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História, Literatura e a Ditadura Brasileira

O artigo “História, literatura e a ditadura brasileira: historiografia e ficções no contexto do cinquentenário do golpe de 1964”, de autoria de Fernando Perlatto, foi publicado na revista Estudos Históricos (Rio de Janeiro, vol. 30, no 62, p. 721-740, setembro-dezembro 2017). Este artigo objetiva refletir sobre a relação entre história e literatura a partir da análise de romances que abordam a ditadura militar brasileira, publicados no Brasil no contexto do cinquentenário do golpe de 1964.

Busca-se analisar de que maneira essas narrativas literárias, quando colocadas em diálogo com pesquisas acadêmicas recentes, contribuem para uma compreensão mais complexa e multifacetada de diferentes aspectos da ditadura militar, como

  1. a luta armada,
  2. o apoio de setores da sociedade civil na sustentação ao regime,
  3. o exílio e
  4. o cotidiano durante aquele período.

É extremamente oportuno, dada a ameaça de um candidato populista de extrema direita, pertencente à casta dos guerreiros-militares, cujos valores são fama, glória, coragem, honra e vingança violenta. Esse éthos, isto é, o espírito, o caráter e a mentalidade desse grupo ocupacional, tem uma nítida tendência ao arbítrio ditatorial na história brasileira.

O escritor italiano Primo Levi, prisioneiro de Auschwitz, afirmava que a literatura sobre os campos de concentração nazistas podia ser grosso modo dividida em três grandes categorias:

  1. “diários ou memórias de deportados”,
  2. “obras sociológicas e históricas”, e
  3. “elaborações literárias”.

A combinação entre esses três gêneros discursivos possibilitaria uma visão mais plural, diversificada e complexa sobre a experiência traumática dos oprimidos.

Seria possível dialogar com esta divisão proposta por Levi para refletir sobre a bibliografia produzida acerca de um evento traumático da história brasileira, como a ditadura civil- militar. Ao longo das últimas décadas, diversas foram as “memórias”, “obras sociológicas e históricas” e “elaborações literárias” que elegeram como temática ou cenário privilegiado a ditadura iniciada em 1964.

Se vistas em conjunto, estas obras configuram uma bibliografia já ampla e diversificada, que vem buscando perscrutar, interpretar e compreender, a partir de prismas plurais:

  1. as razões do golpe,
  2. as características do regime autoritário que teve vigência a partir de então e
  3. seus desdobramentos para a democracia brasileira.

Esta vasta literatura ganhou impulso renovado quando, em 2014, se completaram 50 anos do golpe de 1964. Datas redondas como esta se constituem como estímulos no sentido de, mediante a publicação de livros e coletâneas, organização de eventos e reportagens na imprensa, rememorar fatos traumáticos como o golpe civil-militar, lançando sobre ele novos olhares e leituras.

Sob o impulso reflexivo desta efeméride, em 2014 e nos anos subsequentes, os “discursos de memória” sobre este passado  adquiriram novo fôlego, e diversos foram os trabalhos memorialísticos, acadêmicos e ficcionais que afluíram no mercado editorial, contribuindo para lançar novos olhares e perspectivas sobre a ditadura, seus personagens, suas principais facetas e desdobramentos.

No que concerne ao gênero da memorialística, o contexto do cinquentenário do golpe de 1964 impulsionou o relançamento ou novas publicações de autobiografias e testemunhos de pessoas que vivenciaram direta ou indiretamente o período ditatorial, contribuindo para expansão de um já amplo e diversificado conjunto de memórias sobre aquele período.

Para além da reedição de obras já clássicas sobre o tema – a exemplo de O ato e o fato, de Carlos Heitor Cony, e O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira, publicadas respectivamente em 2014 pela Nova Fronteira e em 2016 pela Estação Brasil –, houve a publicação de vários livros que buscaram, a partir de perspectivas diversas, lançar novas visões sobre a experiência autoritária brasileira.

