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Argentina: um vizinho em crise

A verdadeira oposição se dá em duas frentes diferentes, que cada vez mais atuam em sintonia. De um lado, e a exemplo do que acontece no Brasil, os grandes conglomerados de comunicação, com o grupo Clarín na liderança. E espalhados, de outro lado, mas convergindo cada vez mais, sindicatos que foram aliados dos Kirchner e que depois de afastaram. Nessa barafunda toda, posa com certo conforto o insípido e nada competente prefeito de Buenos Aires, Mauricio Macri, potencial candidato à sucessão de Cristina Kirchner em 2015. O artigo é de Eric Nepomuceno.

Eric Nepomuceno

Há pouco mais de um ano, Cristina Fernández de Kirchner foi eleita com 54% dos votos dos argentinos. O segundo colocado, o socialista Hermes Binner, teve uns 18%. O resto da oposição virou mingau. Foi uma das votações mais consagradoras dos últimos 40 anos. E, de lá para cá – vale repetir: pouco mais de um ano – o clima na Argentina não fez mais do que ficar tenso. A polarização, principalmente em Buenos Aires, vem alcançando graus de intensidade cada vez mais preocupantes. Novembro foi um mês especialmente duro. E não há nada que indique um verão potável.

No Congresso, a oposição continua frouxa, desnorteada, sem nenhuma proposta alternativa concreta ou viável ao projeto de governo levado adiante desde a primeira presidência do falecido Nestor Kirchner (2003-2008). Desarticulados, sem capacidade de renovação, os partidos de oposição – tanto o peronismo dissidente como os tradicionais conservadores e indo até uma esquerda voluntariosa e que mantém razoável distância da realidade – não fazem mais do que zanzar feito baratas tontas.

A verdadeira oposição se dá em duas frentes diferentes, que cada vez mais atuam em sintonia. De um lado, e a exemplo do que acontece no Brasil, os grandes conglomerados de comunicação, com o grupo Clarín na liderança. E espalhados, de outro lado, mas convergindo cada vez mais, sindicatos que foram aliados dos Kirchner em determinado momento, e que depois de afastaram. Nessa barafunda toda, posa com certo conforto o insípido e nada competente prefeito de Buenos Aires, a Capital Federal, Mauricio Macri, potencial candidato à sucessão de Cristina Kirchner em 2015.

Numa espécie de redemoinho de desencontros e desacertos, quem mais padece é a população de Buenos Aires. A intransigência do governo nacional, somada aos escassos escrúpulos do governo local e contando com o reforço extra do indisfarçável ódio de classe destilado pela classe média contra o peronismo e muito especialmente contra os Kirchner, tudo isso faz que o mal estar crescente acabe se impondo na atmosfera reinante. A escalada começou aos poucos, em maio e junho, com pequenas manifestações de rua, subiu sensivelmente de intensidade em setembro, e agora, em novembro, ganhou dimensões preocupantes.

Qualquer análise feita com um mínimo de objetividade mostra que os protestos chamados de espontâneos pela grande mídia de espontâneo não têm nada: são cuidadosamente organizados e estruturados. E mais: a principal característica não é essa espontaneidade inexistente, mas a falta de uma consigna concreta, um reclamo palpável. Protesta-se contra a insegurança pública, contra a corrupção, contra a inflação, contra o controle do câmbio, contra a suposta pretensão de mudar a Constituição para permitir que Cristina Kirchner se candidate pela terceira vez. São protestos até certo ponto compreensíveis, mas nem por isso menos vagos. É como se a questão fosse protestar por protestar.

Agora mesmo, em novembro, Buenos Aires padeceu os efeitos de uma greve geral que, mais do que greve, foi um boicote. Antes houve o ‘panelaço’ que reuniu centenas de milhares de pessoas. Nunca se saberá ao certo quantas. Bem menos das 700 mil alardeadas pelo jornal Clarín, mas bem mais que as cento e poucas mil admitidas por alguns altos funcionários. Em todo caso: muita, muita gente. Um número impressionante de pessoas. Um fato que deverá ser levado em conta – ou deveria – pelo governo. Pouco mais de uma semana depois, houve a suspensão da distribuição de jornais, dos serviços de trens, da coleta de lixo. Os hospitais públicos só atendiam emergências, os voos das estatais Aerolíneas e Austral foram suspensos, bancos e postos de gasolina fecharam – enfim, um caos absoluto.

