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Maria da Penha, a sobrevivente

Brasileiras heroínas, sonhadoras essas meninas, mostram suas competências !

Adaptada a uma cadeira de rodas, a biofarmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, 60 anos,  carrega a marca mais visível e indelével da violência doméstica.


“Uma violência que é reconhecida como manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres e que, praticada no âmbito doméstico e familiar, esconde uma de suas faces mais perversas”, como escreveram Beatriz Affonso e Valéria Pandjiarjian, cientista política e advogada, respectivamente, no prefácio do livro Sobrevivi…posso contar. Nele Maria da Penha relata a agressão praticada em 1983, por seu então marido, economista e professor universitário Marco Heredia Viveros, em Fortaleza, Ceará.

Depois de contumazes perseguições, durante seis anos, o colombiano Heredia Viveros disparou um tiro de espingarda em Maria da Penha, durante a simulação de um assalto à casa do casal. O tiro saiu pela culatra, ela sobreviveu. De acordo com o relato do livro e matérias de jornais, Maria da Penha escapou de outro atentado do marido. Ele tentou eletrocutá-la no chuveiro da suíte da residência em que viviam o casal e as três filhas.

Denunciado à polícia pela esposa, o casal se separou e o marido foi levado a dois julgamentos. Condenado a 15 anos de prisão, cumpriu dois em regime fechado e está solto. O caso inspirou a criação da Lei 11.340 (Lei Maria da Penha), sancionada pelo presidente Lula, em 7 de agosto de 2007, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do Artigo 226, parágrafo 8º, da Constituição Federal. O caso rolou por 19 anos na Justiça. Por conta de denúncia de Maria da Penha à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), o Brasil foi condenado como país violador dos direitos humanos e instado a criar mecanismos de proteção aos direitos da mulher.No dia 23 de fevereiro, Maria da Penha falou para a edição especial do Bancário dedicada ao Dia Internacional da Mulher.

Bancário – Qual a importância da Lei Maria da Penha para a senhora?

Maria da Penha – A importância é de garantir um futuro sem violência, porque nenhuma mulher está livre de casar com uma pessoa que depois a desrespeite, nenhuma mulher está livre disso. Então, nós, dessa geração que já vivemos a violência na pele, que conquistamos essa lei, precisamos trabalhar para que a ela seja implementada totalmente. A sociedade precisa conhecer a importância da lei.

A Lei Maria da Penha não foi criada para punir os homens, mas para proteger as mulheres.

Bancário – A senhora quase morreu com aquele tiro. Foi de Fortaleza para Brasília para se tratar. Como foi a sua fase de recuperação, a superação, a fisioterapia, a necessidade de dar um conforto para as suas filhas que ficaram no Ceará com o pai agressor?

Maria da Penha – Eu superei porque vi que consegui ficar viva. Eu acho que apesar das  experiências que vivi, consegui sobreviver. Eu agradeço e agradeci a Deus todos os dias pelas minhas filhas estarem salvas da violência. Naqueles dias no hospital, eu sofri demais por saber que não tinha condições de tirá-las da violência. Eu tentei, mas não pude. No meu caso chegou-se até a uma tentativa de assassinato. Mas Deus protegeu minhas filhas e me deixou viver. Eu nunca me permiti esquecer desse fato, que eu estava viva porque eu queria estar, por causa delas.

Bancário – E como a senhora acha que elas se sentiam? Elas tinham medo de estar com o pai, de estar na presença dele? Numa passagem do livro há o relato que a sua filha mais velha ia de noite para o seu quarto, deitava na sua cama e saía de manhã cedinho, só para ter a sensação de que estava protegendo a senhora, de estar ajudando. A senhora acha que todas as três, bem pequenas, se sentiam assim, tinham esse desejo de estar protegendo?

Maria da Penha – Todas, todas. Elas sofreram muito durante a minha ausência, no período de hospitalização. Eu pensava que ele (Marco Heredia, o marido) talvez tivesse minimizado sua conduta violenta, porque elas estavam separadas de mim, mas quando eu cheguei e vi o estado em que elas estavam, percebi que ele estava muito dono da situação. Ninguém queria contestar, porque quem poderia contestar era eu, e eu estava ausente.  Até mesmo na volta a Fortaleza, na hora da chegada, foi complicado, foi muito difícil.

Muito difícil mesmo. A dor de encontrá-las naquele estado foi muito grande, de saber que eu não pude fazer nada.

