de vetar o salário mínimo de R$ 100 – na época, correspondentes a cerca de US$ 100, que havia sido sua promessa de campanha -, aprovado pelo Congresso, colocaria mais lenha na fogueira, envolvendo na luta o conjunto do movimento sindical. Assim, em 9 de março de 1995, reuniram-se em Brasília, no auditório Petrônio Portela do Senado Federal, cerca de 2.500 lideranças sindicais, representando 250 entidades, incluindo 16 confederações de trabalhadores, todas as federações estaduais, a Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB) e a Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT). Ali, foram marcadas manifestações em todo o Brasil contra o “pacote da Previdência”, que seria editado na semana seguinte. Menos de uma semana depois da edição do “pacote”, seria realizado em Brasília o congresso dos aposentados, organizado pela COBAP, que se encerrou com uma manifestação nas ruas de Brasília com a presença de cerca de 10 mil aposentados. Essas mobilizações repercutiram dentro do Congresso Nacional. Já na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, encarregada de examinar a constitucionalidade do projeto do governo, este sofreria “sua primeira grande derrota”, nas palavras da própria liderança da bancada situacionista: a CCJ desmembrou o projeto em várias partes, dificultando a intenção do governo de aprová-lo em bloco.

Sob essa pressão, o governo, depois de haver vetado o salário mínimo de R$ 100, enviou novo projeto para o Congresso estabelecendo esse mesmo valor, e, numa manobra esperta, sabedor da sensibilidade dos parlamentares para essa questão, pediu regime de urgênciaurgentís- sima para sua aprovação conjunta com o “emendão da Previdência”. E sofreu sua segunda derrota no Congresso: no dia 5 de abril, os parlamentares aprovaram o regime de urgênciargentíssima apenas para o salário mínimo, deixando a votação da anti-reforma da Previdência para depois. O Primeiro de Maio daquele ano se converteria no grande desaguadouro das lutas populares contra esse “pacote”.

Graças à mobilização popular, o governo passou a enfrentar crescente resistência no Congresso para aprovar o “pacote da Previdência” e por isso resolveu adiar essa votação, colocando na ordem do dia as anti-reformas das telecomunicações, do petróleo, da navegação de cabotagem, do subsolo e da definição de empresa nacional. A mobilização popular também mudou de caráter: passou da etapa de defesa dos direitos previdenciários para a defesa da soberania nacional e do patrimônio público. Em 24 de abril de 1995, o Fórum das Estatais do Rio de Janeiro realizou manifestação com cerca de 10 mil pessoas nas ruas centrais da cidade em defesa do patrimônio público e da soberania nacional. No dia 11 de maio, foi lançado o Manifesto em Defesa da Soberania e da Integridade do Brasil, assinado por importantes lideranças nacionais, como o ex-chefe do Estado Maior das Forças Armadas, General Antônio Carlos de Andrada Serpa, o presidente da Associação Brasileira de Imprensa, Barbosa Lima Sobrinho, o ex-vice-presidente da República, Aureliano Chaves, o presidente da CGTB, Antônio Neto, a presidenta da Confederação das Mulheres do Brasil, Rosanita Campos, entre outros. Uma semana depois, os estudantes secundaristas de São Paulo, liderados pela União Municipal dos Estudantes (UMES), ocupariam as ruas da cidade em defesa da soberania nacional e 180 deputados e senadores assinariam moção contra a quebra do domínio público sobre as telecomunicações em ato de lançamento da Frente Parlamentar Brasil Soberano. No começo de junho, seria lançada em São Paulo a Frente em Defesa do Brasil, que organizou no dia 13 do mês uma manifestação com mais de 20 mil pessoas na capital paulista e voltaria a ocupar as ruas de Brasília no dia 21 com cerca de 30 mil pessoas provindas de todo o Brasil.

O crescimento da mobilização popular aumentava o desgaste do governo, ampliando as dificuldades para a aprovação das anti-reformas no Congresso. Por isso, o grupo palaciano decidiu acelerar as votações, para isso atropelando todas as normas regimentais do parlamento, sem contar a pressão, a chantagem e outros mecanismos espúrios que adotou sobre os parlamentares.  Assim, entre fins de maio e o mês de junho, conseguiu aprovar na Câmara dos Deputados a mensagem 193/95, que, ao alterar os artigos 171, 176 e 177 da Constituição, acabava com o conceito de capital nacional e permitia a participação do capital estrangeiro na navegação de cabotagem e na exploração do subsolo, bem como as PECs que impunham a quebra do domínio público sobre as telecomunicações e o petróleo, mas não sem haver enfrentado grandes tensões.