Exemplares nesse sentido foram as obras

  • Tempos de turbilhão: relatos do golpe de 1964 (2014), organizada por Eric Nepomuceno, com textos de Darcy Ribeiro sobre a conjuntura do golpe de 1964 e seus desdobramentos;
  • 1964: o golpe (2014), no qual o jornalista Flávio Tavares, também autor de Memórias do Esquecimento, relembra acontecimentos e mudanças importantes no contexto do golpe de 1964;
  • 50 anos esta noite (2014), autobiografia de José Serra, à época presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), na qual este relata as consequências do golpe de 1964 em sua trajetória pessoal e política; e
  • Volto semana que vem (2015), narrativa biográfica na qual Maria Pilla reconstrói sua experiência como militante e exilada no contexto da ditadura.

Há que se destacar também a publicação em anos mais recentes de obras memorialísticas de uma nova geração, constituída por filhos de pais que foram presos, torturados ou mortos pela repressão, destacando-se nesse sentido as obras:

  • Ainda estou aqui (2015), de Marcelo Rubens Paiva, e
  • Em nome dos pais (2017), de Matheus Leitão.

Já no que diz respeito às “obras sociológicas ou históricas”, para dialogar com os termos sugeridos por Primo Levi, a rememoração do golpe em 2014 testemunhou a publicação de diversos trabalhos acadêmicos e jornalísticos, quer individuais – com destaque para:

  • Ditadura e democracia no Brasil (Daniel Aarão Reis, 2014),
  • O golpe de 1964: Momentos decisivos (Carlos Fico, 2014),
  • 1964 (Jorge Ferreira e Angela de Castro Gomes, 2014),
  • As universidades e o regime militar (Rodrigo Patto Sá Motta, 2014),
  • 1964: história do regime militar brasileiro (Marcos Napolitano, 2014),
  • A Casa da Vovó: uma biografia do DOI-Codi (Marcelo Godoy, 2014),
  • Ditadura à brasileira (Marco Antônio Villa, 2014),
  • Lugar nenhum (Lucas Figueiredo, 2015),
  • Cova 312 (Daniela Arbex, 2015),
  • Os porões da contravenção (Aloy Jupiara e Chico Otávio, 2016) e
  • A ditadura acabada (Elio Gaspari, 2016).

Publicaram-se também muitas obras coletivas a exemplo de:

  • A ditadura que mudou o Brasil. 50 anos do golpe de 1964 (Daniel Aarão Reis et al., 2014),
  • Ditaduras militares: Brasil, Argentina, Chile e Uruguai (Rodrigo Patto Sá Motta, 2014),
  • À sombra das ditaduras (Brasil e América Latina) (Janaina Martins Cordeiro et al., 2014),
  • História e memória das ditaduras no século XX (Samantha Quadrat e Denise Rollemberg, 2015), e
  • 1964: do golpe à democracia (Angela Alonso e Miriam Dolhnikoff, 2015).

A esta produção acadêmica e memorialística que ganhou destaque na efeméride do golpe de 1964, vieram se somar, para manter o léxico de Levi, a publicação em 2014 e nos anos subsequentes de diversas “elaborações literárias” que assumiram os anos da experiência autoritária brasileira como temáticas, contextos e cenários dessas narrativas.

O artigo de Fernando Perlatto objetiva precisamente refletir sobre as narrativas construídas por algumas dessas produções ficcionais publicadas nesse contexto de rememoração. Seu intuito é o de analisar de que maneira, ainda que mobilizando linguagens, objetivos e interesses diversos dos escritos memorialísticos e acadêmicos, essas narrativas literárias lançadas no mercado editorial a partir de 2014 contribuem sobremaneira para a conformação de determinados imaginários sobre a ditadura brasileira e seus desdobramentos que possibilitam uma compreensão mais multifacetada de suas características principais.

Ele não tem a pretensão de mapear e esgotar a análise de todos os romances publicados em e a partir da efeméride dos 50 anos do golpe em 2014. O que ele busca é, a partir de um levantamento sistemático dos livros ficcionais lançados nesse contexto, selecionar e analisar algumas obras pertencentes ao gênero das “elaborações literárias” que evidenciam e corroboram a perspectiva quanto às potencialidades da literatura no sentido de, em diálogo com pesquisas acadêmicas, lançar novos olhares para a análise de um determinado período histórico, como a ditadura civil-militar brasileira.

Para a construção do argumento proposto, na primeira seção do artigo faz uma reflexão sobre literatura, eventos traumáticos e ditadura no Brasil, procurando, em diálogo com bibliografia pertinente, sopesar as potencialidades da mobilização de narrativas ficcionais para a análise histórica.

