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As mulheres e a separação das esferas

Joana Maria Pedro (Professora do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina)
A participação das mulheres no espaço público através do direito político de votar e ser eleita, embora consubstanciada, em alguns países, já no final do século XIX e, em outros, somente em meados do século XX, tem ficado restrita apenas ao direito de votar. Poucas mulheres têm-se aventurado neste espaço. Candidatar-se a cargos públicos tem continuado a ser um espaço eminentemente masculino. A luta pela instituição de cotas para as eleições nas instâncias legislativas tem como objetivo, tornar efetiva a participação das mulheres na esfera pública. O artigo de Marta Raquel Zabaleta, traz uma significativa contribuição para a discussão sobre as formas como as mulheres têm participado de maneira secundária da esfera pública, e sobre como as instâncias políticas têm tornado difícil esta participação, reafirmando o privado como o lugar das mulheres.
O artigo de Marta Raquel Zabaleta, O Partido das Mulheres Peronistas: história, característica e conseqüências (Argentina 1947-1955), além de denunciar o limite estreito de opções disponíveis para as mulheres “quando elas se engajam nas atividades formais do partido”, reivindica que estas aprendam a “não delegar sua responsabilidade pela ação política”. De acordo com o artigo, foi isso que ocorreu com a seção feminina do Partido Peronista.
Em 1946, no governo de Juan Perón, a Argentina aprovou a instituição do voto para as mulheres e, em 1949, o Partido Peronista criou uma seção feminina – o Partido das Mulheres Peronistas (PPF). De acordo com a autora, o Partido Peronista desenvolveu uma “reduzida consciência social de gênero entre suas filiadas mulheres”.
Em nosso entender, ao criar uma seção separada para as mulheres o Partido Peronista reeditou uma cartografia que tem sido constante na história das mulheres, no interior da sociedade burguesa ocidental: definir esferas separadas para as atividades de homens e de mulheres. Desta forma, a esfera privada tem sido pensada como o lugar das mulheres, mais especialmente a esfera íntima familiar; e a esfera pública, desenhada como o lugar dos homens, aí incluído o setor público.[1]
Em 1840, no livro de Alexis de Tocqueville, Democracy in America, é descrita a imagem física do círculo e a interpretação deste como a delimitação do espaço feminino circunscrito ao lar. Desde então, esta metáfora tem sido usada, tanto para justificar e enaltecer a presença feminina neste espaço, como para a crítica, reivindicando a eliminação desta separação das esferas de atuação (Kerber, 1988).
De acordo com esta imagem de círculo, a domesticidade, atribuída às mulheres encerradas na esfera privada, vinha acompanhada de virtudes como piedade, pureza e submissão. Assim, além de um lugar definido para as mulheres, atribuíam-se a elas virtudes emanadas deste espaço. Barbara Welter argumenta que as mulheres foram cooptadas por este discurso, pois no lar existe serenidade, “há algo sedativo nos deveres que envolvem o lar. Ele garante segurança não apenas do mundo, mas de ilusões e enganos de todo tipo”. Teria sido, então, com “culpa e confusão” que as mulheres teriam sido envoltas por um estereótipo, o da “verdadeira feminilidade, tão estimulante e ao mesmo tempo tão confinador” (Welter, 1973. p. 224-50).
Convém destacar que esta cooptação destinou-se a algumas mulheres, aquelas das camadas médias em ascensão, e ainda que não é em todo lar que existe a tal segurança – inumeráveis violências são praticadas no “doce lar”. Entretanto, esta imagem do círculo, da esfera separada, e de virtudes ligadas a ela, tornou-se uma figura de linguagem muito poderosa. No artigo de Zabatela, vemos que Juan Perón, em seus discursos, e mesmo Eva Perón, exigiam das mulheres do PPF virtudes ligadas a esta esfera da domesticidade: “calma, obediência, solidariedade e disciplina”.
