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A MOEDA, O CRÉDITO E O CAPITAL FINANCEIRO; e outros textos

Ao estatizar duas de suas maiores empresas de financiamento hipotecário, os EUA deram uma aula, curta, sintética e brilhante, sobre a natureza do capitalismo, e sobre o funcionamento dos seus mercados. Neste sistema, não existe um “conflito perene” entre a política e o mercado, mas uma sólida aliança entre o poder e a finança.

“Todas as moedas são símbolos, e o seu peso ou composição não tem maior importância. O que de fato importa é o nome ou o poder de quem a emite”.

Mitchell Innes, What is money, Banking Law Journal 1913, May, p: 382

Para surpresa dos ideólogos, os Estados Unidos acabam de dar uma aula, curta, sintética e brilhante, sobre a natureza do capitalismo, e sobre o funcionamento dos seus mercados. Com poucas palavras, o governo americano anunciou, nesta última semana, a estatização das duas maiores empresas de financiamento hipotecário dos EUA – a Fannie Mae, e a Freddie Mac – criadas pelo estado americano, em 1938 e 1970, e depois privatizadas, com o objetivo de diminuir os gastos públicos e aumentar a concorrência setorial.

Ao anunciar sua decisão, o secretário do Tesouro americano prometeu injetar até U$ 200 bilhões dos contribuintes, nas duas empresas que controlam metade do mercado de hipotecas dos EUA, estimado em 12 trilhões de dólares. Mas não é só isto: nos últimos meses, o Fed financiou a aquisição do Bear Stearns pelo J.P. Morgan; criou uma nova linha de financiamento para firmas externas ao setor bancário; e colocou seus “inspetores” para controlar os bancos de investimento. Enquanto o Congresso americano aprovava, no último dia 30 de julho, a Lei para a Recuperação da Economia e do Setor Imobiliário, e discutia uma nova regulamentação rigorosa e detalhada do mercado financeiro americano. E agora, mais recentemente, o ex-presidente do Fed, Alan Greenspan, propôs diretamente a criação de uma nova Agencia Estatal de análise de risco das empresas privadas. Ou seja, de todos os lados está vindo o mesmo sinal: como diz o jornal Financial Times, “no conflito perene entre a política e o mercado, não há duvida, que neste momento, a política está por cima” .

Enquanto isto, os analistas econômicos batem cabeça, há mais de um ano, sem conseguir explicar a natureza, a extensão e o futuro da crise hipotecária americana. Talvez, porque todos compartilham, de uma forma ou outra, a mesma tese do Financial Times: a idéia equivocada de que existe um “conflito perene”, entre a Política e o Mercado. Apesar de que a história da formação dos mercados e do capitalismo, aponte na direção oposta, de uma solidariedade essencial e originária entre o poder, o mercado e os capitais privados.

Uma história que começa, por volta do século XIV, com o poder arbitrário dos príncipes que definiam de forma soberana, o valor dos tributos que deviam ser pagos pelos seus súditos, e ao mesmo tempo, definiam o valor da moeda que cunhavam para pagamento dos seus próprios tributos. E mesmo quando circulavam outra moedas e títulos privados, dentro do seu “principado”, eles sempre eram referidos, em última instancia, ao valor da moeda soberana. Este “circuito” inicial se complicou com a expansão das guerras e a necessidade dos príncipes recorrerem ao endividamento, criando a dívida publica negociada pelos comerciantes-banqueiros, num mercado cada vez mais extenso de títulos e moedas. Foi assim que nasceu o capital financeiro através da senhoriagem entre as moedas e títulos das unidades soberanas do mundo Medieval.

O passo seguinte desta história aconteceu nos séculos XVII e XVIII, com o nascimento dos primeiros estados nacionais, e com a “revolução financeira” que mudou a face do capitalismo europeu. Esta revolução começou na Holanda, no século XVII e se completou na Inglaterra, no século XVIII. Os dois países centralizaram seus sistemas de tributação e criaram bancos públicos responsáveis pela administração conjunta, da dívida soberana, na forma de bônus do estado, e da dívida privada, na forma de letras de cambio, que se transformam na base de um sistema de credito cada vez mais elástico, criativo e diversificado, mas sempre referido, em última instancia, à moeda de conta nacional. E não há duvida que a fusão entre esta nova finança holandesa e inglesa, a partir de 1689, teve um papel decisivo no fortalecimento e na vitória colonial da Inglaterra, e na projeção internacional da moeda inglesa, a Libra, que foi hegemônica em todo o mundo até sua “quase-fusão’ com o Dólar norte-americano, durante o século XX. Numa espécie de sucessão “hereditária”, que partiu da Holanda e da Inglaterra, e se prolongou nos Estados Unidos, mantendo a supremacia monetário-financeria anglo-saxônica, inquestionável durante os quatro séculos de história deste sistema mundial que foi criado a partir da expansão política e econômica da Europa.

Durante o período em que a “moeda internacional” teve uma base metálica, a Libra e o Dólar também tiveram uma restrição financeira intransponível, imposta pela necessidade de equilíbrio do Balanço de Pagamentos do país emissor da moeda de referência. Mas depois do fim do Sistema de Bretton Woods, em 1973, esta restrição desapareceu, com o novo sistema monetário internacional “dólar-flexível” que não tem nenhum tipo de padrão metálico de referencia. Neste sentido, se pode dizer que houve uma nova “revolução financeira”- na década de 1980 -, que provocou uma espécie de retorno às origens da relação entre o poder, a moeda e o crédito.

Os EUA voltaram a definir, de forma soberana e isolada, o valor da sua moeda, apesar de que ela já fosse a moeda internacional, e também o valor dos seus títulos da dívida pública, apesar de que eles se tenham se transformado na base de referencia da própria moeda. Além disto, o governo americano desregulou seus mercados financeiros, e com isto liberou a expansão quase infinitamente elástica do crédito, longe do mundo das mercadorias e do “valor-trabalho’, e limitado apenas pela capacidade de tributação e endividamento do próprio estado americano, que ainda é um poder em expansão, e que ganha mais poder, com o fortalecimento do seu crédito internacional, e do seu capital financeiro.

Neste sistema, portanto, não existe um “conflito perene” entre a política e o mercado, como pensa a teoria econômica convencional. O que existe e sempre existiu, é uma “memorável aliança”, entre o poder e a finança, que esteve na origem do capitalismo, e do “milagre europeu”, segundo Max Weber, e que segue movendo a fronteira expansiva do sistema inter-estatal capitalista, neste início do século XXI..

Por José Luís Fiori, que é cientista político e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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Desequilíbrios estruturais do capitalismo atual

A atual crise econômico-financeira internacional se insere no marco de um ciclo longo recessivo, do qual o capitalismo não logrou sair desde seu início, em meados da década de setenta do século passado. Sem essa inserção, fica difícil a apreensão do caráter dessa crise, das conseqüências que pode produzir e do cenário que deve surgir depois dela.

Os ciclos e as crises

O capitalismo vive, pela própria natureza do seu processo de reprodução, articulado por ciclos, curtos e longos. Estes coordenam os ciclos curtos, numa perspectiva expansiva, se a curva das subidas e descidas das oscilações curtas apontam para cima, recessiva, se para baixo, conforme a teoria do economista russo Kondratieff, retomada teórica e historicamente por Ernst Mandel.

No segundo pós-guerra, o capitalismo viveu sua “idade de ouro”, segundo Eric Hobsbawn, em que coincidiram virtuosamente a maior expansão concomitante das grandes economias capitalistas – Estados Unidos, Alemanha, Japão -, do chamado “campo socialista”, dirigido pela União Soviética, e por economias periféricas, como o México, a Argentina, o Brasil, com seus processos de industrialização dependente. A economia capitalista não deixou de apresentar seus ciclos curtos de crise, mas cada novo ciclo retomada a expansão e empurrava a economia para patamares cada vez mais altos.

Foi um ciclo longo expansivo comandado por grandes corporações internacionais de caráter industrial e comercial, apoiada por um sistema financeiro em expansão e por grandes transformações na produção agrícola. Um modelo hegemônico regulador – ou keynesiano ou de bem-estar, conforme se queira chamá-lo – incentivava os investimentos produtivos, tendia a fortalecer a demanda interna de consumo, promovia o fortalecimento dos Estados nacionais e a proteção de suas economias.

As crises, como é típico no capitalismo, expressavam processos de super-produção ou de sub-consumo – conforme se queira chamá-las -, refletindo o desequilíbrio estrutural desse sistema entre sua – reconhecida já por Marx no Manifesto Comunista – enorme capacidade de expansão das forças produtivas, mas que se chocam constantemente com sua incapacidade de distribuir renda na mesma medida daquela expansão.

Na sua fase final, o ciclo longo expansivo do segundo pós-guerra viu esse excedente, resultado acumulado da defasagem entre produção e consumo se transformar em capital financeiro – os chamados euro-dólares, que foi aproveitado por países como o Brasil, para reciclar seu modelo econômico, diversificando sua dependência externa e favorecendo a retomada da expansão econômica interna, ainda antes do final do ciclo longo expansivo. Este fator – o golpe militar ainda no ciclo expansivo – diferenciou o cenário econômico brasileiro do dos outros países da região, em que as ditaduras coincidiram com recessão, por já se darem no ciclo longo recessivo do capitalismo internacional.

Que características teve o final desse ciclo e o inicio do novo, de caráter recessivo? Tendo triunfado o diagnóstico de que a estagnação econômica se devia ao excesso de regulamentações, o novo modelo se centrou na desregulamentação, de que as privatizações, as aberturas para o mercado externo, as políticas de “flexibilização laboral”, de ajuste fiscal, foram expressões.

Duas conseqüências mais importantes dever ser recordadas aqui, para entendermos o caráter da crise atual e seus efeitos para os países latino-americanos. A primeira, o gigantesco processo de transferência de capitais do setor produtivo para o especulativo que a desregulamentação promoveu em escala nacional e internacional. Livre de travas, o capital migrou maciçamente para o setor financeiro e, em particular, para o setor especulativo, onde obtêm muito mais lucros, com muito maior liquidez e com menos ou nenhuma tributação para circular.

