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As vantagens da luta popular

As manifestações massivas do povo brasileiro continuam reverberando das formas as mais contraditórias. Há setores de esquerda, por exemplo, que não entendem que, em várias sociedades em desenvolvimento e atrasadas, em que conseguiram vencer eleições, as dificuldades para realizar reformas democráticas, tanto no sentido político, quanto econômico e social, tendem a ser resolvidas principalmente através de mobilizações sociais. No caso brasileiro, não levam em conta as dificuldades que os governos Lula e Dilma enfrentaram, e enfrentam, para aumentar a participação do povo nos organismos de poder e, ao mesmo tempo, reformar a infraestrutura, direcionar investimentos para a indústria e para a agricultura e realizar uma distribuição de renda menos desigual através de mecanismos estatais de transferência.

 

Subestimam o fato de que, em algumas dessas sociedades, os anos de chumbo ditatoriais e neoliberais deixaram como herança exércitos populacionais de reserva como forças de trabalho sem condições escolares e profissionais para ingressarem no novo mercado de trabalho. Em outras palavras, doaram aos governos que os substituíram massas de milhões de pessoas vivendo numa situação que alguns chamam de subproletariado, outros de ralé, e ainda outros de lumpenproletariado, precariado ou simplesmente excluídos. Assim, mesmo nos países em que o Estado voltou a atuar no sentido de fazer com que a industrialização reassuma importância diretora, não tem bastado melhorar alguns indicadores econômicos e sociais para que a luta de classes se amaine e a estabilidade política se estabeleça.

 

A situação criada pela falência do neoliberalismo, pela exportação de capitais e pela circulação destruidora dos capitais financeiros nem sempre consegue ser contrabalançada por políticas de transferência de renda, de crescimento econômico, de aumento da classe trabalhadora empregada na indústria, no comércio e nos serviços e de aumento dos padrões de vida da classe média.

 

Primeiro, porque tais políticas enfrentam uma resistência feroz dos setores monopolistas e financeiros da burguesia. Segundo, porque a dimensão dos problemas a serem resolvidos é de tal ordem que nem sempre os governos, mesmo dirigidos por correntes de esquerda, conseguem definir estratégias e táticas que conformem uma forte base social e política popular de apoio.

 

Nessas condições, a luta de classes tende a se aguçar, seja num diapasão surdo, seja em movimentos abertos. Em vários casos, tanto setores sociais trabalhadores quanto setores médios da população, mesmo politicamente atrasados, têm se lançado à batalha porque chegaram ao limite de sua paciência. Na Tunísia, ao tomarem conhecimento de que um vendedor ambulante se imolou ao ser proibido de continuar comerciando para sobreviver. No Egito e no Iêmen, por não possuírem sequer o direito de procurar emprego e de expressar livremente suas reivindicações. Na Grécia e em Portugal, ao descobrirem que haviam caído num conto de vigário alemão, que destruiu sua capacidade produtiva, os tornou dependentes das importações e os obriga a pagar uma dívida impagável com o sacrifício dos empregos, das aposentadorias e dos serviços públicos.

 

Na Turquia, ao tomarem conhecimento de que o governo autorizou a destruição de uma praça tradicional e arborizada para construir um mega empreendimento. Na Bolívia e no Equador, ao se confrontarem com a necessidade de explorarem recursos naturais para obter recursos para o desenvolvimento. Na Argentina, ao não concordarem com o controle do câmbio e outras medidas de controle econômico. E, no Brasil, ao se cansarem do aumento abusivo indexado dos transportes públicos e ao não concordarem com as prioridades de investimentos públicos em estádios esportivos.

 

Os gatilhos são diversos e, na maior parte das vezes, mascaram problemas e reivindicações mais profundos. Mas são a condição preliminar e básica para qualquer mobilização massiva e para qualquer rebelião ou revolução popular. Porém, não a única. A outra condição é que as classes dominantes e seu Estado não tenham mais condições de reprimir o movimento social pela força, ou de fazer concessões para dividi-lo e esvaziá-lo, e/ou ainda de reciclar-se para manter sua hegemonia ou seu domínio.

 

Essas classes e seu Estado podem não ter condições de eliminar a mobilização social pela força, como ocorreu na Tunísia e no Egito, e parece estar acontecendo na Turquia. Podem não ter condições de dividir e esvaziar tal mobilização com concessões, como em geral está acontecendo na Grécia e em Portugal. Mas podem ter condições de reciclar-se para manter sua hegemonia ou domínio, como conseguiram fazer diante de várias das mobilizações iniciadas em 2011.