Esta relação das mulheres com a esfera íntima familiar, e sua exclusão da esfera pública, tem historicidade. Catherine Hall, no texto Sweet Home, mostrou que, na Inglaterra, no início do século XIX, as transformações no comércio promoveram o isolamento gradativo das mulheres na esfera privada. Nas vendas, nas pequenas casas comerciais, as mulheres eram uma presença constante, atendendo à freguesia. Nas grandes casas comerciais e nas atividades do transporte marítimo de grande monta, a presença feminina tornou-se rara, ficando esta, cada vez mais restrita ao espaço doméstico (Hall, 1991: 62-9). Na França, Michelle Perrot (1998: 59-87) mostra-nos como a Revolução Francesa foi excluindo as mulheres das assembléias e do direito à palavra. Política tornou-se uma atividade exclusivamente masculina.
Em trabalhos anteriores, pude constatar em Florianópolis (SC), na segunda metade do século XIX, esta mesma separação sendo construída. Enquanto o comércio era familiar, pequeno, nele trabalhava toda a família, incluindo-se a esposa e as filhas. Quando o comércio tornava-se maior, eram construídas casas de dois pavimentos. As mulheres e filhas ficavam no segundo pavimento, onde se localizava o lar. Os homens e filhos ficavam no andar de baixo – no comércio[2]. Pode-se afirmar que é a sociedade urbana e burguesa que transforma o lar em lugar do ócio masculino (Kerber, 1988), no “descanso do guerreiro”.
Por outro lado, foi também pensando no lar como uma esfera feminina, que muitas feministas do século XIX reivindicaram a educação para as mulheres. Esta educação deveria tornar as mães mais capacitadas para a formação de seus filhos. A própria campanha pelo voto nem sempre questionou o dito “lugar das mulheres”. Foi, ainda, com base na existência desta esfera separada que as feministas da década de setenta justificaram a constituição de uma irmandade das mulheres. O pressuposto era de que, por terem permanecido nesta esfera separada, as mulheres teriam mantido um afastamento do mundo da violência e da competição, sendo, por isso, mais capazes de sensibilidade e de solidariedade, entre elas mesmas e com as outras pessoas (Pedro, 1994: 31). A reivindicação da construção de “casas para mulheres” teve este tipo de justificativa, ou seja, a recuperação de uma cultura de mulheres que teria sido preservada pela delimitação de suas vidas na esfera privada.
O que se percebe é, como já afirmamos, que a metáfora das esferas separadas tem sido usada, tanto para definir espaços limitadores, como para reivindicar e constituir direitos e proteção. De um lado, não podemos desconsiderar que, embora a criação da ala feminina do Partido Peronista (PPF) tenha reeditado a separação das esferas e exigido das mulheres virtudes ligadas à domesticidade, por outro as afastou, mesmo que de forma temporária, da “pia, das crianças e do preservativo” – como bem pontuou Zabaleta – e ainda, levou para dentro dos lares a discussão política. Havia um grande empenho em tornar todos os membros da família adeptos do peronismo.
No final dos anos setenta, e especialmente nos anos oitenta e noventa, surgiram inúmeros estudos que questionaram esta metáfora das esferas separadas, desnaturalizando-as. Estes mostram como a sociedade tem realizado esforços para a constituição das esferas e para sua manutenção[3]. Mesmo assim, nas relações cotidianas, a responsabilidade das mulheres pelo espaço doméstico continua sendo mantida; aí, os homens apenas “ajudam”. Por outro lado, por mais que trabalhem e recebam salários, atuando no mercado ou no setor público, considera-se que as mulheres mais ajudam que trabalham. Mulheres fisicamente exaustas são visualizadas como se não estivessem trabalhando ou, então, que aquilo que fazem é “trabalho leve”.[4]
Além disso, muitas profissões mais rendosas e prestigiadas, assumidas pelas mulheres – professoras, enfermeiras, modistas, etc., têm sido consideradas femininas por serem extensões de suas atividades no lar. Entretanto, foi através de algumas destas profissões que muitas mulheres ganharam destaque na esfera pública; eram professoras, por exemplo, as principais sufragistas. A educação, neste caso, pode ser pensada com um capital simbólico – como o passaporte para assuntos públicos. Foi desta forma, através da profissão de professoras, que muitas mulheres tiveram participação política, candidatando-se, inclusive, a cargos públicos (Sarlo, 199 :174-179).
