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Estatuto da Igualdade Racial somente será efetivo pela ação social

O 1º Fórum Nacional A Invisibilidade Negra no Sistema Financeiro, realizado pela Contraf-CUT, em Salvador, discutiu o Estatuto da Igualdade Racial e a atuação de parlamentares no combate à discriminação. O tema foi debatido no final da tarde de segunda-feira (28), pelo deputado federal Luiz Alberto (PT-BA) e por João Jorge, presidente do Olodum. Para eles, o estatuto trouxe avanços, mas tem limites colocados pela correlação de forças no Congresso Nacional e só será efetivado pela ação e cobrança da sociedade.

O deputado contextualizou a aprovação do estatuto com a atual situação política do Brasil. Ele recordou que o debate se fortaleceu com a participação brasileira na III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância em Durban, ocorrida na África do Sul, em que o país levou a maior delegação.

“Com isso e para responder às diretrizes colocadas pela conferência, iniciou-se um debate mais intenso sobre a reserva de vagas para a população negra, que avançou em várias universidades brasileiras”, citou.

“Temos visto avanços no nosso país. O Brasil passou a reconhecer o racismo como parte constitutiva da desigualdade. A implantação de políticas públicas para negros geraram debate intenso e a própria criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) é um divisor de águas em relação à postura do Estado brasileiro sobre a questão”, avaliou Luiz Alberto.

Acabar com o preconceito

Para o parlamentar, é fundamental acabar com o preconceito e com as medidas focadas na questão racial. “Mesmo parte da esquerda ainda acredita que o universalismo resolve tudo, o que não é verdade. Ele pode até ser usado para excluir. Quando as populações desprovidas não conseguem fazer uso dos mecanismos universais, elas são tratadas como incompetentes, como no caso do vestibular”, disse. “As cotas e a criação de outras formas de acesso à universidade são avanços antes da universalização das vagas, que continua um objetivo”.

A discriminação nos bancos, nas contratações, nos salários e na ascensão profissional está dentro desse contexto quando as empresas justificam essa situação com a menor escolaridade dos negros. “Isso é um elemento, mas acreditar que superar essa diferença resolve é errado. Nega as bases ideológicas do racismo. É acreditar que um negro com diploma universitário não sofre racismo”, disse o deputado.

“Mas quando o ministro Joaquim Barbosa, o primeiro negro a assumir uma vaga no Supremo Tribunal Federal, chegou ao Tribunal, ele foi o único de quem o porteiro pediu identificação. Não é o título de doutor, é a cor da pele”, lembrou.

Para o deputado, a discussão da superação das discriminações de raça é central na sociedade brasileira e supera o conceito de inclusão. “O IBGE diz que somos mais de 50% da população, cerca de 100 milhões de pessoas. Como vamos discutir inclusão da maioria? É um contra-senso. Temos que mudar as estruturas da sociedade”, afirmou. “Não estamos discutindo apenas a inclusão dos negros porque ela significará a mudança do status quo nesse país. O Brasil incorporou recentemente 30 milhões de pessoas em nossa economia. Um país que faz um processo desses não tem volta.”

Dessa forma, o movimento leva a um momento de reação das elites brasileiras, seja no Congresso Nacional, seja na mídia. “Em especial no jornal O Globo, que capitaneia essa ofensiva. Quase todos os dias tem um editorial criticando algum ponto da agenda racial. Outro dia pegaram uma questão do Enem sobre a obrigatoriedade do ensino de historia da África para dizer que o exame passou a propagar a ideologia do ‘racialismo’ no Brasil. O Demétrio Magnoli [articulista de O Globo] fez um artigo em que parecia que estamos à beira da revolução e o MEC é o centro do partido revolucionário”, ironizou.

Mesmo com os avanços, há um longo caminho a percorrer. “Somos maioria na população, mas apenas 5% no Congresso Nacional. Como o tema vai ser tratado de forma séria na Casa de Leis? Como nos contrapor quando a bancada ruralista faz proposta contra a política dos quilombolas?”, questionou.

O deputado destaca dois vetores fundamentais nessa luta: o mercado de trabalho, incluindo acesso à contratação, igualdade de renda e de ascensão na carreira, e no campo, com maior acesso à terra. “Nesse contexto, estamos ganhando um aliado importante com os bancários. Na década de 70, o debate era exclusivo do movimento negro. Quando a Contraf-CUT promove um debate como esse, é uma vitória de todos nós para que se avance numa sociedade igualitária, socialista. Estava cansado de participar de fóruns de discussão só com negros e negras. É importante ter pessoas de outras etnias. Mostra que transformamos o tema num debate nacional”, afirmou.

“Vivemos numa sociedade cruel”

João Jorge reconheceu a importância do estatuto, mas criticou os seus limites. Ele lembrou que, nos anos 70 e 80, o movimento negro lutou para ter um estatuto que afirmasse de forma clara o que é discriminação, o que é preconceito e que pudesse levar à implantação de ações afirmativas na educação, cultura, trabalho.

“Levou 20 anos para chegar e foi aprovado com críticas de vários setores do movimento negro, mas é uma lei do possível. Foi criado dentro das forças dos negros naquele momento, que eram 5% dos parlamentares no Congresso Nacional. Nenhum país do mundo que tem população diversificada tem esse percentual tão baixo de representação de uma grande população no parlamento. Outro recorde mundial é a baixa participação das mulheres”, denunciou.