Na segunda seção, a reflexão será direcionada para a análise de alguns livros de ficção produzidos a partir de 2014, no contexto da rememoração dos 50 anos do golpe de 1964, com o intuito de refletir de que maneira esses romances podem contribuir, em diálogo com trabalhos “sociológicos ou históricos”, para uma interpretação mais complexa e multifacetada de diferentes aspectos da ditadura militar, como:

  1. a luta armada,
  2. o apoio de setores da sociedade civil na sustentação ao regime,
  3. a experiência do exílio e
  4. o cotidiano durante aquele período.

Ainda nos anos 1960 e 1970, diversas foram as “elaborações literárias” que tiveram o regime repressivo inaugurado em 1964 e questões a ele relacionadas, como a tortura e a luta armada, mobilizados como temáticas centrais ou estruturantes dos romances.

Exemplares, nesse sentido, foram as obras:

  • Quarup (1960), Bar Don Juan (1971) e Reflexos do baile (1977), de Antonio Callado;
  • Pessach: a travessia (1967), de Carlos Heitor Cony;
  • Zero (1974), de Ignácio de Loyola Brandão (1974);
  • A festa (1976), de Ivan Ângelo; e
  • Em câmera lenta (1977), de Renato Tapajós.

Nas décadas subsequentes, diferentes trabalhos procuraram analisar e compreender os traços e as características principais dessas narrativas ficcionais. Entre essas obras, destacam-se, entre outros, livros como:

  • Anos 70: literatura (1979), organizado, entre outros, por Heloisa Buarque de Hollanda,
  • Literatura e vida literária (1985), de Flora Süssekind,
  • O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro (1996), de Regina Dalcastagnè,
  • Gavetas vazias: ficção e política nos anos 1970 (1996), de Tânia Pellegrini,
  • Da urgência à aprendizagem: sentido da história e romance brasileiro nos anos 60 (1997), de Henrique Manuel Ávila,
  • Itinerário político no romance pós-64 (1998), de Renato Franco,
  • A história em seus restos: literatura e exílio no Cone Sul (2004), de Paloma Vidal, e, mais recentemente,
  • A literatura como arquivo da ditadura brasileira (2017), de Eurídice Figueiredo.

A despeito das particularidades formais e temáticas dos romances produzidos no contexto dos governos autoritários, o que mais chamava atenção nessa literatura pós-1964 era, como destacado por Silviano Santiago (1989: 13), a “descoberta assustada e indignada da violência do poder”. As ficções escritas naquela conjuntura, segundo o autor, seja na vertente “alegórica” e “jornalística”, seja nos “romances reportagens”, teriam aberto “campo para uma crítica radical e fulminante de toda forma de autoritarismo, principalmente aquela que, na América Latina, tem sido pregada pelas forças militares quando ocupam o poder” (Idem: 14).

Nessa perspectiva, é coerente pensar que parte significativa da literatura produzida ao longo desses anos autoritários “pode ser considerada como uma forma de resistência”, compreendendo “uma dimensão ética, enquanto manifestação de indignação radical diante do horror”. A ficção escrita nesse contexto pode ser analisada “pelo viés da subjetividade, mostra resíduos de experiências fraturadas pela violência do vivido”.

As narrativas ficcionais evidenciam enorme potência para dar luz “aos restos, aos despojos, às ruínas e às destruições do passando, proporcionando uma monumentalidade alternativa”. Nessa perspectiva, a literatura, segundo os autores, abre caminhos para que se possa “reimaginar e narrar, inclusive no labirinto tormentoso de um passado que continua fugindo e não se deixa integralmente, ainda, apreender”.

Essa valorização da literatura como fonte para a compreensão do passado tem recebido cada vez mais atenção por parte da historiografia. A relação entre história e literatura  evidencia as potencialidades da mobilização das narrativas ficcionais no sentido de descortinar aspectos e elementos importantes da estrutura social do passado e de dimensões subjetivas, que a produção acadêmica, muitas vezes, não tem condições de perscrutar.

Para os historiadores,  a literatura deve ser pensada como um importante “testemunho histórico” e, uma vez compreendida como fonte, tem de ser devidamente interrogada e inquirida, apresentando enormes potencialidades para a análise de processos históricos determinados.