Na votação do primeiro turno das telecomunicações, por exemplo, depois de um placar de 348 votos a 140 na votação do texto principal, o governo só conseguiu 220 votos contra 219 na deliberação sobre os principais destaques parlamentares. Depois da votação do primeiro turno da emenda do petróleo, o deputado José Aristodemo Pinotti declarou: “A votação sobre o petróleo foi nula de direito porque o relator da matéria confessou que recebeu recursos substanciais para sua campanha eleitoral da companhia petrolífera interessada em tomar a Petrobrás”. Para conseguir a aprovação da emenda do petróleo, FH comprometeu-se com os deputados que enviaria um projeto garantindo que não privatizaria a Petrobrás nem as reservas por ela descobertas.

E foi precisamente na questão da Petrobrás que se concentraram os principais embates por ocasião da votação das anti-reformas no Senado. Já no começo de julho, a emenda aprovada na Câmara chegava ao Senado. No início de agosto, o relator escolhido, senador Ronaldo Cunha Lima (PMDB-PB), anunciou que, em seu substitutivo, incluiria salvaguardas para impedir a entrega da Petrobrás e garantir que continuaria em suas mãos as áreas já descobertas ou em processo de produção.

A intenção do relator era que, em lugar de entregar o patrimônio público, como seria o caso dos demais setores em que o governo pretendia “flexibilizar” o domínio público, no caso do petróleo as novas empresas que quisessem ingressar no setor teriam que realizar novos investimentos.

Apesar de haver se comprometido com essas salvaguardas durante a votação na Câmara, o governo de Fernando Henrique reagiu duramente contra as intenções do senador Cunha Lima. No entanto, como este conseguiu o apoio da bancada de seu partido, que era majoritária no Senado, o governo teve que recuar pelo menos formalmente. Para conseguir que a emenda fosse aprovada na CCJ do Senado sem alteração, FH, em reunião com os senadores, comprometeu-se a cumprir essas salvaguardas e que, para que não houvesse dúvidas, enviaria uma carta-compromisso ao Senado. A carta foi enviada, mas os compromissos, como é da natureza de FH, eram vagos: garantiu que não privatizaria a Petrobrás nem os poços em produção, mas, além de não se comprometer claramente com uma lei complementar que regulamentasse esse “acordo”, deixou vaga a questão dos poços já descobertos. Era esse o pulo do gato. Como não haviam condições políticas para entregar a Petrobrás, a política do governo Fernando Henrique para o setor passaria a ser a realização de “leilões” dos poços já descobertos pela empresa.

1996

Iniciamos o ano de 1996 sob o signo de duas mensagens contraditórias. De um lado, na mensagem enviada ao Congresso Nacional, por ocasião da reabertura de seus trabalhos, Fernando Henrique tentou convencer aos parlamentares e, obviamente, a toda a Nação de que no Brasil tudo estava indo bem, graças ao Real. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), por seu lado, abriu a Campanha da Fraternidade daquele ano com uma mensagem que dizia que a política neoliberal que estava sendo implementada no Brasil admitia a exclusão social como princípio fundamental de funcionamento. Declarou então: “É uma política que dia a dia vem excluindo uma massa considerável de cidadãos e cidadãs do processo produtivo e distributivo, carregando ainda mais as armas da violência. Não é justo que se roube o pouco dinheiro dos pobres aposentados, dos pequenos produtores e dos trabalhadores em geral para injetar no sistema financeiro… Basta de sacrificar vidas para salvar planos econômicos”.