Nos anos 80, inaugurou-se uma nova forma de fazer política, fora dos setores tradicionais ligados aos partidos políticos. Constituíram-se naquilo que passou a ser chamado de novos movimentos sociais. Muitos, dentre os chamados novos personagens que entravam em cena[5], eram mulheres. Assim, um novo ator social formado, principalmente, por mulheres dos setores médios e populares, emergiu no interior de lutas pelos mais elementares direitos individuais, sendo estes violentados, muitas vezes, pelas ditaduras que se espalhavam pela América Latina (Schmukler, 1995: 136-155).
Convém destacar que diversas reivindicações destes movimentos foram feitas em nome dos papéis familiares desempenhados pelas mulheres na esfera privada. Ou seja, eram como mães, esposas e donas de casa que as mulheres reivindicavam creche, postos de saúde, moradia, etc. O canal político de reivindicação foi, por sua vez, constituído fora das instâncias políticas normativas dos partidos. Havia uma certa desconfiança de amplos setores da população, em relação aos canais institucionais de reivindicação e às instituições do regime democrático formal. Passou a ser considerado uma perda de tempo participar das discussões partidárias e dos espaços formais do Estado (Idem, 139-140).
Foi a partir destes movimentos, que novas lideranças políticas femininas se apresentaram. Elas reivindicavam a autoridade da experiência. Estas mulheres transformaram assuntos privados em debates e intervenções públicas, e, em suas ações, faziam valer as funções familiares tradicionais, transformando paixões e virtudes privadas em base para a ação política (Sarlo, 188-192). Estas atividades, embora reeditassem referências ao espaço privado de forma tão tradicional, embaralham as esferas pública e privada, dando fluidez aos seus limites.
A participação das mulheres por diferentes modos na esfera pública, além de representar interferência num espaço costumeiramente dominado pelos homens, traz para o espaço privado a exigência de negociações e institui, desta forma, novas relações entre os gêneros. Beatriz Schmukler mostra como as mulheres que atuam nos movimentos sociais agem no sentido de enfrentar o autoritarismo dos maridos e pais, e como estas atitudes aumentam-lhes a auto-estima e modificam as relações (Schmukler, 145-148).
Algumas destas líderes de movimentos sociais tem sido eleitas para cargos no setor público; no entanto, muitas delas não se autodenominam feministas. Schmukler argumenta que se observa inicialmente, nestas mulheres, uma tomada de consciência de suas questões de classe, de suas carências materiais, e somente depois, em algumas organizações, é que se iniciaram as discussões sobre serem oprimidas como mulheres (Schmukler, 150). Zabaleta também percebeu esta configuração entre as mulheres argentinas, especialmente na eleição de 1951; nesta, as mulheres votaram “mais pelo sentido da classe” do que pelo de gênero.
Muitas destas mulheres têm enfrentado com dificuldade os espaços institucionalizados dos partidos políticos. No processo de filtragem (Araújo, 1998:85) realizado pelos partidos, as mulheres, por sua própria trajetória de gênero, não têm se sentido muito confortáveis. Entretanto, a própria redução de muitos partidos políticos à sua função de representação eleitoral tem fornecido espaço para a expansão dos movimentos sociais e para a atuação de organizações não governamentais. Este contexto tem, também, favorecido o destaque político de muitos destes personagens que se destacam nestes movimentos (Schmukler, 148).
No Brasil, apesar de o voto feminino ter sido instituído já em 1932, a participação política das mulheres tem sido muito restrita. No ano de 1998, em plena vigência da política de cotas, somente 7% das representações da Câmara Federal foi ocupado por mulheres. Os partidos políticos, por sua vez, tiveram sérias dificuldades para preencher as cotas: de um total de 100.000 vagas para candidatas mulheres, os partidos apenas conseguiram preencher 60.000 (Araújo, 71-90).
