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Por 15:31 Notícias

PRECONCEITO SEM FIM

Mesmo com nível superior, os negros não escapam do racismo da sociedade brasileira. Por isso, defensores das cotas acreditam que é preciso selecionar estudantes pela cor, não por nível social
Guaíra Índia Flor
Da equipe do Correio
Daniel Alves
Ari foi aprovado com louvor no doutorado da Antropologia da UnB, mas enfrentou dois anos de preconceitos de alguns professores do departamento
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
50% das vagas reservadas para negros e pobres.
A UERJ foi a primeira a implantar o sistema de cotas no Brasi
Universidade de Brasília
– 20% para negros, e um número ainda não definido
para indígenas. O sistema vale a partir de 2004
Universidade do Estado da Bahia
– 20% das vagas para negros e pardos. O critério adotado foi o da autodeclaração
Ele é doutor em Antropologia e trabalha como professor universitário. Recebe um bom salário e tem mais cultura que boa parte dos brasileiros. Mesmo assim, foi convidado a ‘‘ganhar uns trocados’’ ajudando a descarregar um caminhão na porta de um supermercado, na Asa Norte. O fato de Arivaldo de Lima Alves, 37 anos, ser negro não é mera coincidência. No imaginário dos brasileiros, pretos são sempre pobres, sem estudo e subempregados. Isso quando não estão envolvidos com o crime…
Embora o autor da proposta nem tenha percebido, foi racista ao pressupor que Ari — por ser preto — estava desocupado. ‘‘O estereótipo do negro na sociedade brasileira é o pior possível’’, reclama o antropólogo José Jorge de Carvalho, autor do projeto das cotas para negros e índios da Universidade de Brasília (UnB). Nesse contexto, a reserva de vagas não serve apenas para garantir o acesso desses grupos ao ensino superior. Ela ajuda a acabar com preconceitos. A entrada maciça de pretos no mundo acadêmico levará as pessoas a pensar duas vezes antes de deduzir que eles não têm cultura ou emprego. ‘‘É um trabalho quase pedagógico que ensinará a população a encarar o negro como um cidadão e não como um subalterno’’, afirma o antropólogo.
Segunda classe
Todos os dias, milhares de negros sofrem constrangimentos como o de Ari. Tratados como cidadãos de segunda classe, enfrentam formas veladas de preconceito. O ministro Joaquim Benedito, do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, foi barrado pelos porteiros no dia da posse do presidente da Corte, Maurício Corrêa, por ser negro. ‘‘Agindo assim, os brancos desqualificam o negro e diminuem sua auto-estima’’, avalia Ari.
A funcionária pública Giseli Martins, 35, entende bem a estratégia da discriminação. Ela convive com isso desde menina. E o fato de ter um canudo não pôs fim ao problema. Tanto, que já foi destratada dentro do próprio ambiente profissional. Durante reunião da equipe, a administradora de empresas saiu para beber água. Para seu espanto, uma senhora que passava pelo local a confundiu com a copeira. ‘‘Você é a menina da copa? Então serve uma agüinha para gente na sala da direção’’, pediu a mulher.
Histórias como essas servem de bandeira para os defensores das cotas para negros. Segundo eles, a medida tem de ser vinculada, sim, à cor. Somente dessa maneira será possível combater o racismo. ‘‘A reserva de vagas para pobres não resolve a questão do preconceito contra os afrodescentes’’, confirma Edna Rolan, coordenadora de combate à discriminação racial da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) no Brasil. ‘‘O negro sofre preconceito não por falta de dinheiro ou educação, mas pelo simples fato de ser negro.’’
Depoimento – Arivaldo de Lima Alves