Nesse contexto, o presidente do Olodum considerou o estatuto mais uma “lei genérica brasileira” sobre o tema, como seriam a Lei do Ventre Livre e a própria abolição da escravidão. “É uma lei que tem um caráter de orientação. Diz aos bancos, universidades, clínicas de saúde, governo e demais atores que devem praticar ações afirmativas.”

Mas ele vê avanços ao colocar essas políticas em discussão. “Um exemplo é uma lei aprovada em Salvador que reserva 30% das vagas de concursos públicos municipais para afrodescendentes. Hoje temos cotas de negros, alunos de escola pública e indígena em várias universidades e não teve nenhum conflito racial”, destacou.

Jorge destaca que o Brasil, ao contrário do que se fala, tem vasta experiência em políticas afirmativas. “Em diversos momentos tivemos políticas desse tipo. Já tivemos financiamento para artistas no exterior, recursos do governo federal para estados e regiões específicos. Havia uma lei no século XIX que dizia claramente para procurar pessoas na Alemanha para colonizar o sul do Brasil, fornecendo financiamento, terra e cidadania. Além disso, proibia presença de escravos e pessoas que bebem e provocam arruaça”, recordou.

Mas a questão da discriminação permanece. “Vivemos numa sociedade cruel, fundada no machismo, no genocídio da população indígena, no maior transporte de pessoas de uma população à força para outro lugar. Foi para o Brasil que veio a maioria dos negros da África, não para os EUA ou para o Caribe. E no Brasil, a maioria para a Bahia, que hoje tem a maior população negra. E mesmo aqui, a questão da visibilidade negra funciona no sentido inverso”, sustentou.

A segregação no marketing dos bancos

Ele contou que o Banco do Brasil patrocinou duas cantoras no carnaval da Bahia, Claudia Leite e Daniela Mercury, e não destinou recursos a nenhum dos blocos afros da cidade. “Nós do Olodum cobramos o banco e ficamos sabendo que nenhuma verba dos R$ 52 milhões que a empresa destinou para patrocínio foi para projetos afros, enquanto se especula que R$ 9 milhões foram para as duas cantoras. E ainda assim, uma delas negociou em separado com outro banco”, denunciou.

Na Caixa, foram R$ 40 milhões e nenhum dos projetos era negro. Nos Correios, de 114 projetos, apenas 1 era ligado à cultura negra. “É um transferindo recursos para os mesmos: 86% do dinheiro ficam em São Paulo e no Rio de Janeiro. A participação de BB e Caixa no Nordeste é pífia. O BB passou a ser o operador das contas da Bahia com o governo Jaques Wagner, mas não deu nenhuma contrapartida à comunidade”, afirmou.

“No esporte, é a mesma coisa. Patrocínios do BB e Correios vão para esportes com baixa presença negra, como natação e tênis. O sistema financeiro é apenas um catalisador de recursos da sociedade, da renda do trabalho. É um rio que corre para o mar”, comparou.

Nesse contexto, ele destacou a importância de utilizar o consumo como arma para combater a discriminação. “A população negra autodeclarada chegou a 50,4% segundo o IBGE. Imagine que 10%, 12% tenha vergonha de dizer que é mestiço e podemos chegar a 140 milhões de habitantes negros – são quatro Argentinas, 80 vezes a população de Portugal. E o sistema financeiro nos trata como invisíveis”, sustentou.

“Nós compramos celulares, computadores de último tipo, carros. Precisamos mudar nossos hábitos de consumo. Temos sido consumidores passivos – compramos e quem recebe nosso dinheiro não se importa conosco. Precisamos mudar isso, levar nossa conta para um banco cuja imagem não seja a Cláudia Leite, mas um negão ou uma negona”, disse.

“A Schincariol tem uma fábrica em Alagoinhas (BA) e consta no Ministério da Cultura como um dos grandes incentivadores da Lei Rouanet. Mas os recursos vão para projetos no Paraná e em São Paulo. Não podemos aceitar isso”, disse.

Ele lembrou que, na África do Sul, Nelson Mandela liderou boicotes contra bancos, empresas de petróleo e outras companhias que apoiavam o Apartheid, regime político que promovia violenta segregação entre negros e brancos. Tais empresas perderam apoio e contratos internacionais e acabaram por deixar o apoio ao regime racista.

“Todos os bancos apoiam o sistema em que vivemos. Não apoiam os programas de transferência de renda, projetos sociais, não estão nas favelas. Os ataques da mídia contra os negros são financiados por esse sistema”, denunciou. “A democracia e a igualdade de oportunidades não enfraquecem país nenhum. A África do Sul é hoje muito mais forte que durante o apartheid. Quando você, por meio das ações afirmativas, libera estas forças que estavam represadas, o país se desenvolve.”

Para Jorge, é preciso ter novas estratégias na luta contra a discriminação. “O racismo direto, do ‘não gosto de você, preto’, isso diminuiu, está escondido. A questão agora é quem é o presidente do BB, da Caixa, o que esse banco patrocina. O sistema financeiro precisa mudar, mas só com a nossa pressão. Ele não vai mudar porque é bonzinho, ele nunca foi e nunca será.”

Fonte: Contraf-CUT

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