Bancário – Os números da violência doméstica contra a mulher são alarmantes. A violência aumentou mesmo, ou houve aumento dos registros porque as vítimas criaram coragem para denuncar, por causa da Lei Maria da Penha?

Maria da Penha – Não, nós ainda vamos ser surpreendidos quando tivermos a lei devidamente implementada em todos os municípios. As pessoas vão ter a coragem de realmente denunciar, nós vamos ser surpreendidos com o alto índice de violência que vai ser constatado. Essas denúncias aumentaram nas cidades onde existe uma delegacia da mulher, onde existe a informação para as mulheres daquele município, onde existem um centro de referência, um juizado. Infelizmente ainda são poucas essas instituições que fazem parte da lei. A lei não pode funcionar só com uma delegacia. Elas têm que ter um centro de referência, para que a mulher que tem medo de denunciar possa chegar e se inteirar sobre os seus direitos, e que consiga se informar sobre o que pode ser feito. A lei precisa ter um local onde essas mulheres possam ser abrigadas, onde possam ficar. A Casa Abrigue é um local sigiloso, onde só as pessoas que trabalham têm conhecimento de onde fica. As mulheres e seus filhos que estão abrigadas lá são levadas para um hospital, para escolas, para tratamentos médicos, no transporte da Casa Abrigue, de uma maneira descaracterizada, para que não exista a possibilidade de se descobrir onde elas estão.

Bancário – Com a Dilma na Presidência, a senhora acha que pode melhorar a luta em geral contra a violência?

Maria da Penha – É uma bandeira sobre os direitos humanos que o governo Lula levantou e que ela, com certeza, vai seguir. Eu acho que ela vai continuar com esse programa. Tenho esperanças que ela faça até mais do que o governo Lula por ele ter sancionado a lei. Uma legislação muita nova precisa de uma adaptação que a gente não sabe por onde passa. A questão é capacitar as pessoas envolvidas, os policiais, o Executivo inclusive. Os operadores do direito têm que estar atentos a essa lei, que veio exatamente contra a cultura do machismo da sociedade. A sociedade também tem que estar atenta para que a lei seja implementada. Existe dificuldade para que isso aconteça por causa dessa cultura machista do operador do direito. A formação dos bons costumes na universidade diz que é normal o homem ser o dono da casa, ser o chefe da casa. Isto tem que ser desconstruído, porque o lar é um local onde se preza o bem comum, o bem do casal, e a gente quer passar uma cultura de paz no país.

Bancário – Como a senhora encara as reações adversas à Lei Maria da Penha, que, vira e mexe, surgem no Congresso e fora dele, no meio acadêmico, entre advogados?

Maria da Penha – Eu acho que infelizmente a gente vai ter que conviver com essas reações adversas, porque quem trabalha com a lei não são só os jovens trabalhadores do direito, essa academia machista e por isso eles se posicionam contra. É por isso que esses jovens têm que estar atentos a essa necessidade, como estavam atentos para derrubar muitas coisas.

Bancário – Como a senhora acha que vai ser implantada a Lei Maria da Penha pelo interior, principlamente entre os pobres, porque é nesse segmento que ocorrem  os maiores índices de violência?

Maria da Penha –  Acho o seguinte: o Legislativo, Executivo e Judiciário têm o poder de acabar, ou, pelo menos, diminuir a violência doméstica. A gente pode até tentar acabar, mas não consegue. Acho que o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) é uma instituição que está presente em todos os municípios, por menor que ele seja. Os poderes deveriam  estar informando, esclarecendo aquela pequena sociedade sobre os direitos das mulheres. Assim como quem não cumpre o seu dever de votar é punido, eles também têm que saber que a convivência familiar é baseada no respeito, e que o homem que agride uma mulher deve  ser punido.

Bancário – Como a senhora vê o combate ao enraizamento do machismo na sociedade para acabar com a violência doméstica contra a mulher?

Maria da Penha – Quando a nossa denúncia chegou à OEA (Organização dos Estados Americanos) o Brasil foi condenado internacionalmente e foi obrigado a mudar as leis. A OEA fez várias recomendações, uma das quais foi fazer mudanças legislativas para acabar com a  impunidade dos agressores. Outra recomendação foi trabalhar a questão da violência de gênero através da educação desde o curso mais elementar. Isto é uma política pública que o Estado tem que implementar em todas as suas escolas, para que todos aprendam a ler e a respeitar o próximo.

Bancário – A mídia registrou recentemente que, no Nordeste, está  desenvolvendo um hábito entre os jovens, de os namorados, independentemente de gênero, estabelecerem domínios uns sobre os outros mediante a violência. Como a senhora vê essa noção de propriedade de pessoa sobre pessoa?