 

No Brasil e naqueles países em que a esquerda é parte do governo, ou seja, faz parte do próprio Estado que pretende democratizar, a situação é muito peculiar. Se seus partidos tiverem capilaridade social suficiente para captar as mudanças nos sentimentos e ressentimentos das grandes massas, e para prever com certo grau de certeza as explosões sociais, eles podem se incorporar com mais vigor às mobilizações massivas. Com isso, tanto por dentro quanto por fora, podem pressionar as classes dominantes e o Estado a não reprimirem o movimento social.

 

Depois, podem obrigá-los a fazerem concessões substanciais, sem que consigam dividir o movimento social. Com isso, podem reduzir a hegemonia da burguesia sobre o Estado, ao mesmo tempo em que podem rebalizar as estratégias e as táticas do governo que dirigem, a partir das demandas das grandes massas mobilizadas.

 

Nas presentes manifestações no Brasil, a esquerda nos governos federal, estaduais e municipais demorou a demonstrar sua diferenciação em relação aos governos conservadores. E embora muitos petistas e socialistas tenham se incorporado às manifestações, os partidos de esquerda que estão no governo não só foram apanhados de surpresa, apesar dos repetidos alertas a respeito, como foram incapazes de declarar imediatamente seu apoio às mobilizações sociais e se incorporarem publicamente a elas.

 

Apesar disso, as vantagens das grandes lutas populares, mesmo quando só conseguem expressar contra o que se levantam, é que elas mudam a conjuntura, colocam as correntes políticas diante de desafios até então impensáveis e impõem reajustamentos estratégicos e táticos a todas elas. Foi no bojo de lutas como as atuais que o PT se impôs como alternativa política no declínio da ditadura. E agora, entre todos os partidos existentes, é ele que está na berlinda. Mesmo porque a disputa pela hegemonia sobre esses novos movimentos sociais tende a se acirrar, com a mudança de postura do partido da grande mídia e dos partidos e governos neoliberais.

 

Tudo indica que essa disputa vai se polarizar em torno das políticas de desenvolvimento econômico e social e de democratização da sociedade. Ou os partidos de esquerda, dentro e fora do governo federal, se unem numa frente comum para calibrar suas políticas, superar as resistências liberais dentro do próprio governo e atrair o centro político para atender à insatisfação social, ou serão atropelados pela oposição neoliberal. As vantagens da mobilização social, entre outras coisas, consistem em que colocaram tais problemas na ordem do dia.

Wladimir Pomar é escritor e analista político.

Artigo colhido no sítio http://www.correiocidadania.com.br

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O povo voltou às ruas, Lamu!

Lamu é o nome que estou dando a uma cambada da cientistas políticos e associados que saíram à liça para criticar, por todos os lados, o retorno das manifestações populares. Para Lamu, essas manifestações seriam obra de grupos radicais de esquerda, de fora e de dentro do PT. E não seriam compatíveis com a democracia, por ficarem protestando difusa e romanticamente por questões econômicas, quando haveria outros assuntos mais importantes a tratar. Os reajustes dos ônibus teriam sido inferiores à inflação e, se houvesse insatisfação com os governos, os líderes das manifestações deveriam ter convocado a população para reclamar, em Brasília, dos preços dos alimentos.

 

Não contente em desqualificar as manifestações por supostos assuntos menores, Lamu se esforçou por desmerecer os próprios manifestantes. Seriam pessoas irritadas, procurando extravasar suas frustrações. Seriam baderneiros, prontos para depredar, espancar e realizar enfrentamentos. E seriam os quase invisíveis radicais de esquerda, sempre prontos a colocar gasolina, ou vinagre, no fogo, sem qualquer pauta sensata de reivindicações. Portanto, não passariam de pequenos grupos, cuja ação de quebra-quebra os levaria rapidamente ao fim, não só pela firme e correta ação policial, mas também pela falta de apoio popular.

 

Pobre Lamu, que viu ruir todas as suas análises científicas no dia 17 de junho, quando as manifestações em quase todo o país reuniram dezenas de milhares de manifestantes, demonstrando sua insatisfação. O povo voltou às ruas, Lamu, ao chamado do Movimento Passe Livre (MPL), não só para apoiar a reivindicação de revogação dos reajustes das tarifas de transportes urbanos, mas também para expressar sua oposição ao custo de vida, às prioridades dos investimentos e ao autoritarismo dos governos, que querem impor travas às reivindicações e manifestações populares.

 

Manifestações populares, em ruas e praças, são um direito reconquistado especialmente nas lutas contra a ditadura militar, no movimento das Diretas Já!, nas greves operárias do ABC e nas passeatas pela anistia política e contra o custo de vida, nos anos 1970 e 1980. São conquistas democráticas, totalmente compatíveis com a democracia. Como compatível com a democracia é o direito de grupos, de esquerda, radicais ou não, de convocarem tais manifestações. Incompatível com a democracia, embora faça parte do aprendizado popular para saber tratar com esses fatos, é a ação secreta de policiais e provocadores, para promover quebra-quebras, e das tropas de choque, para realizar confrontos e reprimir violentamente os manifestantes, como aconteceu em várias capitais.