‘‘Eu sou prova da necessidade das cotas. Quando olham para mim, as pessoas não vêem uma placa escrita: doutor em Antropologia. Elas vêem que sou negro e, por causa do racismo, me tratam como uma ameaça em potencial. Não como um cidadão. O fato de ter entrado na universidade sem precisar de cotas não serve de argumento contrário à reserva de vagas. Eu só cheguei até aqui porque meus pais queriam que eu estudasse. Eu nunca tive de trabalhar para me sustentar enquanto estava na escola. Mas a maioria dos negros não têm a mesma estrutura que eu tive para lutar por uma vida melhor’’
Falta de oportunidade
A primeira turma das cotas certamente enfrentará resistência na UnB. Haverá quem duvide de sua capacidade intelectual e mérito. Afinal, por que não entram na universidade pelo vestibular comum, como os outros? Sociólogos e antropólogos têm a resposta na ponta da língua: falta de oportunidade. ‘‘A pobreza e a baixa escolaridade dos pretos não são circunstanciais’’, defende Edna Rolan. Para ela, o racismo está assentado em quatro séculos de tráfico e escravidão. Nesse período, o negro era visto como inferior. Depois de liberto, a tradição se perpetuou. ‘‘As cotas são uma maneira de reparar essa injustiça’’, completa.
Os possíveis beneficiados — aparentemente — não se importam com a possibilidade de discriminação. A estudante Giovana Maia, 17 anos, é sucinta: ‘‘O preconceito já existe mesmo. A diferença é que agora vamos tirar proveito dele.’’ O racismo existe no ensino superior, independente das cotas. Prova disso é o ‘‘caso Ari’’.
Antes de se formar doutor com louvor, neste mês, o professor universitário enfrentou uma batalha dentro da UnB. ‘‘Fui vítima de racismo no departamento de Antropologia’’, conta. A história começa em julho de 1998, quando ele é reprovado na disciplina Organização Social e Parentesco. Na ocasião, o docente responsável chamou-o de ‘‘nulidade’’ acadêmica. Indignado, Ari pediu a revisão da nota por três vezes. O caso terminou no Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe) da UnB. Dois anos depois, veio o resultado: a menção não condizia com o trabalho apresentado por Ari. Ele foi aprovado e pôde seguir em frente com o doutorado.
Na Antropologia, a maioria dos acadêmicos se recusa a comentar o episódio. Somente o orientador do jovem — o professor José Jorge — fala abertamente sobre o assunto. Para ele, o aluno foi discriminado. ‘‘Ari era o primeiro doutorando negro do departamento em 25 anos’’, constata. ‘‘É coincidência demais que tenha passado por tudo isso.’’
O doutor que reprovou Ari nunca falou diretamente sobre o fato de ele ser negro. A coordenadora de combate à discriminação racial da Unesco não estranha a via crucis de Ari. Segundo ela, a discriminação contra os negros é mais forte quando ele tem acesso à educação. ‘‘Quando se sente superior, a maioria branca até consegue disfarçar o preconceito. Ela trata bem as empregadas, pedreiros e serventes negros. Desde que fiquem em seu devido lugar.’’ Lidar com esse grupo de igual para igual, no entanto, é mais difícil. (GIF)
Número
64% é a diferença entre os salários de um profissional negro e
de um branco, ambos com nível superior
Memória
Polêmica na Justiça
A questão das cotas para negros no Brasil, de tão controversa, foi parar na Justiça. A Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen) entrou, em março, com uma ação direta de inconstitucionalidade contra a matéria no Supremo Tribunal Federal (STF). No recurso, a entidade argumenta que a reserva de vagas é uma ofensa à igualdade de oportunidades e de raças. No meio jurídico, as opiniões divergem.
Muitos defendem a legalidade da proposta, como o ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Carlos Alberto Reis de Paula. O Brasil ratificou em maio de 1968 convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de preconceito racial. Para o ministro, o texto determina que não serão consideradas discriminação medidas especiais tomadas com o objetivo de assegurar o progresso de certos grupos raciais ou étnicos. As cotas entrariam esse rol. Reis de Paula acredita que a medida corrige uma distorção histórica.
Fonte Correio Braziliense