Configurou-se assim, no modelo neoliberal, a hegemonia do capital financeiro, sob a forma do capital especulativo, fazendo com que mais de 90% dos movimentos econômicos se dêem não na esfera da produção ou do comércio de bens, mas na compra e venda de papéis, nas Bolsas de Valores ou de papéis das dívidas públicas dos governos.

Promoveu-se a financeirização das economias, o que significa, em primeiro lugar, a financeirização dos Estados, cujo primeiro e maior compromisso passa a ser o pagamento das dívidas, isto é, a reserva de recursos mediante o chamado “superávit primário” e a transferência maciça e sistemática de recursos do setor produtivo para o capital financeiro. Grandes grupos econômicos têm à sua cabeça, um banco uma instituição financeira, costumam ganhar mais nos investimentos financeiros que naqueles que deram origem às empresas que os compõem. Grande quantidade de pequenas e médias empresas entraram em processos de endividamento, dos quais não conseguem sair. Outras, assim como consumidores, não se atrevem a buscar empréstimos, pelo medo ao endividamento, com as altas taxas de juros.

O capital financeiro passou a ser o sangue que corre pelas economias dos países, definindo o metabolismo que as preside. Um capital que tem na volatilidade, na sua extrema liquidez, um elemento essencial, inerente, aquele que permite deslocar-se rapidamente para onde pode ter maiores vantagens e, ao mesmo tempo, lhe atribui um grande poder de pressão, diante da fragilidade das economias que dependem estruturalmente dele.

As crises na fase neoliberal

Dessas características decorre o caráter centralmente financeiro das crises no período neoliberal, como ficou evidenciado nas crises mexicana, asiática, russa, brasileira e argentina, entre outras. O setor financeiro canaliza para si os excedentes de capital, produto da defasagem estrutural entre produção e consumo, agudizada na fase atual do capitalismo, em que a elevação da produtividade e a criatividade tecnológica seguiram se aprofundando, ao mesmo tempo que se deram processos de concentração de renda entre as classes sociais, entre países e regiões do mundo.

O poder devastador dessas crises e o potencial de contágio se revelaram da mesma dimensão do tamanho da abertura das economias ao mercado internacional e ao peso que o capital financeiro passou a desempenhar em escala nacional e mundial. O México seguiu sofrendo os impactos da crise de 1994 por muitos anos. O mesmo ocorreu com países do sudeste asiático. No Brasil, a crise de 1999 significou a passagem a anos de recessão, que só recentemente foram superados. Na Argentina a crise teve conseqüências devastadoras do ponto de vista econômico, financeiro, político e social.

São crises que se desatam a partir do elo mais frágil, mais sensível, do processo de reprodução – o setor financeiro -, mas que rapidamente se propagam pelo restante da economia, pelo papel central que esse setor passou a ter e pelos aspectos psicológicos em que se assenta. Não por acaso o segundo livro de Francis Fukuyama se chamou “Confiança”, para denotar como as expectativas, positivas ou negativas, assumem força material no jogo especulativo.

A América Latina foi assim vítima privilegiada dessas crises, que não por acaso atingiram justamente suas três economias mais fortes, que haviam sido exibidas como modelares – a mexicana, a brasileira e a argentina. Nos três casos a crise assumiu a forma de ataque especulativo, de crise financeira, que se alastra para o conjunto da economia. Os capitais especulativos se valem do peso desestabilizador que tem na economia, para fazer valer essa posição, pressionando com uma saída brusca e maciça de capitais, ações governamentais ou simplesmente o jogo do mercado, lucrando enormemente com essas operações.

As crises anteriores tinham como cenários países da periferia, com efeitos que intensificaram a tendência ao enfraquecimento dos paises globalizados e a intensificação da concentração de renda e de poder dos países globalizadores. Mesmo a crise na Rússia poderia ser caracdterizada como a de uma economia tornada periférica, especialmente em meados da década de 1990. A exceção foi a ataque do megaespeculador Georges Soros à libra esterlina inglesa, mas acabou sendo um caso pontual, que não altera a regra general de ocorrência das crises nas periferias.

No seu conjunto, como crises neoliberais, provocaram demandas de remédios neoliberais: mais abertura das economias – como passou fortemente nos países do sudeste asiático -, maior empréstimos do FMI e as correspondentes Cartas de intenção, com aumento dos ajustes fiscais. A economia mexicana recebeu um empréstimo gigante dos Estados Unidos no momento da crise de 1994, inclusive porque se dava no próprio momento em que se assinava o Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) e do surgimento da rebelião dos zapatistas em Chiapas. Como compromisso, o México usou esses recursos para pagar os empréstimos dos bancos norte-americanos e seguiu aprofundando o modelo neoliberal.

O governo brasileiro de FHC, frente à crise de 1999, elevou a taxa de juros a 49% e assinou a terceira Carta de intenções com o FMI, cujas conseqüências estenderam a recessão por vários anos. Na Argentina, a crise de explosão do modelo de paridade do peso com o dólar, produziu a maior regressão econômica e social que o país conheceu em toda a sua história. O governo de Fernando de la Rua tentou manter o modelo herdado de Carlos Menem e com isso caiu com poços meses do seu mandato presidencial.

A crise atual e suas conseqüências

A crise anterior da economia norte-americano se deu em 2000, quando se desvanecia a ilusão de que a “nova economia” permitiria que o capitalismo não sofresse mais suas crises cíclicas, seja porque a informática permitira prevê-las e permitir que foram evitadas, seja porque novas demandas, como as de computadores, gerariam, da mesma forma que no caso dos automóveis, o lançamento anual de novos modelos, que estenderiam cada vez mais a demanda. Naquele momento, o papel do mercado norte-americano no mundo seguia sendo determinante no mundo, transferindo os efeitos da sua recessão para o resto da economia mundial.

Desta vez a crise norte-americana se dá em um cenário internacional modificado. A continua expansão de países emergentes – entre eles sobretudo a China e a Índia, mas também países latino-americanos, que mantêm ritmos constantes de crescimento, entre os quais particularmente o Brasil e a Argentina – amortece a diminuição da demanda dos EUA e, pela primeira vez, a recessão da economia norte-americana não tem efeitos diretos e devastadores sobre a economia mundial.

Porém, como essa crise se vê agravada com o aumento dos preços dos produtos agrícolas e a continuada crise do petróleo, constituindo-se, na verdade em um triple crise, seus efeitos são mais profundos e extensos do que apenas uma crise cíclica da economia norte-americana. São afetadas então não apenas as exportações para os Estados Unidos, mas também os importadores de energia e de produtos agrícolas, lista que, em uma ou outra proporção, afeta a todos os países do mundo.

No entanto, como todo fenômeno de um sistema marcado pela extrema desigualdade de riqueza e de poder entre regiões e países e dentro de cada país, os efeitos das crises não são igualmente repartidos entre todos. Há ganhadores e perdedores, algozes e vítimas.

Como a crise está em pleno desenvolvimento, seus alcances não podem ainda ser julgados em toda sua plenitude e se dão pugnas para ver quem consegue extrair vantagens, quem trata de perder menos, ainda não é possível saber com precisão os danos em toda sua extensão e quem arcará com eles. É certo que o mundo sairá modificado desta crise até mesmo porque toca em três pontos nodais das relações econômicas e de poder atuais: dinheiro, energia e comida. No entanto, as estruturas de poder, de produção e de distribuição de riqueza reinantes, garantem resultados absolutamente diferenciados para distintas regiões e países como efeito das crises.

Na combinação entre aumento dos preços do petróleo, dos produtos agrícolas e diminuição da demanda dos EUA e da Europa, os países mais pobres, que somam a grande maioria da África, da Ásia e da América Latina, perderão claramente, com fortes pressões recessivas, déficit na balança comercial e aumento do endividamento. Os países exportadores de petróleo e de produtos agrícolas com altas mais significativas, terão suas situações minoradas, mas as pressões inflacionárias não poupam a nenhum país e, com elas, as políticas recessivas voltam a ganhar peso.

Para a América Latina, os efeitos são mais pesados e diretos para os países que seguem dependendo mais fortemente do comércio com os Estados Unidos, o México, a América Central e o Caribe, em primeiro lugar. Em segundo lugar, os países com pautas exportadoras menos valorizadas ou aqueles que tiveram seu ciclo de expansão econômica excessivamente voltada para as exportações, em particular as economias mais abertas, entre elas as que têm tratados de livre comércio com os Estados Unidos, como o Chile, o Peru, além dos já mencionados México, Costa Rica e outros países centro-americanos e caribenhos. Relativamente menos afetados devem ser os países com pautas exportadoras mais diversificadas – seja nos produtos, seja nos mercados -, como o Brasil, em parte a Argentina, e os que participam dos processos de integração regional – seja o Mercosul, seja a Alba. Para estes, as crises são uma oportunidade especial para acelerar e intensificar os processos de integração, de comércio, assim como nos planos financeiro e energético.

Seja pela combinação das crises, seja porque afeta profundamente os Estados Unidos, no momento em que, pela primeira vez, seu peso na economia mundial decresce, o mundo e a América Latina em particular, terão fisionomias distintas, seja acelerando transformações já em andamento, seja dando inicio a novas dinâmicas, passadas as crises – cujas durações e profundidades, ainda não podem ser medidas com toda precisão.

Por Emir Sader.

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No início da segunda etapa da crise global

A corte de admiradores do capitalismo global, que ao longo dos últimos anos nos encheu com suas reiterações sobre a solidez do sistema, hoje está em pleno recuo tático; seus integrantes já não negam a crise, mas tentam diminuir seu caráter dramático e reduzir suas raízes e extensão. A análise é do economista argentino, Jorge Benstein.