A literatura, até mesmo pela possibilidade do emprego de recursos formais diferenciados, como por exemplo o “deslocamento do foco narrativo e a suspensão da linearidade temporal”, e pela utilização de procedimentos discursivos específicos, tem se mostrado particularmente frutífera do ponto de vista analítico para a elaboração de representações mais complexas e multifacetadas de experiências vividas sob governos autoritários – a exemplo do regime inaugurado com o golpe de 1964 –, diante da própria impossibilidade manifesta para que trabalhos acadêmicos consigam reconstruir, com a sensibilidade necessária, as atrocidades e os horrores desses momentos traumáticos.

Além disso, há que se destacar que, em casos como o da ditadura brasileira, como decorrência das dificuldades de acesso a muitos dos “documentos sensíveis” daquele período, a literatura, “ao criar personagens, ao simular situações”, pode cumprir o papel de uma espécie de “suplemento aos arquivos”, ampliando as possibilidades para uma reflexão mais refinada sobre diferentes características daquele passado, que muitas vezes não podem ser acessadas e abordadas com o rigor necessário pelas pesquisas acadêmicas.

Desde a redemocratização do país, diversas foram as “elaborações literárias” publicadas que procuraram refletir sobre o golpe de 1964, a ditadura brasileira e seus desdobramentos.

Nos anos 1980, foram publicadas obras que tematizaram a partir de perspectivas diversas o regime autoritário como:

  • Um romance de geração (1980), de Sérgio Sant’Anna,
  • Em liberdade (1981), de Silviano Santiago, e
  • Tropical sol da liberdade (1988), de Ana Maria Machado.

Nos anos 1990 e 2000, até mesmo pelo distanciamento temporal em relação àquele período, parece ter havido um crescimento do interesse por parte dos romancistas – muitos deles já nascidos quando a ditadura estava em processo de desmantelamento – em explorar ficcionalmente, mediante pontos de vistas heterogêneos, esse passado autoritário.

Algumas obras literárias publicadas ao longo dessas décadas são exemplares bem acabados das narrativas construídas sobre o período autoritário, a exemplo de títulos como:

  • Amores exilados (1997), de Godofredo de Oliveira Neto,
  • Não falei (2004), de Beatriz Bracher,
  • História natural da ditadura (2006), de Teixeira Coelho,
  • Soledad no Recife (2009), de Urariano Mota,
  • Azul Corvo (2010), de Adriana Lisboa,
  • O punho e a renda (2010), de Edgard Telles Ribeiro,
  • K – Relato de uma busca (2011), de Bernardo Kucinski,
  • Mar azul (2012) , de Paola Vidal e
  • Vidas provisórias (2013), de Edney Silvestre.

O ano de 2014 e os subsequentes testemunharam a publicação de diversos romances que elegeram o golpe civil-militar de 1964 e a ditadura militar ali inaugurada como cenários, contextos e objetos centrais dos enredos narrados. Dentre essas obras ficcionais, é possível destacar, entre outros trabalhos, os livros:

  • Qualquer maneira de amar: um romance à sombra da ditadura (2014), de Marcus Veras;
  • Damas da noite (2014), de Edgard de Telles Ribeiro;
  • Tempos extremos (2014), de Miriam Leitão;
  • A resistência (2015), de Julián Fuks;
  • Palavras cruzadas (2015), de Guiomar de Grammont;
  • Nuvem negra (2016), de Eliana Cardoso;
  • De mim já nem se lembra (2016), de Luiz Rufatto;
  • Quarenta dias (2014) e Outros cantos (2016), de Maria Valeria Rezende;
  • Cabo de guerra (2016), de Ivone Benedetti;
  • Os visitantes (2016), de Bernardo Kucinski;
  • Lua de vinil, de Osmar Pilagallo (2016);
  • Rio-Paris-Rio (2016), de Luciana Hidalgo, e
  • Noite dentro da noite: uma autobiografia (2017), de Joca Reiners Terron.

O que é interessante apreender é de que maneira, dentro dessa heterogeneidade temática e formal, se percebe a conformação de diversos imaginários construídos sobre o golpe de 1964 e o período da ditadura. Quando colocados em diálogo com a produção acadêmica recente, contribuem no sentido de lançar novos olhares sobre diferentes aspectos da experiência autoritária brasileira.