Por 15:31 Sem categoria

PRECONCEITO SEM FIM

Mesmo com nível superior, os negros não escapam do racismo da sociedade brasileira. Por isso, defensores das cotas acreditam que é preciso selecionar estudantes pela cor, não por nível social

Guaíra Índia Flor
Da equipe do Correio
Daniel Alves

Ari foi aprovado com louvor no doutorado da Antropologia da UnB, mas enfrentou dois anos de preconceitos de alguns professores do departamento

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

50% das vagas reservadas para negros e pobres.
A UERJ foi a primeira a implantar o sistema de cotas no Brasi
Universidade de Brasília

– 20% para negros, e um número ainda não definido
para indígenas. O sistema vale a partir de 2004
Universidade do Estado da Bahia

– 20% das vagas para negros e pardos. O critério adotado foi o da autodeclaração

Ele é doutor em Antropologia e trabalha como professor universitário. Recebe um bom salário e tem mais cultura que boa parte dos brasileiros. Mesmo assim, foi convidado a ‘‘ganhar uns trocados’’ ajudando a descarregar um caminhão na porta de um supermercado, na Asa Norte. O fato de Arivaldo de Lima Alves, 37 anos, ser negro não é mera coincidência. No imaginário dos brasileiros, pretos são sempre pobres, sem estudo e subempregados. Isso quando não estão envolvidos com o crime…

Embora o autor da proposta nem tenha percebido, foi racista ao pressupor que Ari — por ser preto — estava desocupado. ‘‘O estereótipo do negro na sociedade brasileira é o pior possível’’, reclama o antropólogo José Jorge de Carvalho, autor do projeto das cotas para negros e índios da Universidade de Brasília (UnB). Nesse contexto, a reserva de vagas não serve apenas para garantir o acesso desses grupos ao ensino superior. Ela ajuda a acabar com preconceitos. A entrada maciça de pretos no mundo acadêmico levará as pessoas a pensar duas vezes antes de deduzir que eles não têm cultura ou emprego. ‘‘É um trabalho quase pedagógico que ensinará a população a encarar o negro como um cidadão e não como um subalterno’’, afirma o antropólogo.

Segunda classe
Todos os dias, milhares de negros sofrem constrangimentos como o de Ari. Tratados como cidadãos de segunda classe, enfrentam formas veladas de preconceito. O ministro Joaquim Benedito, do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, foi barrado pelos porteiros no dia da posse do presidente da Corte, Maurício Corrêa, por ser negro. ‘‘Agindo assim, os brancos desqualificam o negro e diminuem sua auto-estima’’, avalia Ari.

A funcionária pública Giseli Martins, 35, entende bem a estratégia da discriminação. Ela convive com isso desde menina. E o fato de ter um canudo não pôs fim ao problema. Tanto, que já foi destratada dentro do próprio ambiente profissional. Durante reunião da equipe, a administradora de empresas saiu para beber água. Para seu espanto, uma senhora que passava pelo local a confundiu com a copeira. ‘‘Você é a menina da copa? Então serve uma agüinha para gente na sala da direção’’, pediu a mulher.

Histórias como essas servem de bandeira para os defensores das cotas para negros. Segundo eles, a medida tem de ser vinculada, sim, à cor. Somente dessa maneira será possível combater o racismo. ‘‘A reserva de vagas para pobres não resolve a questão do preconceito contra os afrodescentes’’, confirma Edna Rolan, coordenadora de combate à discriminação racial da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) no Brasil. ‘‘O negro sofre preconceito não por falta de dinheiro ou educação, mas pelo simples fato de ser negro.’’