FH mais uma vez queria iludir a opinião pública. A CNBB tinha razão. O próprio IPEA, órgão de pesquisa do Ministério do Planejamento e que vinha, sistematicamente, apresentando estimativas e projeções otimistas para agradar e defender o governo, projetou, em sua carta de janeiro daquele ano, uma queda do PIB de 2,2%, na comparação dos 12 meses que se encerrariam em março com os 12 meses anteriores. O IBGE, outro órgão oficial, levantou que a produção industrial nacional caiu 9,3% no primeiro trimestre daquele ano em relação a igual período do ano anterior. A queda do nível de emprego industrial no país, segundo levantamento da CNI, foi de 9,72% de março de 1995 a março de 1996. A situação se estendeu por todo o primeiro semestre do ano: o consumo industrial de energia em São Paulo caiu 9,5% no primeiro semestre em relação a igual período do ano anterior; a produção industrial paulista caiu cerca de 9% e a de máquinas caiu 16,1%; as vendas de máquinas agrícolas caíram 62,95% e as de autopeças, 8,2%. A safra agrícola, por sua vez, sofrera queda de 7%. Os agricultores, depois de amargarem a enorme perda de 1995, recuaram no plantio.

Até o Banco do Brasil quase quebrou: teve um prejuízo de R$ 4 bilhões em 1995. Isso se deveu à combinação de duas coisas: de um lado, em face das dificuldades das empresas e dos agricultores, em suas carteiras jaziam R$ 20 bilhões de créditos em atraso, sendo R$ 9 bilhões de produtores rurais; de outro, era obrigado pelo governo a, junto com a CEF, socorrer os bancos privados, rolando diariamente cerca de R$ 11 bilhões, o que correspondia a metade de todas as operações realizadas no interbancário. O BB só não quebrou porque o governo devolveu-lhe R$ 8 bilhões que o Tesouro lhe devia, em grande parte por conta do crédito agrícola.

Enquanto isso, os grandes bancos privados nadavam em dinheiro. Os primeiros balanços semestrais divulgados mostraram que seus lucros aumentaram estupidamente em relação ao ano anterior: Bradesco – mais 62%, Unibanco – mais 83,3%, Itaú – mais 60%. Esse aumento dos lucros dos grandes bancos não é contraditório com a quebra que atingiu vários bancos. Quebraram aqueles que concentraram seus empréstimos no setor privado.  Como este estava em estado de verdadeira calamidade, não conseguia pagar suas dívidas construídas nas asas dos juros estratosféricos, gerando dificuldades para os bancos. No entanto, aqueles que optaram por concentrar suas aplicações no setor público, particularmente em títulos do governo federal, estavam com as burras cheias. Isso puxou para cima a rentabilidade dos bancos naquele ano. Levantamento feito pela consultora Austin Asis junto a 19 instituições financeiras indicou que a rentabilidade média sobre o patrimônio líquido aumentou de 8,5% em 1995 para 21,4% em 1996. Enquanto a economia real submergia em dificuldades e o povo sumia na miséria, os bancos festejavam seus gordos lucros.

A inadimplência também corria solta. O Boletim do Banco Central divulgou que o atraso de pagamentos nos financiamentos bancários triplicou no período do Real: atingiu a cifra de R$ 44.32 bilhões em agosto de 1996 contra R$ 9.76 bilhões em julho de 1994. No Banco do Brasil, a inadimplência das pessoas físicas atingira 25% das operações, índice semelhante ao das operações de financiamento da casa própria da CEF. A inadimplência no comércio era também generalizada: os títulos protestados em 1995 e 1996 haviam atingido cifras recordes (na base de 8 milhões por ano). As ações de despejo por falta de pagamento de aluguel na capital paulista, que estiveram na média anual de 1.600 no período de 1993 a 1994, subiram para mais de 4.000 em 1996.

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A devastação do Brasil no governo tucano-neoliberal: uma memória (3)

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Diziam que seu Plano penalizou os bancos e beneficiou o povo. Vimos que os bancos que quebraram, empanturrados pela inadimplência parida pelos juros altos e encilhados pelo aperto da liquidez, foram apenas aqueles que o governo pretendia entregar a grupos estrangeiros

NILSON ARAÚJO DE SOUZA

Com os pés no chão estavam os empresários. Depois de mais de um ano de grandes dificuldades, com queda do faturamento e das margens de lucro, suas expectativas em relação ao futuro imediato não eram nada boas. Pesquisa feita pela FIESP, na primeira quinzena de junho, junto a 1.150 industriais paulistas, revelou que apenas 29% dos empresários acreditavam que despontava um início de recuperação econômica ou se caminhava para uma recuperação, enquanto 71% deles avaliavam que a situação estava incerta, indefinida, caminhando para uma recessão ou desindustrialização. De nada adiantaram as perorações da revista Exame, que, tentando prestar um serviço ao governo, buscara, em matéria com chamada de capa, em maio, combater a “onda de pessimismo”. Perguntara: “Estamos tão mal assim?”. O pior é que estávamos. Os empresários estavam retratando a realidade. Ainda não haviam conseguido ultrapassar o choque do fechamento de duas importantes empresas do país, a Sofunge e a Vicunha.