 

Insatisfações populares, Lamu, sempre se materializam, inicialmente, em pequenas manifestações, tomando como ponto de partida um ou alguns aspectos da vida popular que mais incomodam. Conservadores e reacionários, como você, acham um absurdo essa espontaneidade popular que, no mais das vezes, tem a juventude, em especial a estudantil, como porta-bandeira. Como expressam, também em geral, a insatisfação de grandes massas da população, têm a capacidade de superar as repressões e provocações que procuram criminalizar as manifestações, mobilizando grandes multidões não só pelos aspectos inicialmente apresentados, mas também pelo conjunto dos problemas que afligem as outras camadas populares.

 

Ao contrário do que proclamam os governos, os reajustes dos preços dos transportes são uma herança indexada dos anos 1990, cujo acumulado nos últimos anos é muito superior à inflação. É, portanto, uma aberração que sufoca tanto aos estudantes, que reivindicam passe livre, quanto a milhões de trabalhadores, para os quais um aumento de 20 centavos pode representar a gota d’água que arromba seus parcos rendimentos. Mas você, Lamu, que só anda em carro próprio e não conhece o sacrifício de viajar em transportes lotados e pouco seguros, não pode entender isso. Acha-a difusa e romântica, e é incapaz de enxergá-la como a ponta do iceberg do custo de vida.

 

Custo de vida que não se prende aos aumentos sazonais dos alimentos agrícolas e industriais, em parte causados pela crescente falta de apoio à agricultura familiar, responsável por mais de 80% de todos os alimentos que o povo consome. Num enorme descompasso com o financiamento do agronegócio, a agricultura familiar vem definhando e sendo expropriada pelas grandes lavouras de commodities, o que se reflete em preços altos nas feiras e supermercados. Custo de vida que se reflete também nos preços de monopólio praticados pelas corporações industriais que produzem bens de consumo corrente. Na falta de concorrência, essas corporações tornaram os preços brasileiros um dos mais altos do mundo. Se se agregar os juros praticados no mercado, pode-se ter uma ideia do tamanho do bode que a maior parte das famílias brasileiras tem em sua sala.

 

Essas milhões de famílias, muitas das quais se beneficiaram com as políticas de elevação do salário mínimo, de crescimento do emprego e de transferência de renda para propiciar educação e saúde, também começaram a se dar conta das disparidades existentes nos investimentos. A rapidez dos investimentos em praças esportivas, para atender aos compromissos com as Copas de Futebol e as Olimpíadas, é flagrante. Como flagrante é a lerdeza dos investimentos em saneamento básico, na construção de moradias, na reforma e construção de ferrovias, portos e aeroportos, na melhoria dos transportes urbanos, na instalação de novas plantas fabris que mantenham o ritmo de criação de empregos, e na reestruturação da educação e da saúde.

 

Os governos podem até alegar que os novos estádios e instalações esportivas geraram emprego e renda para boa parte da população, como até Lamu reconhece. Mas cada um dos demais investimentos necessários para o Brasil sair da quebradeira herdada dos governos neoliberais também pode gerar o mesmo volume de emprego e renda, com a vantagem de que seus benefícios à população serão superiores. Em outras palavras, as manifestações estão chamando a atenção dos governos para o fato de que querem discutir as prioridades dos investimentos, o que Lamu considera um absurdo, incompatível com sua noção de democracia, segundo a qual essa é uma missão delegada pelas eleições, e não um direito romântico.

 

Nessas condições, se o governo federal se ressentia da falta de uma mobilização social massiva para avançar mais rapidamente nos planos de desenvolvimento, agora tem o dever de reconhecer como democráticas e legitimas as manifestações e as reivindicações populares. Ele precisará tomá-las como ponto de partida, e apelar a seu apoio, para desindexar a economia, tomar a sério o apoio estratégico à agricultura familiar, redirecionar investimentos para reestruturar a indústria de bens de consumo corrente e agilizar os investimentos em infraestrutura. Ou seja, agir prioritariamente naqueles setores capazes de reduzir o custo de vida, e criar novos mecanismos de diálogo com a população em luta.

 

Ao voltar às ruas, o povo está criando uma nova conjuntura social e política, favorável à democracia e ao desenvolvimento econômico, social e ambiental. Para desespero de Lamu e de todos os que não suportam cheiro de povo.

Wladimir Pomar é escritor e analista político.

Artigo colhido no sítio http://www.correiocidadania.com.br

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