Depoimento – Arivaldo de Lima Alves

‘‘Eu sou prova da necessidade das cotas. Quando olham para mim, as pessoas não vêem uma placa escrita: doutor em Antropologia. Elas vêem que sou negro e, por causa do racismo, me tratam como uma ameaça em potencial. Não como um cidadão. O fato de ter entrado na universidade sem precisar de cotas não serve de argumento contrário à reserva de vagas. Eu só cheguei até aqui porque meus pais queriam que eu estudasse. Eu nunca tive de trabalhar para me sustentar enquanto estava na escola. Mas a maioria dos negros não têm a mesma estrutura que eu tive para lutar por uma vida melhor’’

Falta de oportunidade

A primeira turma das cotas certamente enfrentará resistência na UnB. Haverá quem duvide de sua capacidade intelectual e mérito. Afinal, por que não entram na universidade pelo vestibular comum, como os outros? Sociólogos e antropólogos têm a resposta na ponta da língua: falta de oportunidade. ‘‘A pobreza e a baixa escolaridade dos pretos não são circunstanciais’’, defende Edna Rolan. Para ela, o racismo está assentado em quatro séculos de tráfico e escravidão. Nesse período, o negro era visto como inferior. Depois de liberto, a tradição se perpetuou. ‘‘As cotas são uma maneira de reparar essa injustiça’’, completa.

Os possíveis beneficiados — aparentemente — não se importam com a possibilidade de discriminação. A estudante Giovana Maia, 17 anos, é sucinta: ‘‘O preconceito já existe mesmo. A diferença é que agora vamos tirar proveito dele.’’ O racismo existe no ensino superior, independente das cotas. Prova disso é o ‘‘caso Ari’’.

Antes de se formar doutor com louvor, neste mês, o professor universitário enfrentou uma batalha dentro da UnB. ‘‘Fui vítima de racismo no departamento de Antropologia’’, conta. A história começa em julho de 1998, quando ele é reprovado na disciplina Organização Social e Parentesco. Na ocasião, o docente responsável chamou-o de ‘‘nulidade’’ acadêmica. Indignado, Ari pediu a revisão da nota por três vezes. O caso terminou no Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe) da UnB. Dois anos depois, veio o resultado: a menção não condizia com o trabalho apresentado por Ari. Ele foi aprovado e pôde seguir em frente com o doutorado.

Na Antropologia, a maioria dos acadêmicos se recusa a comentar o episódio. Somente o orientador do jovem — o professor José Jorge — fala abertamente sobre o assunto. Para ele, o aluno foi discriminado. ‘‘Ari era o primeiro doutorando negro do departamento em 25 anos’’, constata. ‘‘É coincidência demais que tenha passado por tudo isso.’’

O doutor que reprovou Ari nunca falou diretamente sobre o fato de ele ser negro. A coordenadora de combate à discriminação racial da Unesco não estranha a via crucis de Ari. Segundo ela, a discriminação contra os negros é mais forte quando ele tem acesso à educação. ‘‘Quando se sente superior, a maioria branca até consegue disfarçar o preconceito. Ela trata bem as empregadas, pedreiros e serventes negros. Desde que fiquem em seu devido lugar.’’ Lidar com esse grupo de igual para igual, no entanto, é mais difícil. (GIF)

Número
64% é a diferença entre os salários de um profissional negro e
de um branco, ambos com nível superior

Memória
Polêmica na Justiça

A questão das cotas para negros no Brasil, de tão controversa, foi parar na Justiça. A Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen) entrou, em março, com uma ação direta de inconstitucionalidade contra a matéria no Supremo Tribunal Federal (STF). No recurso, a entidade argumenta que a reserva de vagas é uma ofensa à igualdade de oportunidades e de raças. No meio jurídico, as opiniões divergem.

Muitos defendem a legalidade da proposta, como o ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Carlos Alberto Reis de Paula. O Brasil ratificou em maio de 1968 convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de preconceito racial. Para o ministro, o texto determina que não serão consideradas discriminação medidas especiais tomadas com o objetivo de assegurar o progresso de certos grupos raciais ou étnicos. As cotas entrariam esse rol. Reis de Paula acredita que a medida corrige uma distorção histórica.

Fonte Correio Braziliense

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