ALAI AMLATINA, 11/02/2008, Buenos Aires – A recessão já se instalou no centro do Império; agora, o debate gira em torno da sua profundidade, duração e alcance mundial. A corte de admiradores de direita ou progressistas do capitalismo global, que ao longo dos últimos anos nos encheu com suas reiterações sobre a solidez do sistema, hoje está em pleno recuo tático; seus integrantes já não negam a crise, mas tentam diminuir seu caráter dramático e reduzir suas raízes e extensão. Alguns deles ensaiam explicações anedóticas, outros dizem tratar-se de uma “crise cíclica” —que é o mesmo que dizer passageira— e a maior parte deles refugia-se na explicação simplista que reduz o fenômeno a uma grande perturbação financeira combinada com um surto pessimista dos consumidores norte-americanos, provocado pelos devedores inadimplentes dos Estados Unidos (aqueles que não pagam seus créditos imobiliários) e por aqueles que deram a eles empréstimos generosos demais.

Segundo esse pessoal, os problemas serão superados em breve, graças às intervenções da Reserva Federal, da Casa Branca e das autoridades políticas e monetárias das outras grandes potências. O mítico estandarte do poder invencível dos amos do sistema ainda flameja nas alturas, mesmo que esteja ficando esfiapado rapidamente, no ritmo das trovoadas globais.

Crédito, consumo e dívidas

Uma vez que a crise está circunscrita ao estouro da “bolha imobiliária” norte-americana e aos seus impactos colaterais nos Estados Unidos e no resto do mundo, a “solução” parece clara: estimular os consumidores e investidores, aumentar o gasto público e injetar liqüidez no mercado.

É isso que estão fazendo agora o governo Bush e a Reserva Federal: o presidente acabou de promover uma redução de impostos e um gasto público recorde para 2009 — que chega a mais de 3 trilhões de dólares — e que, portanto, vai gerar um déficit fiscal gigantesco; ou seja, que a dívida pública logo vai superar os 10 trilhões de dólares. É claro que Bush faz tudo isso sempre a partir da direita: as reduções fiscais beneficiam basicamente os ricos e a classe média alta, o aumento do gasto público vai privilegiar as Forças Armadas, que terão o maior orçamento de toda a história dos EUA: o gasto militar total dos Estados Unidos chegou, em 2008, a quase 1,2 trilhões de dólares (se somamos as verbas do Departamento de Defesa e as dos outros setores do Estado), segundo o projeto de orçamento enviado ao Parlamento por Bush, em 2009 essa cifra será muito mais alta. Por sua vez, a Reserva Federal reduz ainda mais a taxa de juros.

O que eles estão fazendo agora é uma espécie de repetição, em condições infinitamente mais graves, do que já fizeram em 2001. Eles não têm nenhum roteiro diferente. Só que naquela época a dívida pública norte-americana chegava a 5,7 trilhões de dólares e agora está muito próxima de 9,2 trilhões e se somarmos a isso o resto do endividamento dos setores públicos e privados chegaremos aos 50 trilhões de dólares (equivalente ao Produto Bruto Mundial). E ainda é preciso acrescentar a acumulação de déficit fiscais e comerciais e um volume de gastos militares totais que em 2009 poderia chegar a representar 10% do PIB norte-americano.

Em 2001 a situação era difícil, mas havia margens econômicas e políticas que permitiram que o Poder (mediante auto-atentado terrorista) saísse da recessão acelerando as tendências dominantes do sistema: hipertrofia especulativa, concentração de renda, consumismo (com forte queda da poupança pessoal), crescimento das dívidas públicas e privadas e keynesianismo militar. Todos esses aspectos foram ficando exarcebados ao extremo nos últimos sete anos, as aventuras coloniais na área euro-asiática terminaram num impasse (o aparato militar aparece agora como uma pesada máquina, tão sofisticada e cara quanto incompetente) enquanto o Estado e a população estão afogados em dívidas.

A recessão norte-americana é mais uma crise de dívida do que uma depressão causada pela retração do consumo; a primeira é o fundamento da segunda. A super dívida estatal chegou a um ponto tal que sua expansão entrou no círculo vicioso que entrelaça de modo perverso as emissões de título públicos e os dólares cada vez mais desvalorizados, a alternativa estaria em que o Estado reduzisse seus gastos e/ou aumentasse a arrecadação fiscal, o que poderia afundar a economia em uma recessão ainda mais profunda.

Por sua vez, a população de média e baixa renda tem sofrido as conseqüências do congelamento (e para um importante setor, até a queda) dos seus salários reais, a renda familiar média é, atualmente, menor que no ano 2000. Quando a “bolha imobiliária” começou a se formar, com uma avalanche de créditos baratos, ao mesmo tempo se estava restringindo a solvência a médio prazo de uma grande massa de devedores e a serpente neoliberal acabou mordendo o próprio rabo: em meados de 2006 o mercado imobiliário estava saturado, os preços de imóveis começaram a cair e, em 2007, explodiu a inadimplência. O que veio a seguir é bem conhecido.

Nos anos em que estava no auge, o tema do iminente esgotamento do crescimento da economia norte-americana, sobrecarregada por dívidas, foi abertamente ignorado ou negado por jornalistas, especialistas, grandes empresários e dirigentes políticos dessa superpotência. Os negócios iam bem e quem teria ousado, nesse período, dizer que os grandes lucros da época seriam a base de um próximo desastre? Os poucos que ousaram foram marginalizados e ridicularizados, apontados como catastrofistas, pessoas amargas ou amantes dos terremotos.

Mas se a direita pretende fazer mais da mesma coisa, os progressistas imperais não vão muito mais longe. Joseph Stiglitz, uma das vozes desse setor, acabou de propor uma variação “popular” do remédio, também orientada para a reabilitação do consumo aumentando o gasto público e, consequentemente, o déficit fiscal e a dívida. Segundo essa proposta, os beneficiários não seriam os militares e os ricos, mas os desempregados, os programas de desenvolvimento de infra-estrutura, do setor educacional, da saúde, de economia de energia e de redução da contaminação ambiental. A aspirina progressista (incompatível com o atual sistema de poder dos EUA) e a repetição conservadora não passam de pequenos band-aids impotentes diante de uma realidade desbordante.

Recessão e inflação

Agora que a recessão chegou ao centro da economia mundial, suas autoridades entram em pânico, percebem que suas ações são ineficazes ou, inclusive, contraproducentes. As medidas anti-recessão, como os cortes fiscais que estão em curso, as drásticas quedas nas taxas de juro ou o aumento do gasto público, certamente trarão mais déficit e dívidas e, caso cheguem a ter algum sucesso, mesmo que seja medíocre, trarão um aumento da inflação. Em ambos os casos, darão impulso à desvalorização internacional do dólar. A recessão e a inflação chegam juntas porque a crise financeira converge com a crise energética que faz subir o preço do petróleo, puxando para cima um amplo leque de matérias-primas. Os custos de produção aumentam não só quando a economia mundial cresce, fazendo aumentar a demanda por esses produtos, mas também quando ela fica parada, ou mesmo quando sofre quedas. Isso ocorre porque a extração de petróleo no mundo está chegando ao seu nível máximo e, logo atrás dela, as de outros recursos energéticos não renováveis, como o carvão e o urânio, que seguirão o mesmo caminho a mais longo prazo, mas bem antes de meados do século XXI. E, como já sabemos, a substituição do petróleo pelos biocombustíveis leva a um rápido encarecimento generalizado da produção agrícola, especialmente de alimentos.

Em síntese, as autoridades norte-americanas sabem que se tentarem reverter a recessão reanimando o mercado estarão dando fôlego à inflação e à queda do dólar, o que, cedo ou tarde, trará mais recessão; mas também sabem que se tentarem conter a inflação esfriando a economia, a recessão vai se aprofundar: um beco sem saída.

Alguns especialistas, por enquanto discretos, começam a alimentar ilusões com a possibilidade de uma paralisação prolongada mas ordenada, sem explosões sociais nem crises institucionais graves. O modelo para isto seria o Japão dos anos 1990, mas eles esquecem que se tratava de uma potência de segunda ordem que contou, nesse momento, com duas tábuas de salvação externas que ajudaram a suavizar a aterrissagem: em primeiro lugar, as “bolhas” de prosperidade do leste da Ásia, que deram fôlego ao Japão até a crise de 1997, e, principalmente, os Estados Unidos, seu principal cliente comercial, cujo mercado absorveu exportações e investimentos japoneses. Mas os Estados Unidos é um país grande demais, não existe uma tábua de salvação externa à sua medida. O resto do mundo vinha amortecendo seus desajustes fiscais e comerciais, acumulando montanhas de papeis dolarizados que a cada dia valem menos, mas essa capacidade está quase esgotada.

A ilusão do descolamento

Na última reunião de Davos houve muita discussão em torno do possível “descolamento” entre os Estados Unidos e as outras potências industriais que, deste modo, ficariam distanciadas do naufrágio do seu irmão maior.

Até hoje, a globalização era apresentada pela propaganda neoliberal como uma rede da qual ninguém podia escapar. Agora, sem maiores explicações, dizem o contrário: pelo visto, a rede global permite que uma ampla variedade de países fujam do desastre. Dirigentes e comunicadores de algumas economias desenvolvidas incluem seus países na lista de sobreviventes e inclusive em muitos países periféricos as mídias locais tentam tranqüilizar suas populações explicando que, graças ao nível das suas reservas (em dólares), à natureza das suas exportações, à sua localização geográfica ou a outra benção do destino, essa nação não será afetada pela recessão norte-americana (ou será muito pouco).