Quanto à luta armada, por exemplo, se, ao longo dos anos 1970 e 1980, as abordagens referentes à luta armada permaneceram muito caudatárias das obras memorialísticas – a exemplo de O que é isso, companheiro? (1979), de Fernando Gabeira, e Combate nas trevas (1987), de Jacob Gorender –, ao longo dos anos 1990 e 2000 elas passaram a adquirir um perfil mais acadêmico, com destaque para trabalhos como:

  • A revolução faltou ao encontro (1990), de Daniel Aarão Reis,
  • O fantasma da revolução brasileira (1993), de Marcelo Ridenti, e
  • O apoio de Cuba à luta armada no Brasil (2001), de Denise Rollemberg.

Respeitadas as diferenças e particularidades dessa produção historiográfica, importa destacar que esses trabalhos têm em comum a busca por tornar mais complexa a compreensão dos grupos armados no Brasil, rompendo tanto com uma visão homogênea dos seus participantes, quanto com uma perspectiva idealista que encarava esses grupos somente na chave virtuosa, idílica e heroica da resistência ao regime militar, destacando suas contradições e limites.

No que concerne mais especificamente à dimensão repressiva, a quase totalidade dos romances mencionados está ancorada em narrativas que abordam, ainda que a partir de prismas e perspectivas diversas, a busca por informações, notícias e registros de familiares desaparecidos na ditadura. A faceta desaparecimento/busca produz nos familiares e amigos das vítimas “dor, constante, intensa, sem lenitivo”. Essa dor se vincula às ausências várias causadas pelos desaparecimentos e pelas frustrações nas buscas, na falta de notícias, de informações e, até mesmo, dos próprios corpos das vítimas.

Os familiares dos desaparecidos padecem não apenas do sofrimento decorrente da tortura, assassinato ou sumiço de seus entes, mas também dos estigmas associados àqueles que, porventura, tenham qualquer tipo de ligação, ainda que não direta, com a luta armada.

As obras ficcionais publicadas a partir de 2014 contribuem para tornar mais complexa a compreensão de diversos aspectos relacionados à luta armada e às escolhas realizadas pelas pessoas naquele momento histórico. Por exemplo, surge a figura ainda pouco estudada no campo acadêmico do chamado “cachorro”, termo utilizado para se referir àquele militante infiltrado nas organizações, a serviço da ditadura, que traía e entregava seus companheiros.

Ainda que esses romances estejam longe de justificar as escolhas dos personagens – enfatizando, inclusive, as consequências dos posicionamentos dos “cachorros” e dos delatores em termos de prisões, torturas e mortes –, eles tornam mais complexo o olhar sobre aquele momento e chamam a atenção para o fato de que, naquela conjuntura específica, as decisões eram mais complicadas do que uma análise a posteriori poderia supor.

Da mesma forma, muitas das ficções mencionadas anteriormente contribuem para chamar atenção para a heterogeneidade de pessoas que se engajaram na luta armada. Ao contrário de uma visão homogeneizante, que concebe aqueles que participaram de grupos armados como dotados de perfis e características iguais ou semelhantes, o que se vislumbra nos personagens que compõem vários dos romances aqui analisados é uma diversidade de personalidades.

Nessa perspectiva, é possível dizer que as obras literárias possibilitam, em certo sentido, dar carne e concretude a esses personagens. Muitas vezes eles são pensados em abstrato, evidenciando não apenas as diversidades existentes entre eles, mas também as várias dúvidas, questionamentos e dilemas vividos por aqueles que escolheram o caminho da luta armada. Essa dimensão relacionada às dúvidas e dilemas fica evidente.

O justiçamento de um militante acusado de traidor, aliás, aparece como um tema atravessado por tabus e dificuldades no sentido de ser devidamente pensado e enfrentado como um grave problema não apenas pelos militantes, mas também pelos familiares. Além do justiçamento, outros limites, incoerências e contradições da luta armada podem ser depreendidos da leitura de vários desses romances, a exemplo dos discursos militaristas e sectários, que quase se aproximavam da retórica anticomunista direcionada pelos militares contra os setores progressistas naquela conjuntura.