Foi nesse clima que o governo de FH sofreu duas importantes derrotas. Pressionado pela mobilização popular, o Congresso Nacional rejeitou a emenda constitucional que visava quebrar os direitos previdenciários e criou uma CPI para investigar as irregularidades do Banco Central, sobretudo as praticadas por conta do PROER. A reação de FH foi chamar os parlamentares de irresponsáveis e responsabilizá-los pela desvalorização dos títulos brasileiros no exterior, o que, segundo ele, expressaria uma redução da confiança dos financistas internacionais em relação ao Brasil. Tudo o que ele gostava de fazer era de agradar a essa casta financeira.

Nessa época, a CNBB, através da mensagem quaresmal de seu presidente, D. Lucas Moreira Neves, declarou: “Não é justo que se roube o pouco dinheiro dos aposentados, dos pequenos produtores e dos trabalhadores em geral para injetar no sistema financeiro”.

No dia 6 de março de 1996, o plenário da Câmara Federal rejeitou o “pacote” da Previdência, impondo uma importante derrota ao programa do governo Fernando Henrique.

Mas o governo não desistiu: depois das pressões e chantagens de sempre, conseguiu sua aprovação, em primeira instância, no dia 21 de março no plenário da Câmara. Provocado pela oposição, o Supremo Tribunal Federal, em decisão liminar, suspendeu a votação da Câmara porque, contrariando o artigo 60 da Constituição, o substitutivo reproduzia trechos literais do projeto rejeitado. Estranhamente, em decisão posterior, no começo de maio, o plenário do STF derrubaria a própria liminar, legalizando uma decisão do Congresso que contrariava a Constituição.

Na votação dos destaques, o governo sofreria novas derrotas – manteve-se a aposentadoria proporcional para servidores, derrubou-se a exigência de idade mínima para aposentadoria proporcional para trabalhadores das empresas privadas – e quase foi derrotado em seu objetivo principal: a substituição do “tempo de serviço” pelo “tempo de contribuição” teve apenas um voto a mais do exigido para sua aprovação. O governo conseguiu ao final, depois de muita tensão e algumas derrotas, aprovar seu projeto contra os direitos previdenciários dos trabalhadores, mas não teve força para impor o projeto de seus sonhos: além de substituir o “tempo de serviço” pelo “tempo de contribuição”, o governo queria estabelecer um teto para a contribuição e aposentadoria do servidor público, como forma de abrir espaço para a previdência complementar, que seria administrada pelos bancos. A ampla mobilização dos trabalhadores impediu esse intento governamental de privatizar a Previdência.
CORTES

Premido pelo incontrolável crescimento da dívida pública mobiliária interna (que já atingira R$ 151 bilhões), o governo decidiu cortar investimentos e demais gastos públicos como forma de produzir superávit primário para pagar a “mesada” dos banqueiros.

Ao final do ano, o PIB só havia crescido 2,7% contra 4,2% no ano anterior. A taxa de investimento sofrera pequena baixa: caiu de 16,7% em 1995 para 16,48% em 1996. Enquanto isso, a taxa de desemprego havia aumentado: a do IBGE, mais restrita, subira de 4,6% em 1995 para 5,4% em 1996; ao do DIEESE/SEADE, que soma o desemprego aberto e o oculto, pulou de 13,2% para 14,9% na Grande São Paulo.

A sobrevalorização da moeda seguia alavancando o importacionismo e dando continuidade ao processo de desindustrialização da economia. A participação do produto industrial no PIB baixou de 41,61% em 1993 para 40% em 1994, 36,67% em 1995 e 34,7% em 1996. A outra face da moeda era o aumento da participação dos produtos importados na produção interna: a participação das importações industriais no PIB da indústria de transformação, que já havia subido de 12,1% em 1989 para 20,6% em 1993, atingiu 30,5% em 1996.