Mas acontece que — para desgraça dos neoliberais— os neoliberais tinham razão: as interdependências econômicas mundiais são tão densas que, como estamos comprovando todos os dias, não há maneira de “descolar” as sacudidas norte-americanas (bancárias, da bolsa, etc.) do funcionamento financeiro internacional. A “bolha imobiliária” norte-americana foi a vanguarda de uma variada série de outras bolhas parecidas em diversos lugares do planeta, países como Espanha, Inglaterra, Holanda, Austrália, Irlanda e Nova Zelândia fizeram parte ativa desta festa. Na Espanha, a bolha já começou a murchar: recentemente, Carlos March, cabeça de um dos grupos financeiros decisivos desse país, declarou que “a crise imobiliária (espanhola) vai durar muito tempo, pelo menos três anos”. Por outro lado, numerosos bancos europeus e asiáticos estão sendo atingidos pela desvalorização de títulos norte-americanos atrelados a dívidas hipotecárias de alto risco, que compraram por atacado em pleno auge especulativo. A recessão norte-americana já afeta o Japão, intimamente associado à superpotência nos níveis comercial, financeiro, político-militar, etc. O Japão e os EUA compram o grosso das exportações industriais da China e são a coluna vertebral da sua prosperidade econômica, a qual, por outro lado, acumula mais de 1,4 trilhões de dólares e papéis dolarizados em suas reservas e também tem suas próprias bolhas (da bolsa, imobiliária, etc.).

Muito mais fortes são as inter-relações entre a União Européia e os Estados Unidos… o que não impediu o presidente do Eurogrupo, Jean-Claude Juncker, de declarar (no início de fevereiro de 2008 e sem mexer um só músculo da cara) que “na Europa não há risco de recessão, ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos”.

Por Jorge Beinstein, que é economista argentino, professor na Universidade de Buenos Aires. É autor, entre outros livros, de “Capitalismo senil, a grande crise da economia global”.

Tradução: Naila Freitas / Verso Tradutores.

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O fundo político da atual crise econômica

A esquerda costuma centrar-se nas pessoas que caíram devido aos cracks econômicos, os pobres e os sem teto, assim como nas minorias étnicas e raciais. Mas o problema mais grave está no próprio núcleo da economia. Quando se chega a um ponto em que você só pode atuar sobre pessoas que caíram por causa dos cracks econômicos, o jogo, a longo prazo, está perdido. A análise é do economista Michael Hudson.

Mike Whitney entrevistou o economista Michael Hudson sobre a crise econômica nos EUA. Profundo cientificamente, político de princípio ao fim e, como sempre, rápido e original em sua forma de argumentar, o respeitado especialista em mercados financeiros e política fiscal oferece uma análise político-econômica tão clara quanto instrutiva sobre as causas de fundo da atual crise econômica.

Mike Whitney: Antes de John Kennedy tomar posse, aqueles que tinham renda superior aos 200.000 dólares estavam, em termos tributários, submetidos a altos impostos. As corporações empresariais também pagavam uma porcentagem muito maior do que hoje da carga tributária total. As taxas fiscais muito mais altas que pesavam sobre os ricos jamais prejudicaram o PIB, que se manteve, ano após ano, com um crescimento acima de 4%, e as classes médias floresceram de um modo que não tinha precedentes na história universal. Por que não voltamos às políticas “redistributivas” que tão bem funcionaram no passado? Você acredita que a “tributação progressiva” é crucial para manter a democracia e estabelecer uma igualdade maior entre as pessoas?

Michael Hudson: Eu acho que sua pergunta contempla o problema fiscal de uma forma estreita demais. O que está em questão não é simplesmente a dimensão da taxa sobre os rendimentos tributáveis, que agora mesmo não são mais do que, sobretudo, os de origem salarial, seguidos por aqueles que são provenientes dos lucros. Os economistas clássicos focaram, primeiro, e acima de tudo, a questão de determinar o que deveria ser objeto de cargas tributárias. Desde os fisiocratas, passando por Adam Smith e John Stuart Mill, até os socialistas, como Ferdinand Lasalle e os reformadores da Era Progressista norte-americana, todos concluíram que a fonte fiscal principal tinha que vir da “renda não ganha” (unearned income), definida como rendimento da terra, renda monopólica, outras formas de renda econômica (lucros obtidos sem desempenhar o necessário papel na produção) e os rendimentos de capital obtidos a partir desses ativos geradores de renda, principalmente terras.

Tal como estão as coisas agora, você poderia elevar as taxas fiscais sobre a renda para 100%, e continuaria sem sequer tocar o fluxo de dinheiro procedente dos rendimentos dos bens imobiliários, dos monopólios e das transnacionais, que se servem, todos, do mecanismo de transferência de preços para manipular suas declarações de renda e de gastos, com a finalidade de demostrar que não têm nenhum tipo de rendimento tributável. De modo que a primeira questão que deveria nos ocupar é a de que tipo de renda deve ser tributada. Possuir uma propriedade rentista sobre um bem imóvel é como possuir um poço de petróleo na época da depletion allowance (1). Além de contar o juro como um gasto que se pode deduzir (e não como uma escolha financeira), os proprietários alegam que seus edifícios estão se deteriorando, apesar do fato de que os preços da propriedade praticamente não deixaram de crescer.

Ou seja, na maioria dos anos, não se declara renda tributável alguma. Os proprietários de bens imóveis nem sequer precisam pagar um imposto pelos ganhos de capital (aquilo que Mill chamou de “aumento não ganho”, que ocorre quando se usam os recursos gerados pelas vendas para comprar ativos posteriores). E isso é, justamente, o que faz a grande maioria dos possuidores de riqueza. Fazem comércio e acumulam, livres de impostos. A situação é muito parecida à das companhias que ficam sob controle dos profissionais do assalto financeiro das corporações empresariais. Pagar juros aos donos de “moedas podres” (títulos de baixo valor) absorve o que antes eram rendimentos tributáveis, pagos como dividendos. Isto é o que realmente está corroendo o sistema fiscal norte-americano e desindustrializando nossa economia.

Quando Kennedy chegou à presidência, uma das primeiras coisas que fez foi aprovar uma lei de crédito fiscal ao investimento (a Tax Investment Credit). Isso deu às companhias industriais um crédito para fazer investimentos tangíveis de capital. Os bens imóveis também subiram nesse carro, mas a idéia era usar o sistema fiscal para incentivar o investimento e o emprego, com a finalidade de manter os EUA no caminho da industrialização.

Vamos voltar rapidamente aos nossos dias. O sistema fiscal favorece a especulação financeira e a propriedade absentista (a propriedade que não é para uso pessoal e direto do proprietário). Pode parecer uma ironia, mas quem é realmente rico prefere não ter rendimento algum. Preferem centrar-se nos retornos totais, que chegam a eles em forma de ganho de capital. Por isso, os bilionários dos fundos hedge pagam muito menos impostos que suas secretárias. O setor dos bens imóveis é agora o maior da nossa economia –o grosso do seu valor de mercado provém do valor da localização—, não a indústria ou outros meios de produção. Dadas as brechas fiscais existentes, eu preferiria não tributar os lucros empresariais, ou, inclusive, não tributar nenhum tipo de rendimento, se o governo pudesse transformar em fonte de recursos fiscais o atual vale tudo da renda econômica. Assim, a discussão sobre o que deve ser tributado precisa ser prévia à discussão sobre o nível de pressão fiscal que é necessário exercer sobre o parco rendimento proveniente do setor FIRE (finanças, seguros e bens imóveis, por suas iniciais em inglês; N. do T.) que os ricos estão obrigados a declarar.

Talvez a melhor forma de categorizar o assunto seja convocar essa discussão ou debate da reindustrialização. Resta dizer que quanto mais regressivo for o sistema fiscal, maiores serão a pobreza e a desigualdade. E, como disse Aristóteles, a democracia é a etapa política que precede imediatamente a oligarquia. Nessa direção está evoluindo agora a economia.

MW: Por que os Democratas têm tanta apreensão em fiscalizar aqueles que mais se beneficiaram com o nosso sistema? Você vê algum sinal de que os liberais de esquerda estejam se somando à luta contra os ideólogos de extrema direita que vêm dominando o debate econômico nos últimos 30 anos?

MH: A explicação mais rápida para o fato dos Democratas não terem tributado a riqueza está no poder dos lobistas, mercenários de interesses particulares, e no poder dos think tanks, contratados por eles para promover uma teoria econômica lixo. A maior parte da riqueza é obtida, hoje, por meio de privilégios fiscais especiais, e o setor financeiro é o maior contribuinte das campanhas políticas, seguido pelo setor dos bens imobiliários. Os Democratas têm suas bases, tradicionalmente, nas grandes cidades. E, como disse Thorstein Veblen, em Absentee Ownership, a política urbana é, substancialmente, um projeto de promoção dos bens imobiliários.

Um século atrás, a questão fiscal estava no primeiro plano da política norte-americana. Os reformadores lutaram vigorosamente a favor de uma legislação fiscal que tributasse os rendimentos: exatamente o oposto da tentativa atual de aboli-la. A razão era que o primeiro imposto sobre a renda recaía principalmente sobre os ricos, e especialmente, sobre os bens imobiliários, a mineração e os monopólios, que eram, na época, exatamente como agora, as fontes principais de riqueza.

O problema de fundo é que não há uma filosofia econômica capaz de esclarecer o modo pelo qual funciona a economia como um sistema de conjunto. Sem distinguir que tipo de investimento e que tipo de atividades queremos, é bastante difícil definir uma política fiscal. A idéia de uma taxa fiscal plana, por exemplo, parte do pressuposto de que todos os rendimentos são igualmente valiosos, com a cautela de que essa taxa evita incluir a fiscalização da propriedade e dos fluxos de dinheiro do setor FIRE, que os lobistas deram um jeito para que, frente a agência fiscal norte-americana, apareça como despesas e deduções. Ou seja, que essa idéia não só não é axiologicamente neutra e livre de valores, senão que é explicitamente hostil ao mundo do trabalho. E você pode vê-la aplicada hoje em sua forma mais pura nos países da antiga União Soviética, como os Estados bálticos.