Outras limitações daqueles que se engajaram na luta armada se relacionam, em primeiro lugar, à leitura equivocada e às esperanças de resistência armada que muitos militantes da esquerda tiveram no momento mesmo do golpe de 1964. Em segundo lugar, essas limitações se concretizavam na própria incapacidade daqueles que se engajaram na resistência à ditadura no sentido de estabelecer um “canal de comunicação” com os pobres e oprimidos.

Além da luta armada, outro aspecto que vem sendo bastante explorado pelos estudos acadêmicos recentes dedicados à ditadura – na esteira, ressalte-se, das investigações abertas por René Dreyfuss em 1964, a Conquista do Estado (1981), em que este analisa, entre outros aspectos, o papel de organizações civis como:  o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) naquele contexto – diz respeito à investigação acerca do apoio que diversos setores da sociedade civil – como empresários, jornalistas, intelectuais, religiosos, políticos – asseguraram tanto ao golpe de 1964 quanto ao regime que se instaurou no país a partir de então.

Esse apoio se manifestaria, segundo esses pesquisadores, em diversos momentos, ocasiões e eventos, como:

  1. nas Marchas da Família com Deus pela Liberdade, que ocorreram em 1964, mobilizando milhares de pessoas em apoio ao golpe;
  2. nos índices de popularidade desfrutados pelo general Garrastazu Médici no momento mais repressivo dos “anos de chumbo”, sobretudo como decorrência do chamado “milagre econômico”; assim como
  3. nas expressivas votações obtidas pelo partido de sustentação ao regime, a Aliança Renovadora Nacional (Arena), até mesmo nas eleições de 1978, as últimas realizadas sob a ditadura.

Justamente por trazerem em seu bojo a reflexão sobre o papel desempenhado por setores da sociedade civil durante aquele período, alguns autores têm preferido utilizar os conceitos de “golpe civil-militar” e “ditadura civil militar” para dar conta das complexidades daquele momento.

Nessa chave interpretativa – cujas elaborações mais sistemáticas podem ser encontradas nos artigos que compõem a coletânea A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX (2010), organizada por Denise Rollemberg e Samantha Quadrat –, o que se busca é pensar a ditadura como um regime autoritário construído socialmente, a partir do apoio e da sustentação de diferentes segmentos da sociedade civil.

O que interessa destacar é que diversas pesquisas acadêmicas têm procurado ressaltar que a ditadura brasileira não pode ser interpretada como um movimento imposto por poucos vilões militares ou por um Estado que se sobrepôs à sociedade civil, enquanto esta assistia passivamente a esse movimento ou somente reagia a ele. Ela deve, antes, ser compreendida a partir destas múltiplas e complexas relações que se estabelecem entre setores que apoiaram e interagiram com o regime ditatorial inaugurado em 1964.

Os romances publicados a partir de 2014, quando da rememoração do cinquentenário do golpe de 1964, abrem possibilidades várias para que vislumbremos e compreendamos a partir de novas perspectivas os apoios de setores da sociedade civil à ditadura brasileira.

Houve apoio de setores, no interior das universidades, que deram sustentação à ditadura, delatando alunos e professores, sendo coniventes com processos de aposentadoria, exonerações e perseguições por razões ideológicas. Houve também apoio direto ou silenciamento de setores religiosos ao que acontecia no país naquela conjuntura.

o apoio dado por jornalistas ao regime militar constituiu um processo gradativo de colaboração e adesão ao que se chama de “esquema dominante”. Essa perspectiva contribui para romper com uma memória construída sobre a imprensa naquele período segundo a qual todos os setores da mídia teriam ou sofrido censura ou resistido à repressão, evidenciando que as relações eram muito mais ambíguas e repletas de matizes. Para além dos empresários, intelectuais, religiosos e jornalistas, o apoio ao regime militar no dia a dia ocorreu por parte de grande parte da classe média supostamente alienada da política.

Outras questões importantes acerca daquele período dizem respeito a, por exemplo, a experiência do exílio e o cotidiano durante o regime militar. A literatura destaca os variados impactos e as consequências sobre as vidas daqueles que foram forçosamente obrigados ou levados a deixar o país, deslocando-se para outras geografias. A dramática dúvida entre permanecer no país ou partir aparece profundamente.