Esta dificuldade de ocupação de espaços no setor público, por parte das mulheres, não se restringe somente ao Brasil ou à América Latina. Michelle Perrot fala-nos da dificuldade das mulheres em, após a instituição do voto feminino na França, em 1944, tornarem-se oradoras. As mulheres que se atrevem a falar nas assembléias políticas tornam-se alvo de muitos olhares. Tornam-se objeto de “exame em que predominam o irônico e o vulgar.” (Perrot, 1994: 129)
Este desconforto com as instituições da esfera pública tem relações diretas com a metáfora da esfera separada desenhada por Alex de Toqueville em 1840, e tem sido reforçado constantemente. A persistência de relações de gênero desfavoráveis para as mulheres tem mantido muito fortes os limites entre as esferas pública e privada. Isto tem provocado a necessidade da instituição das cotas, e as dificuldades para preenchê-las.
Em seu artigo, Zabaleta mostra-nos como este separatismo das esferas foi reinventado pelo governo peronista, através da criação do Partido das Mulheres Peronistas. Aí, as mulheres dedicaram-se aos setores de saúde e educação, como extensão de seus papéis familiares. Elas eram chamadas ao partido não como cidadãs, mas como donas de casa, mães, esposas, filhas, noivas, amadas, etc. Era justamente destes papéis instituídos por hierarquizadas relações de gênero, que as mulheres falavam em política. Foi desta forma que se mantiveram em separado, delegando sua ação política nos momentos mais cruciais.
Necessitamos de muitas mulheres atuando na política, das mais variadas formas e sem medo de falar no espaço público. Neste sentido, a política das cotas pode nos ajudar a conseguir isso. Estes exemplos são importantes para que as mulheres, cada vez mais, se aventurem por este caminho, e o vejam como um lugar que também lhes pertence, e não somente uma esfera de homens. Então, talvez, não precisemos mais reivindicar a instituição de cotas.
Referências Bibliográficas
ARAÚJO, Clara. Mulheres e representação política: a experiência das cotas no Brasil. Estudos Feministas. IFCS/UFRJ, v. 6, nº 1: 85, 1998.
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Tradução por Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
HALL, Catherine. Sweet Home. In: PERROT, Michelle et al. História da vida privada. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. v.4.
KERBER, Linda K. Separate spheres, female worlds, woman’s place: the rethoric of women’s history. The Journal of American History. V. 75, n. 1; jun. 1988.
PAULILO, Maria Ignez. O peso do trabalho leve. Ciência Hoje. Rio de Janeiro, v.5, n. 28: 64-70, 1987.
PEDRO, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1994.
PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. Trad. São Paulo: Unesp, 1998, p.59-87. Pedro, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1994. p.31.
SARLO, Beatriz. Mulheres, História e Ideologia. In: Paisagens Imaginárias: intelectuais, arte e meios de comunicação. São Paulo: Edusp, 199 .
SCHMUKLER, Beatriz. Las mujeres en la democratización social. Estudos Feministas. IFCS/UFRJ-PPCIS/UERJ, v. 3, n. 1: 136-155, 1995.
WELTER, Barbara. The cult of true womanhood: 1820-1860. In: Gordon, Michael (ed.). American Family in Social-historical Perspective. New York: Saint Martin Press, 1973.[6]
[1]A terminologia é utilizada por Habermas, 1984.
[2] Pedro, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1994. p.31.
[3] O artigo de Linda Kerber apresenta inúmeros estudos que têm questionado a naturalidade das esferas.
[4] Sobre a atribuição de leveza aos trabalhos realizados por mulheres, ver Paulilo, 1987.
[5] Sader, Eder. Quando novos personagens entraram em cena – experiência e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo 1979-1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
O trabalho deve ser fonte de satisfação para o trabalhador e para a sociedade.É preciso dar um basta nas doenças ocupacionais e nos acidentes de trabalho em geral.Só a prevenção pode evitar, mas os que já tem os problemas, devem ser tratados com dignidade e respeito, conforme garantido pela legislação.
Fonte: Rede de Informações sobre saúde do trabalhador