Maria da Penha – Mas até agora o que se ensinou em casa foi isso. Esses jovens vivenciam essa violência dentro de casa, aprenderam a violência dentro de casa. Veem o pai bater na mãe e ela aceitar. Eles estão reproduzindo o que aprenderam. Têm que ser educados desde novos, para perceberem o que está errado dentro da casa dele. A criança é muito sábia. A partir do que é ensinado na escola a criança sabe perceber o que está errado. Com relação ao trânsito, a criança ensina aos mais velhos também. Na ecologia e tudo mais. Quanto mais se fala disso, mais a gente tem que informar, respeitar. Hoje, a gente está, na verdade, conscientizando uma geração mais para frente para que, daqui a dez, quinze anos, a gente não veja mais isso.

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O vento leste do feminismo

Um sopro de vento percorreu o saguão da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, onde, na tarde de 3 de dezembro de 2007, foi velado o corpo da parlamentar, jornalista, escritora e ativista Heloneida Studart.

Três anos antes da eleição da primeira mulher para a Presidência da República, o Brasil perdeu uma militante que sempre agiu a descoberto, cabeça erguida no espaço das intempéries, desdenhando, com um humor desconcertante, os que a ela se opunham nas diversas frentes em que combateu.

O feminismo de Heloneida, como ação política concreta, englobava teoria, prática e ética, tomando a mulher como sujeito histórico de transformação da sua própria condição social. Sabia que a luta pela emancipação feminina, e pela afirmação de todos seus direitos à igualdade com o homem, é uma das grandes causas de nossa época. Ao abraçá-la, rejeitou falácias e equívocos que tendem, na prática, a produzir desvirtuamentos e atrasos. Não atribuiu graus de prioridade às diferentes lutas por uma sociedade mais justa. Se por um lado a dominação do homem sobre a mulher não é uma criação do capitalismo, nem resulta da divisão da sociedade em classes, o ideal socialista só pode ser qualificado de genuíno e real à medida que proponha a libertação do conjunto social.

A divisão igualitária das posições de poder e prestígio, da cultura e da produção, assim como a distribuição equitativa das tarefas, tanto na vida social como no âmbito doméstico, entre homens e mulheres, é um objetivo que requer tenacidade e desassombro, duas características que nunca faltaram a essa cearense, mãe de seis filhos e cozinheira de mão cheia.

Helô, como gostava de ser chamada pelos amigos, sabia apreender dialeticamente à luta das mulheres nos países periféricos. Seria um equívoco completo afirmar que todas as militantes que, na América Latina e na África, lutam por seus direitos tenham como meta final a construção do socialismo. Mas é possível afirmar que a maioria delas se constitui como sujeitos históricos relevantes, a partir de movimentos sociais e políticos, que levantam plataformas de luta e programas de trabalho questionadores do status quo, postulando a criação de uma sociedade baseada na igualdade e na justiça social.

Com seu fino senso de humor, a militante incansável registrava, em ensaio publicado no Livro da Cabeceira da Mulher (Civilização Brasileira, 1975): “Não há movimento sério que não tenha suas alas radicais. São militantes que não só desconhecem a realidade, como encampam idéias que apenas servem para expressar suas neuroses […] o que elas querem é que as mulheres mudem seus hormônios, abram mão de suas leis biológicas ditadas por suas glândulas. Ou seja: que lancem fora a lei física que lhes deu útero, vagina, seios e a par disso o impulso profundo em direção ao macho. Querem não uma mudança política, mas uma mudança de metabolismo.” Definitivamente, Heloneida nunca calou divergências para evitar confrontos.

Sua lucidez a levava a compreender o feminismo como parte de uma transformação geral no mundo inteiro, em que a libertação das mulheres diz respeito à libertação dos homens em geral. É um processo molecular, atravessado por avanços e recuos, mas que se configura com força cada vez maior.

A participação das mulheres no primeiro escalão do governo da presidente Dilma pode ser creditada à luta de ativistas como Heloneida. Ambas, embora com perspectivas distintas, partilham a mesma poética do espaço. Em algum ponto de equilíbrio, o vento leste do saguão sopra no Palácio do Planalto. Dilma e a doce cearense finalmente se encontraram.

Por Gilson Caroni Filho, que é sociólogo, mestre em ciências políticas e professor titular de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha).

NOTÍCIA E ARTIGO COLHIDOS NO SÍTIO www.bancariosrio.org.br

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