Mais alarmante – mas que para o governo foi apenas a parte mais irritante – foram os piquetes armados principalmente pelos caminhoneiros, que bloquearam os transportes, especialmente os trens suburbanos rumo a Buenos Aires. Muitos dos trabalhadores que, ao menos aparentemente, não iriam aderir à greve simplesmente não conseguiram chegar a lugar algum.

Nesse sentido, a figura de Hugo Moyano, líder dos caminhoneiros, antigo aliado de Cristina Kirchner agora em franca dissidência, mostrou que pode ser muito mais nefasta do que se previa. É pouco provável, mas bem possível, que numa próxima vez ele tente simplesmente isolar a capital do resto do país.

Ao mesmo tempo cresce a impressão de isolamento de Cristina Kirchner. Ela continua sendo, apesar do que diz a grande mídia argentina – com seus consequentes ecos pela grande mídia mundo afora –, extremamente popular.

Há um dado curioso. Ao mesmo tempo que os institutos de pesquisa de opinião mostram que da aprovação de 54% do eleitorado em outubro do ano passado ela agora passou a pouco mais de 30% de popularidade, mostram também que se houvesse eleição hoje, ela seria de novo reeleita.

Contradições dos institutos, ou contradições do país que inventou o tango, não importa: o que vale é que ela continuaria sendo a opção da maioria dos argentinos.

Artigo colhido no sítio http://cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21303

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Argentina: as crises do vizinho (II)

A polarização vivida na Argentina, e concentrada acima de tudo em Buenos Aires, é séria. Tão séria, que todos no governo de Cristina Kirchner, e também entre seus apoiadores, têm plena consciência do fato, a começar pela própria presidente. Aliás, os detratores e oposicionistas também. Faltam poucos dias para a batalha crucial entre Clarín e governo. A campanha de distorções e manipulações do jornal atingiu níveis olímpicos. A batalha será duríssima. O artigo é de Eric Nepomuceno.

Eric Nepomuceno

Pretender negar é pretender não ver. A polarização vivida na Argentina, e concentrada acima de tudo em Buenos Aires, é séria. Tão séria, que todos no governo de Cristina Kirchner, e também entre seus apoiadores, têm plena consciência do fato, a começar pela própria presidente. Aliás, os detratores e oposicionistas também.

Essa polarização se dá entre uma instituição concreta, visível, palpável – o governo – e uma oposição tão furibunda como difusa, embora perfeitamente reconhecível. Uma oposição que não é institucional, ou seja, não atua através de partidos políticos no Congresso, não apresenta propostas alternativas ao projeto levado adiante pelo governo, não tem reivindicações específicas e justificáveis. É uma espécie de grande nebulosa. E, exatamente por isso, uma oposição sem interlocutores qualificados, com a qual é muito difícil dialogar.

O sindicalismo organizado (vale recordar que a Argentina é o segundo país latino-americano, depois de Cuba, a contar com tantos trabalhadores filiados a sindicatos atuantes) está dividido. A oposição é exercida pelo dirigente dos caminhoneiros, um veterano bucaneiro que o falecido presidente Néstor Kirchner foi buscar sabe-se lá onde. Resgatado e transformado em aliado, Hugo Moyano, o flibusteiro em questão, rompeu com Cristina Kirchner assim que ela foi reeleita, em outubro do ano passado, e resolveu partir para o confronto direto.

Suas reivindicações se escudam na questão salarial. Balela: o que ele quer é mais poder de barganha. Pretendeu eleger para o Congresso um número significativo de sindicalistas controlados por ele. Cristina fechou a porta e cortou suas asas. A vingança veio em seguida. É capaz de infernizar a vida do governo e de centenas de milhares de argentinos, tudo isso a troco de nada.

Setores significativos das classes médias urbanas, e uma vez mais é em Buenos Aires que se dá sua maior concentração, mostram uma resistência feroz a várias das políticas sociais levadas adiante desde 2003 no país, a começar pelas versões locais do Bolsa Família e pelos subsídios oferecidos às classes menos favorecidas em uma série de serviços públicos, que vão da energia elétrica e do gás ao transporte público. Oferecem mostras gritantes de uma intransigência a tudo que o governo de Cristina Kirchner leva adiante. Mostram uma capacidade de mobilização supostamente espontânea, mas que responde, na verdade, a um plano claramente estruturado por setores que deveriam – ao menos pela lógica elementar – ser antagônicos.