Por 15:29 Sem categoria

As mulheres e a separação das esferas

Joana Maria Pedro (Professora do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina)

A participação das mulheres no espaço público através do direito político de votar e ser eleita, embora consubstanciada, em alguns países, já no final do século XIX e, em outros, somente em meados do século XX, tem ficado restrita apenas ao direito de votar. Poucas mulheres têm-se aventurado neste espaço. Candidatar-se a cargos públicos tem continuado a ser um espaço eminentemente masculino. A luta pela instituição de cotas para as eleições nas instâncias legislativas tem como objetivo, tornar efetiva a participação das mulheres na esfera pública. O artigo de Marta Raquel Zabaleta, traz uma significativa contribuição para a discussão sobre as formas como as mulheres têm participado de maneira secundária da esfera pública, e sobre como as instâncias políticas têm tornado difícil esta participação, reafirmando o privado como o lugar das mulheres.

O artigo de Marta Raquel Zabaleta, O Partido das Mulheres Peronistas: história, característica e conseqüências (Argentina 1947-1955), além de denunciar o limite estreito de opções disponíveis para as mulheres “quando elas se engajam nas atividades formais do partido”, reivindica que estas aprendam a “não delegar sua responsabilidade pela ação política”. De acordo com o artigo, foi isso que ocorreu com a seção feminina do Partido Peronista.

Em 1946, no governo de Juan Perón, a Argentina aprovou a instituição do voto para as mulheres e, em 1949, o Partido Peronista criou uma seção feminina – o Partido das Mulheres Peronistas (PPF). De acordo com a autora, o Partido Peronista desenvolveu uma “reduzida consciência social de gênero entre suas filiadas mulheres”.

Em nosso entender, ao criar uma seção separada para as mulheres o Partido Peronista reeditou uma cartografia que tem sido constante na história das mulheres, no interior da sociedade burguesa ocidental: definir esferas separadas para as atividades de homens e de mulheres. Desta forma, a esfera privada tem sido pensada como o lugar das mulheres, mais especialmente a esfera íntima familiar; e a esfera pública, desenhada como o lugar dos homens, aí incluído o setor público.[1]

Em 1840, no livro de Alexis de Tocqueville, Democracy in America, é descrita a imagem física do círculo e a interpretação deste como a delimitação do espaço feminino circunscrito ao lar. Desde então, esta metáfora tem sido usada, tanto para justificar e enaltecer a presença feminina neste espaço, como para a crítica, reivindicando a eliminação desta separação das esferas de atuação (Kerber, 1988).

De acordo com esta imagem de círculo, a domesticidade, atribuída às mulheres encerradas na esfera privada, vinha acompanhada de virtudes como piedade, pureza e submissão. Assim, além de um lugar definido para as mulheres, atribuíam-se a elas virtudes emanadas deste espaço. Barbara Welter argumenta que as mulheres foram cooptadas por este discurso, pois no lar existe serenidade, “há algo sedativo nos deveres que envolvem o lar. Ele garante segurança não apenas do mundo, mas de ilusões e enganos de todo tipo”. Teria sido, então, com “culpa e confusão” que as mulheres teriam sido envoltas por um estereótipo, o da “verdadeira feminilidade, tão estimulante e ao mesmo tempo tão confinador” (Welter, 1973. p. 224-50).

Convém destacar que esta cooptação destinou-se a algumas mulheres, aquelas das camadas médias em ascensão, e ainda que não é em todo lar que existe a tal segurança – inumeráveis violências são praticadas no “doce lar”. Entretanto, esta imagem do círculo, da esfera separada, e de virtudes ligadas a ela, tornou-se uma figura de linguagem muito poderosa. No artigo de Zabatela, vemos que Juan Perón, em seus discursos, e mesmo Eva Perón, exigiam das mulheres do PPF virtudes ligadas a esta esfera da domesticidade: “calma, obediência, solidariedade e disciplina”.