Eu não vejo o Congresso discutindo a questão fiscal, exceto quando são apresentadas propostas de cortes fiscais por parte dos inimigos da intervenção estatal. E não vejo, também, que seja possível iniciar uma discussão realista enquanto não for definido o significado preciso de uma contribuição tributária progressiva. É necessário começar definindo alguns tipos de rendimentos e investimentos que são mais produtivos do que outros. Isso terminaria com os subsídios fiscais à rolagem de dívida e à especulação financeira.

MW: Como Obama deveria abordar o assunto do “alívio da dívida” para as vítimas do boom imobiliário que estão, agora mesmo, perdendo suas moradias? Os afro-americanos estão sendo especialmente golpeados pelo fracasso das hipotecas podres. Existe alguma forma de minimizar as perdas das pessoas que foram apanhadas nessa fraude bancária?

MH: A questão das moradias hipotecadas é um problema muito antigo, ou seja, há um amplo repertório de vias para abordá-lo. Na minha opinião, a lei mais efetiva é a lei do Estado de Nova York sobre transmissão fraudulenta. Registrada quando Nova York era uma colônia, manteve-se quando Nova York passou a fazer parte dos Estados Unidos. O problema era, na época, que os gananciosos credores ingleses tentavam apropriar-se do rico território agrícola de Nova York. O estratagema consistia em emprestar dinheiro hipotecário aos granjeiros, que ofereciam suas terras como garantia para a dívida. Então, podiam executar a hipoteca, às vezes antes da chegada da colheita, ou seja quando os granjeiros careciam de liqüidez para pagar. Outros prestamistas emprestavam demais em relação às possibilidades dos contratantes de devolver o crédito quando se exigia, subitamente, que pagassem. De modo que Nova York aprovou uma lei prescrevendo que se um credor concedia um empréstimo sem ter uma idéia realista das possibilidades de devolução do devedor, a transação seria considerada fraudulenta e a dívida declarada inválida e nula de pleno direito.

Na década de 1980, muitas empresas buscaram amparo nessa lei para defender-se do assalto das grandes corporações, que usavam títulos podres como arma predileta. As empresas, na alça da mira, alegaram que seriam forçadas a reduzir drasticamente seus negócios, ou ficariam sem ativos ao ponto de terem que declarar falência. Eu pensei, então, que os países do Terceiro Mundo que tinham contratado empréstimos dos grandes bancos de Nova York podiam defender-se desta maneira, porque as únicas formas de pagar eram pedir empréstimos para cobrir o serviço da dívida ou —como acabou acontecendo— liquidando seus ativos pela via de privatizar seu setor público, com a finalidade de juntar dólares.

Hoje, os empréstimos bancários fraudulentos, como no caso da Countrywide, são acusados de fabricar hipotecas podres com aparência normal, que, exatamente por isso, deveriam ser anuladas. Mas o prefeito de Cleveland foi além. Acusou de estrago público os bancos cujos empréstimos hipotecários levaram às alienações que deixaram as moradias vazias. Moradias que estão sendo depredadas por ladrões e usadas como antros de droga. Os prestamistas de hipotecas podres deveriam responder judicialmente por isso e assumir os custos de limpeza da contaminação que as dívidas induzidas por eles geraram.

MW: Parece bastante radical.

MH: Mas é o que a própria lei manda. Justamente na semana passada, no dia 26 de junho, depois que os fiscais gerais da Califórnia, Illinois e Connecticut apresentaram cargos contra a Countrywide, o Wall Street Journal citava a opinião de um professor de direito. Segundo ele, se os estados conseguem convencer as cortes de justiça para que garantam a restituição, a coisa poderia terminar em um gigantesco problema para a Countrywide, que teria que devolver os benefícios provenientes de todos esses empréstimos e, provavelmente, devolver todas as moradias alienadas até agora. A fraude financeira é um assunto muito sério. Há muito tempo que os remédios estão nos livros.

MW: Existe uma forma menos radical de manter as pessoas em casas que se tornaram caras demais para suas rendas ou deveríamos procurar outras alternativas?

MH: A resposta depende do modo em que você defina o fato de que as casas ficaram caras demais. Se falamos do salto dos juros hipotecários e de que os pagamentos de amortizações aumentaram demais para as rendas dos proprietários dessas casas, então uma forma de manter as pessoas em suas casas é um reajuste parcial do seu empréstimo hipotecário. O secretário do Tesouro, Paulson, já deu um passo que, contudo, continua baseado no mecanismo de mercado: estimar realisticamente o valor de mercado da propriedade e reajustar a hipoteca segundo esse valor.

O problema com essa solução são as casas que se tornaram mais do que muito caras. O que poderia ser resultado do problema de encarecimento repentino da saúde, em cujo caso terão, provavelmente, que deixar a casa, porque os EUA carecem de uma cobertura de saúde pública ao estilo europeu; preferem culpar as vítimas por suas doenças ou seus percalços. Mas se o prestamista fez, conscientemente, um mau empréstimo e, depois, o comprador tem que abandonar a casa porque sua renda é insuficiente para honrar a dívida, deveria, pelo menos, receber algum tipo de compensação e, no melhor dos casos, também uma reparação jurídica completa pela fraude de que foi vítima.

MW: Há alguma alternativa viável para o “livre mercado”, ou os trabalhadores norte-americanos terão que continuar sofrendo com perdas de emprego, com quedas do nível de vida e com a “corrida para o abismo”?

MH: A razão para que o trabalho tenha perdido competitividade nos EUA não é simplesmente a corrida para o abismo. Para entender por que as exportações norte-americanas perderam a corrida dos preços nos mercados mundiais, não apenas é preciso observar os salários depois dos impostos dos trabalhadores, mas também o fato de que os empresários não estão fazendo investimentos para aumentar a produtividade, assim como o que eles deixam de receber, por parte do governo, em matéria de manutenção da infra-estrutura pública básica.

Uma das causas para que os empresários não tenham realizado investimentos suficientes para aumentar a produtividade de suas fábricas e equipamentos é que são forçados a desviar um fluxo dos seus fundos para pagar juros aos proprietários de bônus e aos bancos, além de dividendos que acalmem os acionistas ativistas, o novo eufemismo para referir-se aos especuladores financeiros.

A filosofia das corporações empresariais norte-americanas tem seguido mais pela ideologia do ato reflexo que pela do interesse próprio. A General Motors declarou que tem que pagar enormes custos com saúde, enquanto seus concorrentes, não. Com uns 60 anos de atraso, descobrem, finalmente, que a medicina socializada é mais eficiente do que a saúde privatizada em mãos dos predadores que operam no mundo das finanças e dos seguros. Os serviços públicos não se constróem com custos de taxas de juro, com dividendos, com exorbitantes remunerações dos executivos, com opções de ações e com honorários de advogados. Tudo isso absorve uma parte gigantesca do gasto das empresas com sua força de trabalho, sem, por outro lado, contribuir para elevar o nível de vida.

Além disso, formar médicos, dentistas e enfermeiras é muito mais barato fora dos EUA. Aqui, eles saem de suas faculdades universitárias com dívidas de centenas de milhares de dólares, e depois ainda precisam endividar-se mais para abrir seus consultórios, e ainda, precisam, depois, pagar caríssimos seguros de responsabilidade profissional. Quando recebem uma licença do escritório federal de sanidade (HMO, nas iniciais em inglês), o normal é que tenham que esperar um ano, mais ou menos, antes de começar a cobrar. Contudo, precisam contratar seus próprios contadores apenas para que eles se entendam com o escritório federal de sanidade. O fornecimento de médicos, dentistas e enfermeiras está racionado.

Mas, acima de tudo, o preço do trabalho reflete os altos custos da moradia aqui: principalmente o custo de ter uma hipoteca imobiliária (além da dívida não hipotecária). O trabalho não se beneficia desses custos. E tal como as coisas se desenvolveram, a indústria também não é beneficiada. É o preço que a economia dos EUA tem que pagar, em seu conjunto, por ter sucumbido a um processo de financeirização e privatização completamente disfuncional.

MW: Você já disse alguma vez que a crise financeira parece com uma “cobra que, enroscada em torno da economia, está estrangulando-a lentamente”. Poderia aprofundar um pouco mais nessa idéia?

MH: Eu estava falando da deflação por dívidas. Quando o gasto com dívida cresce exponencialmente, detrai mais e mais dinheiro do seu gasto habitual em produção e consumo. O setor financeiro aplaude isso como o milagre do juro composto. O volume do empréstimo mantém-se crescente segundo princípios puramente matemáticos, despreocupado da capacidade —ou incapacidade— da economia de gerar um excedente suficientemente grande para permitir o pagamento. Para pagar os credores, cada vez são necessários mais salários, mais e mais lucros e rendimentos fiscais. Esses credores, então, vão lá e emprestam seu fluxo proveniente do serviço da dívida para outras pessoas. O que tem como conseqüência encontrar cada vez mais mercados de risco, enquanto a dívida vai se tornando mais e mais pesada.

Para poder pagar os gastos que trazem essas dívidas, os trabalhadores assalariados cortam o consumo, enquanto as empresas, esmagadas pelas dívidas, cortam seus investimentos em capital novo, pesquisa e desenvolvimento. Os governos locais, estatais e o federal pagam, também, os juros dos seus déficits, o que os leva a recortarem os gastos em manutenção de infra-estrutura e melhoramento dos serviços públicos. Esses cortes, por sua vez, derivam em um encolhimento do mercado interno, o que leva a uma queda do investimento e do emprego. Tudo isso é aplaudido como um resultado mágico da capacidade do mercado para destinar recursos. Mas quem aplaude é o setor financeiro, não a indústria.

MW: Isso significa que o sistema vai experimentar súbitas sacudidas, como falência de um banco importante —tal vez Citigroup ou Merril— e uma grande baixa no mercado de valores?

MH: A economia chega a um estágio Ponzi (2), no qual os bancos emprestam os juros aos seus clientes, para mantê-los em dia nos pagamentos. Cada vez mais empréstimos hipotecários são reestruturados desta maneira nos últimos anos. Quando os credores deixam de fazer esses empréstimos, a cadeia de pagamentos se rompe e dispara uma onda de pedidos de falência, o que traz consigo uma queda dos mercados.