Em consequência, conforme levantamento do IBGE, o número de trabalhadores industriais ao final de 1996 era 34,2% menor do que em 1989. Foi isso certamente que inspirou o então ministro da Indústria e do Comércio, o ultraconservador Francisco Dornelles, em palestra para os empresários da FIESP, a qualificar a política de comércio exterior adotada pelo governo de “abertura estabanada, repentina e apressada”.

As decisões do governo também aumentaram o sufoco dos entes federados. A dívida total dos estados, que, por força dos juros altos praticados pelo governo, já havia atingido R$ 92,6 bilhões, implicava em encargos financeiros em torno de R$ 30,6 bilhões por ano (à taxa de juros de 33% ao ano). Isso representaria 56,7% da receita estimada de ICMS (R$ 54 bilhões) para aquele ano. Sua dívida mobiliária havia dobrado nos dois primeiros anos de governo FH, passando de R$ 24,9 bilhões em dezembro de 1994 para R$ 51,7 bilhões em dezembro de 1996. Para seguir pagando esses encargos, os estados estavam deixando de honrar suas folhas salariais e paralisando as atividades da administração. Houve estado que chegou a atrasar os salários por mais de cinco meses. Foi nesse quadro que o governo, através da Lei Kandir, resolveu isentar de ICMS os produtos exportados, confiscando, na prática, cerca de R$ 3,6 bilhões por ano dos estados.

Além disso, para auxiliar o processo de recomposição das dívidas estaduais, em grande medida geradas por sua política de juros altos, o governo de FH impôs condições tão draconianas que não chegaram a ser exigidas sequer pelas metrópoles imperiais de suas colônias ou pelo FMI dos países a quem impõe seu receituário. A condição básica era a doação dos patrimônios estaduais (principalmente, empresas de energia elétrica, de água e saneamento, de telefonia e dos bancos estaduais). Para garantir que essa exigência fosse cumprida, chegou a realizar um verdadeiro processo de intervenção nos estados que não chegou a ser posto em prática sequer quando, na época ditatorial, os governadores eram nomeados. O mecanismo adotado foi a nomeação pelo BNDES de diretores para os cargos–chaves das empresas que iriam ser “privatizadas”.

O governo colheu o que plantou. Apesar de toda a demagogia de que o país já iniciara um novo ciclo de crescimento e de o governo haver preservado no orçamento as verbas destinadas às bases eleitorais de seus deputados, nas eleições municipais de 1996, o partido do Presidente, o PSDB, não elegeu prefeito em qualquer capital importante.
BANCOS

Nem bem as urnas se fecharam, o governo começou a preparar o terreno para apertar mais o cinto. Começou usando o IPEA e o Ministério do Trabalho para alardearem que estaria havendo um violento aumento da produtividade do trabalho: na indústria de transformação, ela teria aumentado 15,17% de junho de 1995 a maio de 1996. E completavam dizendo que a “hipótese mais provável” era que esses ganhos teriam sido transferidos “aos consumidores, via preços baixos”. Isso seria verdade se os preços houvessem caído e o salário real aumentado. Mas não foi isso o que ocorreu. A inflação naquele ano variou de 9% a 10%, a depender do índice. Enquanto isso, segundo a CNI, o salário real dos trabalhadores da indústria brasileira caiu 6,5% entre junho de 1995 e junho de 1996.

Mas os objetivos daquela notícia eram outros. Em lugar de comparar maio de um ano com junho de outro, como eles capciosamente fizeram, comparemos junho de 1996 com junho de 1995. O IBGE nos diz que a produção industrial caiu 5% nesse período; enquanto isso, o nível de emprego industrial, segundo a CNI, caiu 9%. Como a produção caiu menos que o nível de emprego, isso significa que os trabalhadores que permaneceram trabalhando passaram a produzir um pouco mais que antes, ou seja, cada trabalhador aumentou sua produção. Mas, como se percebe, muito aquém dos 15,17% alardeados.