Esta relação das mulheres com a esfera íntima familiar, e sua exclusão da esfera pública, tem historicidade. Catherine Hall, no texto Sweet Home, mostrou que, na Inglaterra, no início do século XIX, as transformações no comércio promoveram o isolamento gradativo das mulheres na esfera privada. Nas vendas, nas pequenas casas comerciais, as mulheres eram uma presença constante, atendendo à freguesia. Nas grandes casas comerciais e nas atividades do transporte marítimo de grande monta, a presença feminina tornou-se rara, ficando esta, cada vez mais restrita ao espaço doméstico (Hall, 1991: 62-9). Na França, Michelle Perrot (1998: 59-87) mostra-nos como a Revolução Francesa foi excluindo as mulheres das assembléias e do direito à palavra. Política tornou-se uma atividade exclusivamente masculina.

Em trabalhos anteriores, pude constatar em Florianópolis (SC), na segunda metade do século XIX, esta mesma separação sendo construída. Enquanto o comércio era familiar, pequeno, nele trabalhava toda a família, incluindo-se a esposa e as filhas. Quando o comércio tornava-se maior, eram construídas casas de dois pavimentos. As mulheres e filhas ficavam no segundo pavimento, onde se localizava o lar. Os homens e filhos ficavam no andar de baixo – no comércio[2]. Pode-se afirmar que é a sociedade urbana e burguesa que transforma o lar em lugar do ócio masculino (Kerber, 1988), no “descanso do guerreiro”.

Por outro lado, foi também pensando no lar como uma esfera feminina, que muitas feministas do século XIX reivindicaram a educação para as mulheres. Esta educação deveria tornar as mães mais capacitadas para a formação de seus filhos. A própria campanha pelo voto nem sempre questionou o dito “lugar das mulheres”. Foi, ainda, com base na existência desta esfera separada que as feministas da década de setenta justificaram a constituição de uma irmandade das mulheres. O pressuposto era de que, por terem permanecido nesta esfera separada, as mulheres teriam mantido um afastamento do mundo da violência e da competição, sendo, por isso, mais capazes de sensibilidade e de solidariedade, entre elas mesmas e com as outras pessoas (Pedro, 1994: 31). A reivindicação da construção de “casas para mulheres” teve este tipo de justificativa, ou seja, a recuperação de uma cultura de mulheres que teria sido preservada pela delimitação de suas vidas na esfera privada.

O que se percebe é, como já afirmamos, que a metáfora das esferas separadas tem sido usada, tanto para definir espaços limitadores, como para reivindicar e constituir direitos e proteção. De um lado, não podemos desconsiderar que, embora a criação da ala feminina do Partido Peronista (PPF) tenha reeditado a separação das esferas e exigido das mulheres virtudes ligadas à domesticidade, por outro as afastou, mesmo que de forma temporária, da “pia, das crianças e do preservativo” – como bem pontuou Zabaleta – e ainda, levou para dentro dos lares a discussão política. Havia um grande empenho em tornar todos os membros da família adeptos do peronismo.

No final dos anos setenta, e especialmente nos anos oitenta e noventa, surgiram inúmeros estudos que questionaram esta metáfora das esferas separadas, desnaturalizando-as. Estes mostram como a sociedade tem realizado esforços para a constituição das esferas e para sua manutenção[3]. Mesmo assim, nas relações cotidianas, a responsabilidade das mulheres pelo espaço doméstico continua sendo mantida; aí, os homens apenas “ajudam”. Por outro lado, por mais que trabalhem e recebam salários, atuando no mercado ou no setor público, considera-se que as mulheres mais ajudam que trabalham. Mulheres fisicamente exaustas são visualizadas como se não estivessem trabalhando ou, então, que aquilo que fazem é “trabalho leve”.[4]

Além disso, muitas profissões mais rendosas e prestigiadas, assumidas pelas mulheres – professoras, enfermeiras, modistas, etc., têm sido consideradas femininas por serem extensões de suas atividades no lar. Entretanto, foi através de algumas destas profissões que muitas mulheres ganharam destaque na esfera pública; eram professoras, por exemplo, as principais sufragistas. A educação, neste caso, pode ser pensada com um capital simbólico – como o passaporte para assuntos públicos. Foi desta forma, através da profissão de professoras, que muitas mulheres tiveram participação política, candidatando-se, inclusive, a cargos públicos (Sarlo, 199 :174-179).