MW: O dólar está condenado. Os EUA vão conseguir reduzir ambos os déficits (fiscal e comercial) e continuar atraindo capital estrangeiro no futuro? E caso venha uma recessão de verdade, os negócios diminuem e aumenta o desemprego, isso fortaleceria o dólar?

MH: Suponho que com isso do “dólar condenado” o que você quer dizer é que o dólar continuaria caindo com respeito às moedas estrangeiras, enquanto a inflação “engoliria” tudo o que os salários possam comprar. A idéia de que uma economia que vai mal pode curar-se por si mesma faz parte da ideologia hostil ao trabalho do FMI e da propaganda da Escola de Chicago. Para afirmar esse tipo de coisas são concedidos os Prêmios Nobel, garanto a você. Mas é teoria econômica-lixo. Um dólar com tendência a cair é um processo auto-alimentado. Para principiantes: as ações, os bônus e os bens imobiliários cotados em dólares valem menos em termos de euros, libras esterlinas ou outras moedas estrangeiras fortes. Isso faz com que não existam muitos incentivos para que os estrangeiros invistam aqui. E se entrarmos em uma recessão (para não falar em depressão), haverá ainda menos oportunidades para investir com lucros.

Paralelamente, a dependência norte-americana das importações continuará crescendo na medida em que a economia continue se desindustrializando, ou seja, se financeirizando. O gasto militar norte-americano no exterior vai lançar ainda mais dólares nos mercados de câmbio do mundo. De maneira que uma economia enfraquecida aqui não significa que o dólar ficará mais forte; significa, sim, que temos um mau clima para os investimentos! A austeridade vai nos tornar mais dependentes do exterior. Para que você tenha uma idéia, basta observar o que aconteceu quando o FMI impôs planos de austeridade aos países devedores do Terceiro Mundo. E lembre-se que da última vez, quando, com Clinton, foi dada liberdade a Robert Rubin para que reformasse a Rússia, o resultado foi o colapso industrial e a falência.

MW: Não séria melhor para o mundo se não houvesse nenhuma “moeda de reserva” e o valor do dinheiro dependesse simplesmente da fortaleza econômica e do equilíbrio orçamentário? Enquanto existir uma “moeda internacional”, como o dólar, haverá um Império, porque o papel moeda de um país (os EUA) domina sobre o resto. É realmente possível a democracia sem uma paridade maior entre as moedas do mundo?

MH: A taxas de câmbio são independentes dos sistemas políticos. Dito isto, as economias oligárquicas tendem a falir devido à sua tendência de deslocar as cargas fiscais dos bens de raiz e da infra-estrutura monopolizada e privatizada para o trabalho e a indústria. Isso reduz sua competitividade. Por exemplo, o complexo militar-industrial opera sobre uma base de magnificação de custos, não sobre uma base que os minimize. A questão é, então, se eles podem conseguir, pela via da extorsão de outros países, suficientes tributos estrangeiros para compensar. A Espanha não conseguiu isso do Novo Mundo depois de 1492, e Roma, antes, simplesmente destruiu a Ásia Menor e outras dependências imperiais.

Os EUA dos nossos dias poderiam ter mais sucesso? Parece que a manutenção da hegemonia do dólar é a única via possível para consegui-lo. Por definição, uma moeda de reserva é um empréstimo concedido por um governo a outro. Isso termina transformando-se sempre em carga fiscal sem controle de representantes políticos. É inerentemente não eqüitativo.

Há duas razões pelas quais os bancos centrais mantêm reservas em dólares. Uma é para efeitos de estabilização, para prevenir ataques monetários como os ocorridos na Ásia em 1997. A outra é que manter reservas de dólares em forma de empréstimos em dólares aos EUA mantém baixo o preço das suas próprias moedas e, assim, o valor das suas exportações. Esse efeito também poderia ser conseguido impondo uma tarifa flutuante às importações procedentes de países cujas moedas estejam em processo de desvalorização, fornecendo esse dinheiro, como subsídio, aos exportadores. Mas os países estrangeiros ainda não estão preparados para dar um passo político dessa envergadura, que os afastaria do império financeiro norte-americano.

No que diz respeito à política fiscal, não há realmente necessidade de equilíbrio orçamentário. Começando pelos “Greenbacks” dos tempos da Guerra Civil, os EUA demostraram que os governos não precisam aumentar os impostos para gastar dinheiro. Podem limitar-se a imprimi-lo. É o que, afinal de contas, faz a banca comercial. Em qualquer caso, o dinheiro é criado espontaneamente. O Tesouro da Reserva Federal, apenas em abril passado, criou um bilhão de dólares para um crédito de salvamento do setor financeiro. Entre parêntesis, ao mesmo tempo que declarava hipocritamente que a Seguridade Social iria falir em 40 anos por causa do seu trilhão de dólares de déficit. O Iraque acrescentou outro trilhão, mais ou menos.

A lição que se pode tirar disso é que a fortaleza econômica consiste na capacidade de criar crédito que alimente o crescimento econômico. Mas o setor bancário privatizado está, neste mesmo momento, destruindo essa fortaleza nos EUA. Em vez de criar crédito para financiar a formação de capital, o que faz o sistema bancário são empréstimos destinados a salvar a nefasta piramidalização financeira.

MW: Você acha que o crescimento do setor financeiro é um desenvolvimento positivo, ou não?

MH: O comportamento desse setor acabou sendo uma antítese do desenvolvimento industrial do capitalismo. Os reformadores do século XIX, inspirados por Henri St. Sino na França, tentaram reorganizar as finanças, passando do financiamento da dívida para o financiamento por meio da emissão de ações. Mas a economia atual vai exatamente na direção contrária. O que faz é substituir as ações por bônus e empréstimos bancários (ou de fundos de compra), criando dívida que não é usada para construir a capacidade produtiva necessária para devolver essa dívida com seus juros. O resultado é aquilo que os economistas clássicos chamavam de “dívida improdutiva”.

O setor financeiro parece menos inclinado a emprestar para desenvolver produtos úteis e empresas. Prefere reempacotar a dívida de outros (como nas obrigações respaldas por hipotecas) e vendê-las à investidores crédulos. Os bancos de investimento são responsáveis pela massiva proliferação do crédito e da dívida que agora estão destruindo a classe média e arruinando o país?

É o que está acontecendo. Mas uma causa importante de que a poupança vá parar nesses bancos é que as leis tributárias tornam mais rentável esse endividamento do que o investimento em capital industrial. O sistema tributário formou um mercado em que compensa mais especular do que investir na formação de novos meios de produção. O setor financeiro foi desregulamentado, segundo a lógica de que o que gera mais dinheiro é sempre o mais eficiente. O produto que estão vendendo os bancos é dívida, e ajuda a tomar o controle de empresas, ajuda as fusões e aquisições. O crédito é um produto cuja criação sai praticamente de graça. Seu principal custo de produção são os gastos dos lobbies para comprar apoios no Congresso.

MW: Vamos voltar, então, para a política. O que você sabe dos assessores econômicos de Obama? Temos que esperar uma repetição da “Rubinomics” (3) de Clinton, quando Wall Street obteve quase tudo o que pediu, enquanto os trabalhadores norte-americanos recebiam o NAFTA, a desregulamentação monetária, a rejeição da lei Glass Steagall e outras políticas de arrocho? Há alguma esperança de que Obama empreenda um novo curso e vá em uma direção progressista? Que políticas deveria promover Obama para reviver o sonho americano e dar um novo alento à maltratada classe média?

MH: Não estou em situação de dizer o que fará o senhor Obama. No que se refere a assessores econômicos, seu papel em uma campanha política não costuma ser tanto o de definir as políticas, mas o de mobilizar seu pessoal para sustentar economicamente o candidato. O papel do senhor Rubin e seus colegas, pelo menos agora, é, portanto, o de atrair o apoio de Wall Street. Que influência acabarão tendo esses assessores depois do próximo janeiro, ainda está por ver. Vai depender, provavelmente, das circunstâncias.

Uma coisa que se pode esperar é que o senhor Obama vá por um despenhadeiro como o novo trabalhismo de Tony Blair e volte aos rumos da política clintoniana, favorável a Wall Street e hostil ao mundo do trabalho. Se isso ocorresse, poderia causar tal decepção, que a unidade do partido democrata poderia quebrar-se de maneira irreparável.

Eu espero que ocorra o contrário, e faço o que está em minhas mãos para consegui-lo. Mas no que diz respeito a políticos, eu só posso responder pelo meu amigo Dennis Kucinich. Ele me pediu para organizar um conselho de cérebros de cunho rooseveltiano, com assessores econômicos e políticos que desenvolvessem um programa para reindustrializar os EUA e salvar o país de perecer em um processo de polarização que desde do século XVI é conhecido como “Síndrome Espanhola” e que antes era conhecido como “Síndrome de Roma”: uma economia em que os magnatas ricos libertam a si próprios de toda carga tributária, a qual passam para o trabalho e a indústria, e retiram-se para seus latifúndios, enquanto a economia sofre um retrocesso para níveis de mera produção local de subsistência.

Tudo isso já aconteceu, uma e outra vez. Não há nenhuma garantia automática de progresso. É preciso dirigi-lo e orientá-lo. Agora mesmo, o único partido que dirige e orienta é o composto pelas grandes instituições financeiras, que trabalham a favor dos interesses de seus ricos clientes. Dificilmente alguém se surpreenderá de que sua atitude seja hostil ao mundo do trabalho.

Eu acredito que as circunstâncias vão empurrar o senhor Obama a fazer um giro de retorno às políticas fiscais e econômicas mais classicamente progressistas. E neste momento não vejo um candidato que esteja em melhor posição para obrigar o Congresso a acompanhá-lo em suas reformas. Pode sair e apoiar candidatos que se oponham aos congressistas e aos senadores democratas mais recalcitrantes.