No que concerne às dimensões do cotidiano, diversas pesquisas vêm procurando perscrutar as vivências no dia a dia durante o período autoritário, de modo a tornar mais complexas e abrangentes as diferentes experiências de vida naquele contexto. Quando se desloca o olhar das grandes estruturas e transformações que tiveram curso naquele período, ou dos atores políticos e sociais que ganharam protagonismo naquela conjuntura – a exemplo daqueles que atuaram diretamente na repressão ou na resistência ao regime – e se direciona a atenção para “baixo”, isto é, para as milhares de pessoas que seguiam suas vidas muitas vezes quase que indiferentes ao que ocorria politicamente no país, tem-se um quadro mais multifacetado dos anos do regime militar no Brasil.

É possível analisar as relações cotidianas de um trabalhador “comum” naquela conjuntura, envolvido com preocupações diferentes daquelas mais imediatamente vinculadas à vida política do país, como seus namoros e paixões frustradas, suas expectativas e conflitos no trabalho, sua visão religiosa, seus momentos de lazer, suas perspectivas em relação às trajetórias de seus familiares, sua paixão pelo futebol, entre outros aspectos. Somente com o passar dos anos, à medida que se avança na narrativa, é que o trabalhador “comum” vai tomando consciência da situação repressiva e desigual do país, a partir de situações diversas, como as conversas com pessoas conscientes, a agressão e desaparecimento de um conhecido, e o envolvimento com a luta sindical, a organização de assembleias, de campanhas salariais e greves.

Fernando Perlatto conclui seu oportuno artigo – “História, literatura e a ditadura brasileira: historiografia e ficções no contexto do cinquentenário do golpe de 1964” (Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 30, no 62, p. 721-740, setembro-dezembro 2017) afirmando que, ainda que os últimos anos tenham testemunhado a produção de diversos livros voltados para a compreensão da ditadura militar brasileira, bem como a ampliação de debates e reflexões sobre seus significados e consequências para a democracia no país, é forçoso reconhecer que ainda há um amplo desconhecimento de setores da população sobre esse período.

Esse desconhecimento – resultado, talvez, da ausência, ou, pelo menos, da escassez de políticas de memória mais significativas orientadas no sentido de rememorar, a partir de diferentes perspectivas, os aspectos repressivos e contraditórios desse passado – tem consequências perversas, como se observa na legitimidade crescente de discursos na esfera pública que defendem abertamente se não o retorno da ditadura, ao menos a utilização de soluções autoritárias para os problemas do país.

Nesse sentido, torna-se imperativa a mobilização de diversos meios e instrumentos que contribuam não apenas para uma compreensão mais complexa sobre a ditadura militar brasileira, mas também para a sensibilização, sobretudo das novas gerações, sobre esse passado, cujas permanências ainda se fazem presentes em nossa cultura política autoritária.

Se considerarmos os romances publicados no Brasil a partir de 2014, quando da rememoração do cinquentenário do golpe de 1964, que elegeram os anos do regime autoritário como cenários e contextos, é possível afirmar que, em sua heterogeneidade, eles se constituem em importantes meios no sentido de possibilitar uma interpretação mais multifacetada de aspectos diversos da ditadura militar, como a luta armada, o apoio de setores da sociedade civil na sustentação ao regime, o exílio e o cotidiano durante aqueles anos, além de se conformarem em instrumentos importantes de sensibilização de um público mais amplo, especialmente extra-acadêmico, em relação às arbitrariedades daquele período.

[Fernando Nogueira da Costa: vale a reflexão se a questão se resume à memória, supostamente propiciadora de “consciência política”, ou se trata da impunidade, propiciada pela Lei da Anistia, aos assassinos e torturadores. Por exemplo, na Argentina, todos os militares das diversas patentes culpados pelos “voos da morte”, quando prisioneiros vivos eram jogados de aviões no mar, foram julgados e condenados à prisão perpétua. Será que isso aqui tivesse ocorrido estaríamos novamente ameaçados por deputados militares louvadores de torturadores?]

Artigo colhido no sítio https://fernandonogueiracosta.wordpress.com/2018/01/01/historia-literatura-e-a-ditadura-brasileira/#more-51467

 

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