Nos anos 80, inaugurou-se uma nova forma de fazer política, fora dos setores tradicionais ligados aos partidos políticos. Constituíram-se naquilo que passou a ser chamado de novos movimentos sociais. Muitos, dentre os chamados novos personagens que entravam em cena[5], eram mulheres. Assim, um novo ator social formado, principalmente, por mulheres dos setores médios e populares, emergiu no interior de lutas pelos mais elementares direitos individuais, sendo estes violentados, muitas vezes, pelas ditaduras que se espalhavam pela América Latina (Schmukler, 1995: 136-155).

Convém destacar que diversas reivindicações destes movimentos foram feitas em nome dos papéis familiares desempenhados pelas mulheres na esfera privada. Ou seja, eram como mães, esposas e donas de casa que as mulheres reivindicavam creche, postos de saúde, moradia, etc. O canal político de reivindicação foi, por sua vez, constituído fora das instâncias políticas normativas dos partidos. Havia uma certa desconfiança de amplos setores da população, em relação aos canais institucionais de reivindicação e às instituições do regime democrático formal. Passou a ser considerado uma perda de tempo participar das discussões partidárias e dos espaços formais do Estado (Idem, 139-140).

Foi a partir destes movimentos, que novas lideranças políticas femininas se apresentaram. Elas reivindicavam a autoridade da experiência. Estas mulheres transformaram assuntos privados em debates e intervenções públicas, e, em suas ações, faziam valer as funções familiares tradicionais, transformando paixões e virtudes privadas em base para a ação política (Sarlo, 188-192). Estas atividades, embora reeditassem referências ao espaço privado de forma tão tradicional, embaralham as esferas pública e privada, dando fluidez aos seus limites.

A participação das mulheres por diferentes modos na esfera pública, além de representar interferência num espaço costumeiramente dominado pelos homens, traz para o espaço privado a exigência de negociações e institui, desta forma, novas relações entre os gêneros. Beatriz Schmukler mostra como as mulheres que atuam nos movimentos sociais agem no sentido de enfrentar o autoritarismo dos maridos e pais, e como estas atitudes aumentam-lhes a auto-estima e modificam as relações (Schmukler, 145-148).

Algumas destas líderes de movimentos sociais tem sido eleitas para cargos no setor público; no entanto, muitas delas não se autodenominam feministas. Schmukler argumenta que se observa inicialmente, nestas mulheres, uma tomada de consciência de suas questões de classe, de suas carências materiais, e somente depois, em algumas organizações, é que se iniciaram as discussões sobre serem oprimidas como mulheres (Schmukler, 150). Zabaleta também percebeu esta configuração entre as mulheres argentinas, especialmente na eleição de 1951; nesta, as mulheres votaram “mais pelo sentido da classe” do que pelo de gênero.

Muitas destas mulheres têm enfrentado com dificuldade os espaços institucionalizados dos partidos políticos. No processo de filtragem (Araújo, 1998:85) realizado pelos partidos, as mulheres, por sua própria trajetória de gênero, não têm se sentido muito confortáveis. Entretanto, a própria redução de muitos partidos políticos à sua função de representação eleitoral tem fornecido espaço para a expansão dos movimentos sociais e para a atuação de organizações não governamentais. Este contexto tem, também, favorecido o destaque político de muitos destes personagens que se destacam nestes movimentos (Schmukler, 148).

No Brasil, apesar de o voto feminino ter sido instituído já em 1932, a participação política das mulheres tem sido muito restrita. No ano de 1998, em plena vigência da política de cotas, somente 7% das representações da Câmara Federal foi ocupado por mulheres. Os partidos políticos, por sua vez, tiveram sérias dificuldades para preencher as cotas: de um total de 100.000 vagas para candidatas mulheres, os partidos apenas conseguiram preencher 60.000 (Araújo, 71-90).