MW: No programa “60 minutos” da rede CBS, Alan Greenspan admitiu que apoiou a invasão do Iraque. Não é surpreendente, dada a dificuldade de imaginar que uma nação possa entrar em uma guerra sem o apoio dos manda-chuvas bancários. Que importância têm agora as grandes instituições financeiras e as megacorporações empresariais na determinação da política exterior? É algo endêmico do nosso sistema econômico —ou das nossas instituições financeiras— o que nos empurra para a guerra uma e outra vez?

MH: Não acho que a invasão do Iraque tenha sido resultado de uma decisão do setor financeiro. No que diz respeito ao senhor Greenspan, ele é um especialista em relações públicas, não um estrategista global. Eu acho que o que os bancos fazem é manobrar o melhor possível dentro de qualquer sistema político dado. Mas, como setor, raramente apóiam guerras.

Quando eu trabalhava no Chase Manhattan, em meados dos anos 1960, Wall Street não pressionava a favor da guerra do Vietnã. O presidente do conselho de administração do banco, George Champion, deixou claro que a guerra era fiscalmente irresponsável. Desencadeou uma inflação que levou a um declínio continuado do mercado de bônus durante 35 anos.

Imagine. Trinta e cinco anos, de 1945 a 1980, de aumentos das taxas de juro, que empurravam para baixo os preços dos bônus. Os bônus sempre têm sido a chave, mais do que as ações. O aumento dos tipos de juros significa que o preço dos bônus existentes, de baixas taxas, caem continuamente. E esse foi o resultado do déficit na balança de pagamentos induzido pela guerra e a política de canhões e manteiga do presidente Johnson, estimulada pela teoria econômica-lixo de falsos keynesianos, como Gardner Ackley, o presidente do conselho de assessores econômicos de Johnson.

A moral da história é que você não pode, realmente, ficar agarrado ao império —e às guerras que vão com ele—, e ao mesmo tempo ter uma economia pujante em expansão.

Uma coisa ou a outra, como estamos vendo agora. O que é mais notável é que as pessoas não relacionam a vontade norte-americana de criar um império unipolar com a crescente polarização econômica e o vertiginoso enfraquecimento financeiro a que estamos assistindo. A indústria, por sua vez, está perdendo o pulso com as finanças, e tenta, simplesmente, fazer dinheiro pela via de financeirizar-se ela também.

MW: Paul Harris escreveu um formidável artigo no ano passado no Guardian britânico, “Bem-vindos a Richistão, EUA”, no qual descrevia as gigantescas diferenças de riqueza na América do Norte dos nossos dias. Dizia:

“Os arqui-ricos norte-americanos voltaram aos tempos dos “alegres anos 20”. Enquanto o resto do país luta por seguir adiante, uma enorme bolha de multimilionários vive em um mundo quase paralelo. Os ricos vivem agora em seu próprio mundo de educação privada, saúde privada e mansões amuralhadas. Têm suas próprias escolas e seus próprios bancos. Inclusive viajam separados, o que gera uma pujante indústria de aeronaves e iates privados. Seu mundo tem agora um nome, graças a um novo livro escrito pelo colunista do Wall Street Journal, Robert Frank, que o batizou como Richistão.”

“Em 1985, havia nos EUA apenas 13 bilionários. Agora há mais de 1.000. Em 2005, somaram-se 227.000 novos milionários. Um relatório mostrou que a riqueza de todos os milionários norte-americanos juntos chegava a 30 trilhões de dólares, mais do que a soma do PIB da China, Japão, Brasil e a União Européia. Os ricos criaram agora sua própria economia para satisfazer suas necessidades, em uma época em que os aumentos de salário do trabalhador médio só consegue acompanhar a inflação e em que 36 milhões de seres humanos vivem, nos EUA, abaixo da linha de pobreza.”

Bem, a minha pergunta é a seguinte: a classe média está sendo afetada como nunca antes, enquanto que o vão que separa ricos e pobres fica cada dia mais largo. Você pensa que estamos nos aproximando de uma fase crítica nesse abismo de desigualdade, ou estou sendo alarmista?

MH: Para que ocorra uma crise, são necessárias pelo menos duas forças ou tendências ferozmente opostas. O problema mais grave do presente dilema norte-americano é que não parece haver nenhuma força que se oponha à polarização financeira. Sem uma contraforça, sem uma oposição à contra-ilustração financeira que estamos assistindo, o horizonte econômico vai continuar encolhendo.

Estamos entrando, com efeito, em uma sociedade de duas economias. O (candidato democrata) John Edwards trouxe à tona o assunto com quase as mesmas palavras que o primeiro ministro britânico Benjamin Disraeli popularizou no final do século XIX. Disraeli criou o Partido Conservador Britânico em sua versão moderna pela via de recrutar o grupo de conservadores que ficou conhecido como a Jovem Inglaterra. Clamavam, em grande medida como os socialistas, contra a injustiça da economia de mercado na forma brutal que ela havia adotado na Grã Bretanha. Seu sonho era tornar a industrialização compatível com uma moralidade mais sensível socialmente. O grande adversário ideológico de Disraeli não foi o socialismo, mas o ideário liberal do livre mercado, que instava as nações a competirem entre si pela via de reduzir os salários (o que agora se conhece como a corrida para o abismo). Sua legislação assistencialista culminou no sistema de saúde introduzido entre 1874 e 1881, promovido com o lema: sanitas sanitatum (saúde, tudo é saúde). Compare ele com os conservadores dos nossos dias!

Em 1845, três anos antes do Manifesto Comunista e da revolução que caiu sobre a Europa em 1848, abordou os horrores de um laissez faire sem freio em um romance, Sybil, ou As Duas Nações. O subtítulo fazia referência aos ricos e aos pobres, duas nações entre as quais não há o menor ensejo de trato nem simpatia, duas nações que não são governadas pelas mesmas leis. Apesar de que Disraeli colocava suas esperanças em uma aristocracia moralmente regenerada, não deixou de atribuir os mais elevados ideais a Sybil, a filha de um operário fabril. E quando o protagonista do romance, Egremont, pergunta pelas condições de vida nas cidades britânicas, um jovem estrangeiro, modestamente vestido de preto, explica que, apesar de que “os homens são usados uns junto dos outros, nem por isso deixam de continuar estando em situação de virtual isolamento… nas grandes cidades os homens se reúnem movidos pelo desejo de ganhar a vida. Não estão em um estado de cooperação, mas de isolamento, para fazer fortuna… O cristianismo ensina a amar o nosso próximo como a nós mesmos; a sociedade moderna não reconhece próximo algum. Bem; vivemos em tempos estranhos… talvez a sociedade esteja em sua infância, diz Egremont… mas, diga você o que quiser, nossa Rainha reina sobre a maior nação que jamais existiu. Que nação?, perguntou o jovem estrangeiro, porque ela reina sobre duas nações…

Duas nações entre as quais não há trato nem simpatia; tão ignorante cada uma delas dos hábitos, dos pensamentos e dos sentimentos da outra, como se fossem moradores de zonas diferentes, ou habitantes de planetas diferentes, de pessoas nascidas de linhagens diversas, nutridas com alimentos diferentes, possuindo modos diferentes, e não governadas pelas mesmas leis. Você —disse, vacilante, Egremont— está falando dos ricos e dos pobres.”

Disraeli pintou os interesses financeiros com as cores da vilania (popularizando o mito do banqueiro judeu). Seu grande adversário político, como já foi dito, não foi o socialismo, mas o ideário liberal do livre mercado, que incitava as nações a competirem pela via de baixar os salários. Mas a compaixão econômica do Partido Conservador ficava limitada pelo fato de que era o partido dos latifundiários, principalmente daqueles que na Câmara dos Lordes bloquearam a proposta liberal de fiscalizar a renda da terra, em 1909. A dicotomia não ocorre somente entre uma elite e as massas, ou entre os interesses broquelados e os pisoteados, os cultos e os esfarrapados. É algo muito mais específico.

Essas duas nações, duas cidades, são, realmente, duas economias: a economia 1 (produção e consumo) contra a economia 2 (financeira e baseada na propriedade) que controla o excedente econômico em forma de poupança e investimento. As características diferentes dessas duas economias ultrapassam em muito a mera dimensão econômica. Trago este exemplo para mostrar o que poderia chegar a dar de si um conservadorismo verdadeiramente compassivo. Poderia, quem sabe, constituir um bom marco para que o presidente Obama apresentasse suas políticas de maneira tal que conseguisse atrair o maior apoio possível dos grupos que costumam chamar-se republicanos liberais.

Boa parte da comunidade empresarial poderia subir nesse carro se Obama equilibrar bem o seu programa. De fato, foi um banqueiro britânico conservador, Geoffrey Gardiner, que me chamou a atenção sobre o romance de Disraeli. O Conto das duas cidades, de Charles Dickens, expressava a mesma idéia de cidades divididas entre os ricos ociosos e aqueles que precisavam trabalhar para viver. É difícil imaginar um político escrevendo um romance assim em nossos dias, embora o socialista Michael Harrington tenha popularizado o tema nos anos 1960 com A outra América, e o candidato à vice-presidência democrata, Edwards, fez campanha em 2004 com o tema das duas Américas.

MW: Como podemos reverter esta tendência e pressionar a favor de mudanças que robusteçam a classe média ao mesmo tempo que proporcionam uma rede de segurança para aqueles se caíram devido aos cracks econômicos? Precisamos reconsiderar a forma em que tratamos as pessoas que estão presas a um ciclo demolidor, implacável, de pobreza?

MH: A esquerda costuma centrar-se nas pessoas que caíram devido aos cracks econômicos, os pobres e os sem teto, assim como nas minorias étnicas e raciais. Mas o problema mais grave está no próprio núcleo da economia. Fracassar em sua reestruturação e no controle do setor financeiro trará a exclusão de mais e mais gente do tipo de vida que você chama de classe média.

