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Na Espanha, ‘okupações’ públicas questionam especulação e falta de acesso à cultura

Okupar para transformar: apesar de investidas do governo, espaços abandonados em Madrid viram centros sociais com atividades gratuitas para população

Por Juliana Afonso,

De Madri (Espanha), do Opera Mundi

Um senhor de cabelos brancos e bengala empunhada sobe lentamente as escadas. Depois de um longo suspiro, sorri e nos convida a conhecer a oficina de pintura. Na pequena sala, estão à mostra dezenas de telas feitas por ele e por seus alunos, que comparecem às aulas gratuitas nas noites de terça e quinta-feira. “Aqui encontrei um espaço para passar um pouco do meu conhecimento”, diz, orgulhoso.

A oficina de pintura é uma das atividades ofertadas na La Dragona, centro social okupado 

Okupação Patio Maravillas | Foto: Juliana Afonso

autogerido no bairro La Elipa, em Madrid. O espaço funciona em um edifício de quatro andares que servia à administração do cemitério La Almudena. Depois de passar mais de 15 anos abandonado, um grupo decidiu ocupar o local e dar-lhe novo uso. O prédio que antes exibia escombros, hoje oferece à comunidade salas de música, de ginástica, biblioteca, loja gratuita e horta, entre outros espaços.

A Dragona é uma das 20 okupações existentes na capital espanhola, uma das cidades em que o “movimento okupa” está presente de maneira mais contundente. Ao contrário das ocupações de sem-teto, que têm como objetivo a reivindicação de moradia, as okupas culturais buscam transformar espaços abandonados em centros sociais, baseados em princípios como autogestão e horizontalidade. A grafia okupa com “k” é feita exatamente para diferenciar os movimentos.

Com a tomada de espaços abandonados, os grupos também conseguem chamar a atenção para outras questões, como a especulação imobiliária que, por conta do descompasso entre a valorização dos imóveis e a capacidade de arrendamento das pessoas, aumenta a quantidade de construções sem uso. Outro debate importante é a falta de preparo do governo, incapaz de oferecer alternativas culturais e sociais acessíveis à população.

Raízes

O movimento okupa surgiu na Inglaterra no final da década de 1960 com o nome squatter e logo se expandiu para o resto da Europa. A Espanha viveu suas primeiras experiências de okupação duas décadas mais tarde, mas foi em 1989 que nasce o primeiro centro social okupado de Madrid. A partir de então surgem outros espaços autogeridos, alguns deles que resistem até hoje, como o La Casika de Móstoles, na região metropolitana desde 1997, e a Eskalera Karakola, gerido exclusivamente por mulheres desde 1996.

O movimento se expandiu após as históricas ocupações de praças realizadas pelo 15M, movimento dos ‘indignados espanhóis’, em maio de 2011. As assembleias populares que agrupavam milhares de pessoas por todo o país debatiam uma série de reivindicações e propostas de atuação. A okupação de espaços abandonados, além de consistir em uma ação direta contra a especulação imobiliária e em favor da ampliação da oferta de atividades culturais para a comunidade, daria oportunidade aos envolvidos de continuar as discussões. “O 15M foi um momento de despertar de consciências e ajudou a fortalecer as okupações”, afirma Ignácio*, integrante da La Dragona.

No Brasil, a okupação de imóveis abandonados para transformá-los em centros sociais e culturais começou na década de 1990. O movimento ganhou força após as jornadas de junho, em 2013, quando estouraram manifestações populares por todo o país. A aproximação de pessoas com pensamentos políticos afins e desejos de mudanças colocou a pauta na ordem do dia. Na esteira das manifestações, ficaram nacionalmente conhecidas as experiências da Casa Amarela, em São Paulo, do Espaço Comum Luiz Estrela, em Belo Horizonte, e do Ocupe Estelita, em Recife — este último já despejado.

Okupação La Dragona, em Madri

Horizontalidade e autonomia

Ainda que o movimento okupa apresente particularidades em cada país, as práticas de organização são similares. Uma das principais características é o fato de que as decisões acontecem por meio de assembleias horizontais nas quais todas as pessoas têm igual direito de participação. Essa forma de organização busca promover processos democráticos e inclusivos, ainda que lentos e imperfeitos. Também é um traço marcante destes espaços a rejeição a comportamentos homofóbicos, machistas, racistas ou xenófobos.

Outra característica é o fato de que a militância okupa, ao contrário da militância tradicional, não se baseie na realização obrigatória de tarefas: os participantes se responsabilizam por aquilo que têm interesse durante um período de tempo determinado. A organização das atividades oferecidas pelo espaço também se sustenta na autonomia dos seus proponentes. Entre as ofertas estão aulas de língua estrangeira, oficinas de teatro, rodas de conversa e exibição de filmes, por exemplo.

A manutenção financeira dos centros sociais também acontece por meio de doações de gestores e apoiadores. Quando faltam recursos para a realização de projetos ou reformas, os espaços okupados organizam eventos com entrada gratuita – assim como todas as atividades locais. “A nossa política é vender bebidas, comidas e outras coisas, como camisetas e bottons, a preço de custo. Fica a cargo da consciência de cada pessoa dar um pouco mais para ajudar o espaço”, afirma Pilar*, integrante da Quimera de Lavapiés.

Movimento de resistência

Por muito tempo não houve nenhuma lei específica que condenasse a apropriação de espaços abandonados na Espanha. O que ocorria, normalmente, era a abertura de um processo judicial por parte do proprietário do edifício. O processo transcorria a passos lentos até a decisão pelo despejo ou pela cessão de uso. Com a reforma do Código Penal, em 1995, porém, a okupação de edifícios públicos ou privados por terceiros passou a ser considerado um delito, o que acelera o processo de julgamento e permite o despejo dos inquilinos sem aviso prévio.

As okupações se defendem como podem. Prova disso foi a convocação feita pelos responsáveis pelo Patio Maravillas no dia 20 de março, chamando sua rede de apoiadores a se concentrar em frente ao edifício okupado e resistir à execução de uma ordem de despejo. As 9h a rua já estava tomada por mais de 500 pessoas, que se divertiam ao som da música projetada desde as varandas do prédio e resistiam ao frio do último dia de inverno com churros e chocolate quente. O despejo não aconteceu.

Ações de outras naturezas também são comuns. A investida mais recente aconteceu no dia 30 de março, quando a polícia espanhola invadiu as okupações La Quimera de Lavapiés e 13-14 Okupadas, ambas em Madrid, e La Redonda, em Granada, além de vários domicílios em Barcelona, Granada, Madrid e Palencia. Durante a operação foram detidos 15 anarquistas acusados de pertencer a organizações criminosas com fins terroristas, além de outras 25 pessoas por resistiram à invasão domiciliar. “Seu objetivo é infundir medo entre as pessoas que querem se organizar de maneira independente e que, por causa disso, escapam ao controle do estado”, publicaram os responsáveis pela Quimera de Lavapiés, na internet.

Apesar do sem número de obstáculos, o movimento okupa segue firme. “Construir um espaço como esse é muito mais difícil que ficar sentada na frente da televisão. Mas também é muito mais potente. Vi muitas pessoas realizando sonhos aqui dentro”, afirma Maria, sobre os motivos que lhe fazem seguir na resistência.

* nomes fictícios

Fonte: Jornal Brasil de Fato

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