Em segundo lugar, esse pequeno aumento de produção por trabalhador não significa, necessariamente, um aumento da produtividade real, isto é, que tenha resultado de avanço tecnológico. A maior parte desse aumento era fictícia, aparente. De um lado, pressionadas pelos juros altos, o câmbio sobrevalorizado e a concorrência predatória de produtos estrangeiros, as empresas aqui instaladas buscaram reduzir seus custos “terceirizando” parte de suas atividades. Ao enxugar sua folha salarial, viam-se livres de alguns custos trabalhistas. Com menos trabalhadores na própria planta fabril, tudo levava a crer que cada um estava produzindo mais. Na verdade, estava deixando-se de contar os trabalhadores “terceirizados” que também concorriam para a produção.

De outro lado, as transnacionais aqui instaladas, particularmente nas áreas automobilística e eletroeletrônica, passaram a importar de suas matrizes parte significativa dos componentes antes produzidos internamente. Segundo estudo do economista Luciano Coutinho, o “índice de nacionalização” dos produtos da indústria automobilística já baixara de 100% para 85%, caminhando rapidamente para 70%, e, no setor eletroeletrônico, o peso dos insumos importados subira para mais de 50%, alcançando em alguns produtos percentuais ao redor de 70%.

Era impossível um desenvolvimento tecnológico com as empresas locais acossadas por juros estratosféricos, pelo câmbio sobrevalorizado e pelo dumping praticado pelas empresas estrangeiras que estavam exportando para o Brasil. O que estava ocorrendo era que as empresas, sob essa pressão e inseguras em relação ao futuro, demitiam mais do que a queda da produção ou deixavam de contratar quando ocorria alguma melhoria eventual das vendas, optando por pagar horas extras (ou seja, aumentar a jornada de trabalho) ou usando mais intensivamente a força de trabalho existente.

Em síntese, as empresas estavam sendo impelidas não para as formas mais avançadas de obtenção de lucro (baseadas no progresso técnico), mas para as formas típicas da fase inicial do capitalismo (baseadas no aumento da jornada e da intensidade do trabalho, formas mais desbragadas, primitivas e predatórias de exploração da força de trabalho).

Secundando o governo, a revista Veja desencadeou uma campanha em meados de dezembro para provar que estaria havendo um “novo milagre brasileiro”, o qual estaria levando a classe operária – ou, na linguagem do articulista, o “pobre” – ao tão ansiado paraíso. Dizia a revista que estaria havendo uma “mudança revolucionária” no país: os pobres estariam comprando mais e tendo, por conseguinte, “uma vida mais farta”. O resultado seria que “o Brasil já colocou o primeiro sapato no vestíbulo de um novo ciclo de crescimento econômico”. Era uma espécie de repetição, para não dizer um plágio, do que a revista Exame já fizera no mês de maio.

Já vimos que o poder de compra dos que ganhavam menos diminuiu. Mas o governo, no seu costumeiro ilusionismo, divulgou, também através do IPEA, que não apenas preservou como, inclusive, aumentou o gasto público social em 1996: 7,78%. Para chegar a esse número, o órgão incluiu na rubrica de “gasto social federal” as despesas da Previdência Social e do Fundo de Amparo ao Trabalhador (constituído por recursos dos trabalhadores, como o FGTS e o PIS-PASEP), que, como é fartamente sabido, têm receitas e administração próprias – portanto, independem de decisões do governo central. Segundo o próprio IPEA, os gastos sociais efetivamente sob controle do governo federal diminuíram em relação aos baixíssimos níveis a que os havia levado o governo Collor.

A matéria da Veja afirmava que a fartura havia tomado conta da mesa dos brasileiros mais pobres. No entanto, durante a Feira Internacional de Alimentação de 1997, o presidente da Associação Brasileira da Indústria de Alimentação (ABIA) informou que, no primeiro semestre de 1996, as vendas de alimentos só aumentaram 2% em relação à difícil situação (por todas reconhecida) do primeiro semestre de 1995. A revista fez uma verdadeira apologia da venda de carne. É verdade que cresceram no primeiro momento do Real, porque, em face da forte crise na agricultura, os pecuaristas, endividados ao extremo, passaram a matar até suas matrizes, vendendo a carne a baixo preço, mas o resultado foi a deterioração do rebanho. A queda do salário falou mais alto e, depois da euforia inicial, o consumo de carne começou a cair. Segundo dados da FCESP, as vendas dos açougues cresceram apenas 1,63% de agosto de 1995 para agosto de 1996, mas as dos supermercados caíram 4,36% no período e 5,12% no acumulado do ano. Quanto ao feijão-com-arroz, a própria matéria reconheceu que o consumo caiu 4% desde o início do Real.