Quando o Império Romano se polarizou, a economia e seu invólucro político ficaram sem salvação possível. Tudo o que o cristianismo foi capaz de fazer foi proporcionar caridade individualmente. Pôde atuar somente sobre os sintomas, não erradicar as causas. Quando se chega a um ponto em que você só pode atuar sobre pessoas que caíram por causa dos cracks econômicos, o jogo, a longo prazo, está perdido.

O problema é que o sistema econômico como tal está falido. Ou seja, que vamos voltar ao começo desta entrevista: o que vai ser necessário é uma alternativa para a teoria econômica pós-clássica dos Chicago Boys e seus amiguinhos, os lobistas financeiros.

NOTAS

(1) A lei da depletion allowance entrou em vigor em 1913 e permitia que os proprietários de um poço petrolífero tivessem isenção, cada ano, de um 5% do valor do petróleo extraído. A lei foi modificada em 1926, aumentando a isenção para 27,5%. Assim, um proprietário que houvesse investido 100.000 dólares para abrir um poço que extraísse anualmente petróleo por valor de um milhão de dólares, em apenas um ano conseguiria deduções fiscais que praticamente triplicariam o valor do seu investimento inicial.

(2) No léxico da economia financeira, um “esquema Ponzi” é um negócio fraudulento de investimentos consistente em atrair investimentos de dinheiro com promessas de juros muito altos no curto prazo, mas pontualmente cumpridos, o que atrai uma multidão de novos investidores —ou sucessivos reinvestimentos dos antigos—, gerando, assim, um fluxo de dinheiro que permite, durante um tempo, pagar altos juros a curto prazo com o dinheiro que vai entrando em abundância. Charles Ponzi, de quem recebe o nome este truque financeiro, foi um emigrado italiano que se tornou milionário em poucos meses na Boston dos anos 1920 do século passado organizando um negócio fraudulento fundado nesse esquema.

(3) Em alusão a Robert Rubin, o todo-poderoso secretário de economia de Clinton e homem de Wall Street e da banca privada no governo.

Michael Hudson é ex-economista de Wall Street especializado em balança de pagamentos e bens imobiliários no Chase Manhattan Bank (agora JPMorgan Chase & Co.), Artur Anderson e, depois, no Hudson Institute. Em 1990 colaborou no estabelecimento do primeiro fundo soberano de dívida do mundo para Scudder Stevens & Clark. Hudson foi assessor econômico chefe de Dennis Kucinich na campanha primária presidencial democrata e assessorou os governos dos EUA, Canadá, México e Letônia, assim como o Instituto das Nações Unidas para Formação e Pesquisa. Destacado professor e pesquisador na Universidade de Missouri, na cidade de Kansas, é autor de numerosos livros, entre eles “Super Imperialism: The Economic Strategy of American Empire”.

Por Mike Whitney – Sin Permiso.

Tradução para www.sinpermiso.info: Ricardo Timón

Tradução para o português: Naila Freitas / Verso Tradutores

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Risco moral torna atual crise mais profunda e perigosa

Na avaliação do economista Luiz Gonzaga Belluzzo, o que torna a atual crise no sistema financeiro global mais profunda e perigosa é o risco moral. “É a sensação de que, não importa o que se faça, não há perdas, pois, em caso de crise, os bancos centrais vão dar um jeito”, explica.

PORTO ALEGRE – A crise provocada pelo estouro da bolha imobiliária nos Estados Unidos é uma reprodução de crises que assolam o capitalismo desde o século XIX, a partir da criação de um sistema bancário e financeiro, articulado com grandes empresas. Os bancos deixaram de executar apenas a função de financiadores dos soberanos nacionais e passaram a se envolver diretamente com a economia. De lá para cá, essa autonomia da acumulação financeira e a progressiva valorização de capitais fictícios vêm gerando sucessivas crises. A avaliação é do economista Luiz Gonzaga Belluzzo, que falou à Carta Maior sobre a natureza e a gravidade da mais recente crise do sistema financeiro global e sobre os seus possíveis desdobramentos para a economia brasileira. “Se vier uma recessão e, no plano interno, se mantiver a mesma política monetária, o Brasil cometerá um harakiri”, sustenta Belluzzo.

O economista lembra algumas das crises que já atingiram o capitalismo desde que surgiu essa articulação entre sistema financeiro e grandes empresas. Uma das mais famosas é a de 1929, quando o crash da Bolsa de Nova York engendrou um processo de repressão às movimentações financeiras. Nas últimas décadas, a crescente desregulamentação e o aumento vertiginoso da velocidade de integração dos mercados vieram acompanhados de sucessivas crises: a de 1974, em Londres; a longa depressão japonesa a partir de 1987; o ataque à libra 1992-1993; a crise do México, em 1994-1995; a crise da Ásia, em 1998; a crise do Brasil, em 1998-1999; a crise da Rússia, em 1998; a crise da Argentina, em 2002, e, agora, a crise imobiliária, nos EUA.. Nestes eventos, houve uma presença muito rápida dos bancos centrais para conter seus efeitos, ao contrário de outras crises, como a de 1929, quando houve muitas falências e quebras.

O risco moral da crise

O que tornou a crise atual mais profunda e perigosa, na visão de Belluzzo, é o risco moral que ela carrega. Que risco moral? É a sensação de que, não importa o que se faça, não há perdas, pois, em caso de crise, os bancos centrais vão dar um jeito. O economista lembra que cerca de 70% da população dos EUA foi atingida agora, direta ou indiretamente. Esse número inclui aqueles que tomaram crédito para comprar um imóvel e aqueles que usaram o próprio imóvel como um ativo especulativo para comprar algum outro bem.

Além do risco moral, portanto, há o problema do grande universo envolvido nessa crise, um universo que envolve famílias e agentes financeiros. O que ocorreu, diz ainda Belluzzo, é que, com o rebaixamento dos critérios de risco, os agentes financeiros começaram a caçar risco (compradores), oferecendo financiamento para serem pagos em 28 vezes com dois anos de carência.

O que permitiu isso, explica Belluzzo, é que os bancos juntavam esses créditos em um mesmo pacote e vendiam para fundos de pensão, fundos de investimentos. A partir dessas operações, emitiam outros papéis para os hedge funds (fundos altamente especulativos que operam em mercados futuros). Esses fundos já trouxeram lucros extraordinários para investidores internacionais como George Soros. E também estiveram no epicentro de outras crises, como ocorreu com o fundo norte-americano Long Term Capital Management, cuja gestão temerária – para dizer o mínimo – levou o banco central dos EUA, durante a crise russa de 1998, a criar um pool de banqueiros para evitar que o fundo quebrasse e aumentasse o pânico no mercado financeiro mundial.

Essa última operação envolvendo tais fundos, acrescenta o economista, comprometeu, em uma dimensão ainda desconhecida, todo o sistema bancário.

A dimensão global da crise atual, prossegue, é inegável. Bancos da Europa e do Japão compraram esses papéis. “O que me preocupa não são os cadáveres que estão boiando, mas sim os que ainda vão surgir”, diz Belluzzo para ilustrar o diagnóstico de que essa crise ainda vai levar algum tempo para mostrar sua real dimensão. A hipótese mais grave, segundo ele, é um crash de grandes proporções. Mas o risco mais concreto e visível é uma queda do consumo nos EUA, com potencial para afetar toda a economia mundial.

“É uma ilusão achar que a Ásia vai continuar crescendo se isso acontecer”, exemplifica. E para evitar que o pior aconteça, sustenta, os bancos centrais terão que intervir pesadamente, socorrendo não só os agentes financeiros mas também os devedores. Nesta quarta-feira, o Federal Reserve injetou mais US$ 5,2 bilhões no sistema bancário, para reforçar as reservas dos bancos comerciais e evitar a redução de liquidez. Desde 9 de agosto, o Fed já injetou US$ 137 bilhões para garantir a liquidez dos bancos.

A situação das famílias devedoras

Já para os pobres mortais devedores as notícias não são nada animadoras. A crise imobiliária aumentou em 60% o número de famílias despejadas nos EUA, segundo dados da consultoria imobiliária RealtyTrec. Somente entre janeiro e julho deste ano, as ações de despejo atingiram a marca de 1,1 milhão de imóveis. Em julho, esse número explodiu aumentando 93% em relação ao mesmo período do ano passado. Um total de 179.600 famílias inadimplentes foram expulsas de suas casas.

No auge da crise, durante uma coletiva de imprensa na Casa Branca, o presidente George W. Bush, culpou os devedores por terem firmado hipotecas sem saber o que estavam fazendo. Não disse uma palavra em relação às agências de crédito que sabiam que estavam oferecendo empréstimos a pessoas que, provavelmente não poderiam pagá-los. A solução disse Bush, seria um programa de alfabetização financeira para os consumidores. Por outro lado, Bush procurou “acalmar os mercados”, garantindo que o governo estava “injetando dinheiro suficiente” para que “os mercados fizessem suas correções”.

O que pode acontecer no Brasil

Quanto aos desdobramentos da crise para a economia brasileira, Belluzzo acredita que o país está mais protegido do que em crises anteriores, mas não está blindado. Por um lado, o Brasil acumulou reservas e a situação fiscal é quase irrelevante no atual contexto. Por outro, isso não é garantia de ausência de impactos negativos. Ele lembra que, na crise de 1998, cerca de R$ 70 bilhões evaporaram rapidamente. Além disso, tais desdobramentos dependem, em larga medida, da política monetária que o país vai adotar.

“Se a recessão vier, será preciso mudar a atual política monetária, baixando juros e fazendo controle de capitais”, defende. “É uma situação diferente da que ocorreu entre 1998 e 1999, mas o país não está blindado. Se reagir com rapidez, o Brasil pode até sair-se bem, mas se vier um quadro de recessão e a atual política monetária for mantida, o país a cometer harakiri”, conclui.

Por Marco Aurélio Weissheimer – Carta Maior.

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