Esta dificuldade de ocupação de espaços no setor público, por parte das mulheres, não se restringe somente ao Brasil ou à América Latina. Michelle Perrot fala-nos da dificuldade das mulheres em, após a instituição do voto feminino na França, em 1944, tornarem-se oradoras. As mulheres que se atrevem a falar nas assembléias políticas tornam-se alvo de muitos olhares. Tornam-se objeto de “exame em que predominam o irônico e o vulgar.” (Perrot, 1994: 129)

Este desconforto com as instituições da esfera pública tem relações diretas com a metáfora da esfera separada desenhada por Alex de Toqueville em 1840, e tem sido reforçado constantemente. A persistência de relações de gênero desfavoráveis para as mulheres tem mantido muito fortes os limites entre as esferas pública e privada. Isto tem provocado a necessidade da instituição das cotas, e as dificuldades para preenchê-las.

Em seu artigo, Zabaleta mostra-nos como este separatismo das esferas foi reinventado pelo governo peronista, através da criação do Partido das Mulheres Peronistas. Aí, as mulheres dedicaram-se aos setores de saúde e educação, como extensão de seus papéis familiares. Elas eram chamadas ao partido não como cidadãs, mas como donas de casa, mães, esposas, filhas, noivas, amadas, etc. Era justamente destes papéis instituídos por hierarquizadas relações de gênero, que as mulheres falavam em política. Foi desta forma que se mantiveram em separado, delegando sua ação política nos momentos mais cruciais.

Necessitamos de muitas mulheres atuando na política, das mais variadas formas e sem medo de falar no espaço público. Neste sentido, a política das cotas pode nos ajudar a conseguir isso. Estes exemplos são importantes para que as mulheres, cada vez mais, se aventurem por este caminho, e o vejam como um lugar que também lhes pertence, e não somente uma esfera de homens. Então, talvez, não precisemos mais reivindicar a instituição de cotas.

Referências Bibliográficas
ARAÚJO, Clara. Mulheres e representação política: a experiência das cotas no Brasil. Estudos Feministas. IFCS/UFRJ, v. 6, nº 1: 85, 1998.

HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Tradução por Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

HALL, Catherine. Sweet Home. In: PERROT, Michelle et al. História da vida privada. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. v.4.

KERBER, Linda K. Separate spheres, female worlds, woman’s place: the rethoric of women’s history. The Journal of American History. V. 75, n. 1; jun. 1988.

PAULILO, Maria Ignez. O peso do trabalho leve. Ciência Hoje. Rio de Janeiro, v.5, n. 28: 64-70, 1987.

PEDRO, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1994.

PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. Trad. São Paulo: Unesp, 1998, p.59-87. Pedro, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1994. p.31.

SARLO, Beatriz. Mulheres, História e Ideologia. In: Paisagens Imaginárias: intelectuais, arte e meios de comunicação. São Paulo: Edusp, 199 .

SCHMUKLER, Beatriz. Las mujeres en la democratización social. Estudos Feministas. IFCS/UFRJ-PPCIS/UERJ, v. 3, n. 1: 136-155, 1995.

WELTER, Barbara. The cult of true womanhood: 1820-1860. In: Gordon, Michael (ed.). American Family in Social-historical Perspective. New York: Saint Martin Press, 1973.[6]

[1]A terminologia é utilizada por Habermas, 1984.
[2] Pedro, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1994. p.31.
[3] O artigo de Linda Kerber apresenta inúmeros estudos que têm questionado a naturalidade das esferas.
[4] Sobre a atribuição de leveza aos trabalhos realizados por mulheres, ver Paulilo, 1987.
[5] Sader, Eder. Quando novos personagens entraram em cena – experiência e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo 1979-1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

O trabalho deve ser fonte de satisfação para o trabalhador e para a sociedade.É preciso dar um basta nas doenças ocupacionais e nos acidentes de trabalho em geral.Só a prevenção pode evitar, mas os que já tem os problemas, devem ser tratados com dignidade e respeito, conforme garantido pela legislação.

Fonte: Rede de Informações sobre saúde do trabalhador

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