Essa peroração de que os “pobres” haviam melhorado de vida com o Real era também uma repetição do que vinham dizendo os homens do governo: citando a quebra dos bancos em 1995, diziam que seu Plano penalizou os bancos e beneficiou o povo. Vimos que os bancos que quebraram, empanturrados pela inadimplência parida pelos juros altos e encilhados pelo aperto da liquidez, foram apenas aqueles que o governo pretendia entregar a grupos estrangeiros.

O articulista da Folha Celso Pinto, repetindo o discurso governista, baseou-se na ressaca bancária de 1995, provocada pela inadimplência generalizada, para tentar demonstrar que, com a derrubada da inflação, os bancos haviam perdido peso na economia (ver matéria “Como o Real afetou os bancos”). Ele não percebeu que, com apoio do governo, eles rapidamente descobriram o caminho das pedras. Já vimos que sua rentabilidade média sobre o patrimônio líquido subiu de 8,5% em 1995 para 21,4% em 1996. Esses ganhos se deveram, em primeiro lugar, às receitas de suas operações com títulos públicos: estudo feito pelo jornal Gazeta Mercantil revelou que, no período 1994/96, 23% das receitas bancárias tiveram essa origem. A dívida mobiliária subiu 185,57% nos dois primeiros anos do governo FH, passando de R$ 61,7 bilhões em dezembro de 1994 para R$ 176,2 bilhões em dezembro de 1996, passando de 20,77% do PIB para 29,32%, conforme dados do Banco Central.

Essa trajetória explosiva da dívida pública recriara o déficit operacional (que inclui o pagamento de juros), que foi de 4,4% do PIB nos dois primeiros anos da gestão FH, acompanhando dali em diante a mesma trajetória explosiva da dívida.

O segundo mecanismo criado pelo governo para premiar os bancos foi a liberação das tarifas bancárias. O mesmo levantamento indicou que as receitas dos bancos com essas tarifas subiu de 2% de sua receita total em 1994 para 13% em 1996. O governo também ajudou os bancos com verbas públicas através do PROER, forçou o Banco do Brasil e a CEF a emprestarem a juros subsidiados rios de dinheiro para os bancos em dificuldades e determinou ao Banco Central que comprasse “moeda podre” dos bancos privados, como o Fundo de Compensação das Variações Salariais (FCVS) da carteira de crédito imobiliário. Segundo Lázaro Brandão, presidente do Bradesco, “um terço do lucro foi resultado de uma operação de venda ao Banco Central de créditos de cerca de R$ 1 bilhão contra o FCVS”. Ajudados dessa forma pelo governo, os grandes bancos, além da substancial melhoria da rentabilidade, participaram ativamente, ao lado do capital estrangeiro, do processo de aquisição de empresas não-financeiras: segundo pesquisa da Engenheiros Financeiros & Consultores, os cinco maiores bancos privados (Bradesco, Itaú, Unibanco, Real e Bamerindus), que em 1993 haviam destinado 37% dos seus investimentos a empresas coligadas e controladas fora do sistema financeiro, aumentaram para 48% em 1994, 52% em 1995 e 58% no primeiro semestre em 1996, sendo que o índice do Bradesco chegou a 77%. O setor produtivo brasileiro, além de estar encolhendo, passava crescentemente para as mãos do capital estrangeiro e dos bancos.
DESAQUECER

Não tardou muito para que ficasse claro qual era o objetivo do governo e da Veja com a campanha de que estaria havendo um “novo milagre brasileiro”, alavancado por um espetacular crescimento da produtividade e por uma “febre de consumo”. O então presidente do Banco Central declarou na primeira quinzena de novembro nos EUA que o governo pretendia desacelerar, desaquecer, esfriar, a economia. Em entrevista no Chile pouco depois, FH tentou consertar a inconfidência, mas já era tarde demais. Já havia se tornado público que o governo queria esfriar uma economia que não estava aquecida.

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