A chamada greve geral realizada há pouco – na verdade, muito mais um boicote escudado em piquetes que paralisaram parcialmente a capital do país – juntou, em sua organização, a ala dissidente da Confederação Geral dos Trabalhadores, chefiada por Hugo Moyano, com setores dos grandes e médios proprietários rurais lideradas por Eduardo Buzzi na Federação Agrária Argentina. Nenhum partido de oposição se dispõe a ocupar espaço de destaque nessa aliança insólita. Preferem atuar nos bastidores.

Os setores de classe média radicalmente antagônicos ao governo utilizam, é verdade, as chamadas redes sociais em suas convocatórias. Bem ao contrário, porém, da versão oferecida pelos meios hegemônicos de comunicação da Argentina – e alegremente comprada pelos seus congêneres mundo afora –, não se trata de uma iniciativa pacífica e civilizada que parte de senhores e senhoras preocupados, e às vezes indignados, com os rumos do país. Nada disso: nessas convocatórias que circulam pela internet há instruções precisas que vão do tipo de roupa recomendado aos manifestantes até um leque de sugestões para palavras de ordem. Há orientações claras sobre como se deve xingar livremente a presidente e os integrantes de seu governo. Defende-se, por exemplo, a ação de ‘putear a todos’. Mais claro, impossível.

Essa polarização vem de longe – desde pelo menos a campanha eleitoral que reelegeu Cristina Kirchner em outubro de 2011. Quase ninguém menciona, porque não convém mencionar, que durante a campanha eleitoral o país padeceu outra, de rumores difamantes. E padeceu também uma sangria aguda de dólares, numa fuga espetacular. Especulava-se dia sim e o outro também que haveria uma mega-desvalorização do peso assim que ela fosse eleita. A desvalorização formidável não aconteceu, e então estimulou-se a continuação dos movimentos especulativos: passou-se a assegurar que aconteceria a qualquer momento. Quando o governo, sem acesso ao financiamento internacional, decidiu – para fazer frente à crise global e seus impactos na economia local – controlar a fuga e a especulação com os dólares, foi um deus-nos-acuda.

Tudo isso, quando somado, cria o caldo de cultivo dessa febre iracunda que se concentra em Buenos Aires mas tem ramificações nítidas país afora – sempre dentro de determinadas classes sociais.

É verdade que há, da parte do governo, falhas gritantes. A questão dos índices de inflação é uma delas – a mais visível. Os índices oficiais indicam uma taxa de aproximadamente 10% ao ano. A realidade mostra que é pelo menos o dobro. Há, no dizer dos argentinos, duas inflações – a oficial e a do supermercado. E até o começo de 2012, era a segunda – a real – que prevalecia na hora dos ajustes salariais. Enquanto setores do governo bradavam que ajustes de quase o dobro da inflação significavam aumento na renda real dos trabalhadores, os trabalhadores sabiam que na verdade estavam apenas repondo aquilo que a espiral inflacionária havia corroído.

Até hoje não encontrei ninguém, de dentro ou de perto do governo, capaz de explicar a disparidade entre inflação oficial e inflação e real, e menos ainda que defendesse aquilo que salta aos olhos como uma nítida aparência de manipulação. A sensível desaceleração da economia levou o governo a pisar com força no freio dos ajustes salariais. E é aí que figuras como a de Moyano ganham impulso. Esse é um nó real que ninguém no governo conseguiu desatar até agora.

Sobre esse confuso, complexo e delicado cenário, o da polarização, o da crise, paira uma nuvem negra: a árdua disputa entre governo e o grupo Clarín. E que não começou agora: começou em 2008, quando a presidente Cristina Kirchner mexeu no lucro contundente dos exportadores de grãos. Ela resolveu taxar os ganhos astronômicos, e mexeu em vespeiro.

No meio do vespeiro estava – e está – grupo Clarín. Ninguém lembra, porque não convém lembrar, que entre os acionistas do grupo estão grandes barões do campo.

Faltam poucos dias para a batalha crucial entre Clarín e governo. A campanha de distorções e manipulações do jornal atingiu níveis olímpicos.
Mas esse é tema para outra coluna. Até lá, vale um velho aviso: quem viver, verá. A batalha será duríssima.

Artigo colhido no sítio http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21326

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