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A LEGALIZAÇÃO DO ABORTO VISTA DO CALEIDOSCÓPIO SOCIAL

Ivone Gebara. Freira, teóloga, escritora e feminista
” Nessa perspectiva, para mim como cristã, defender a descriminação do aborto não significa “negar os tradicionais ensinamentos do Evangelho de Jesus e da Igreja”, mas sim acolhê-los diante do paradoxo de nossa história humana, como uma forma atual de diminuição da violência contra a vida.”
“Minha postura diante da descriminação e legalização do aborto como cidadã, cristã e membro de uma comunidade religiosa é uma forma de denunciar o mal, a violência institucionalizada, os abusos, a hipocrisia que nos envolvem, é uma aposta pela VIDA, é pois uma DEFESA DA VIDA. ”
Na edição de 6 de outubro/93, a revista VEJA publicou uma entrevista minha com o título “O ABORTO NÃO É PECADO”. Apesar de, livremente, ter concedido esta entrevista, quero distinguir aquilo que foi compreensão e redação própria dos jornalistas e minha posição pessoal. A entrevista foi feita de maneira informal em três momentos diferentes, inclusive um telefônico internacional, pois eu me encontrava fora do país. Foi feita por duas profissionais em jornalismo, uma do Norteste e uma do Sudeste do País. Esta entrevista foi em seguida reorganizada por ele/ela e publicada antes da data prevista, sem que eu pudesse rever o texto. Portanto, como qualquer entrevista nestas condições, esta também encerra seus limites e distorções quase inevitáveis. Apesar disso, sei quanto a entrevista fez sucesso e suscitou acaloradas discussões, algumas solidárias, outras contrárias, outras ainda pedindo reparação pública ou retificação de meu pensamento.
Por isso, quero, nesse momento, reafirmar minhas posições, não para que sejam aceitas, mas apenas discutidas nos limites de nossa frágil democracia e liberdade de pensamento. A questão da legalização do aborto desde muitos anos tem sofrido um processo de mutação impressionante, não só na sociedade em geral, mas também na Igreja. Conforme os espelhos e o movimento das pedrinhas coloridas do caleidoscópio social e religioso, assim também se movem os argumentos e posições em torno desta difícil questão que suscitou uma diversidade imensa de argumentos filosóficos, religiosos, psicológicos, políticos e jurídicos, nem sempre com a participação direta das mulheres.
Sou hoje a favor da descriminação e legalização do aborto como uma forma de diminuição de violência contra a vida. Sou também consciente dos limites inerentes a esta posição e das dificuldades legais e outras, decorrentes particularmente do estágio atual da quase falência de nossas instituições públicas.
A vida num bairro de periferia, o contato com o sofrimento de centenas de mulheres, sobretudo pobres vivendo dilaceradas diante de seus problemas pessoais e de sobrevivência, me dá o respaldo suficiente para algumas afirmações que em consciência assumo. Trato da questão mais a partir das mulheres empobrecidas porque elas são as vítimas maior desta trágica situação.
Independente da legalização ou não do aborto, independente dos princípios defesa da vida, independente dos princípios que regem as religiões, o aborto tem sido praticado. É portanto um fato clandestino, público e notório. Segundo cifras difundidas por diversas organizações de saúde, calcula-se anualmente, no Brasil, em milhões os abortos clandestinos, com 10% de mortalidade materna. Tais cifras espantosas são indicadoras de uma problemática social grave que precisa ser regulamentada. É, pois, em primeiro lugar, dever do ESTADO garantir uma ordem e legislar constantemente para que a vida de suas cidadãs e cidadãos seja respeitada. A legalização não significa a afirmação da “Bondade”, da “Inocência”, ou ainda da “Defesa incondicional” e até leviana do aborto como ato, mas apenas a possibilidade de humanizar e dar condições de decência a uma prática que já está sendo feita.
A legalização do aborto é apenas um aspecto, conjunturalmente importante, de um processo mais amplo de luta contra uma sociedade organizada sobre o aborto social de seus filhos e filhas. Uma sociedade que não tem condições objetivas de dar emprego, saúde, moradia e escolas é uma sociedade abortiva. Uma sociedade que obriga as mulheres a escolherem entre a permanência no trabalho ou a interrupção da gravidez é abortiva. Uma sociedade que continua permitindo que se façam testes de gravidez antes de admitir as mulheres em diferentes empregos é abortiva. Uma sociedade que silencia a responsabilidade dos homens e apenas culpabiliza as mulheres, desrespeita seus corpos e sua história, é uma sociedade excludente, sexista e abortiva.
A descriminação e legalização do aborto poderiam nesta lógica até serem consideradas como um comportamento na linha da continuidade da violência institucionalizada, uma espécie de resposta violenta a uma situação violenta. Poderíamos até pensar nisso, se os milhares de abortos e mortes de mulheres não existissem de fato. Como elas são fatos incontestáveis, legislá-los da maneira mais respeitosa possível passa a ser uma forma de diminuir a violência contra as mulheres e a própria sociedade no seu conjunto.
Nessa linha de pensamento, concentrar a “defesa do inocente” apenas no feto, como afirmam algumas pessoas, é uma maneira de encobrir a matança indiscriminada de populações inteiras, diferentemente, mas também igualmente inocentes, quer vítimas de guerras, quer vítimas dos processos econômicos, políticos, militares e culturais vigentes em nossa sociedade. É também, mais uma vez, uma maneira de não denunciar a morte de milhares de mulheres vítimas inocentes de um sistema que aliena seus corpos e as pune impiedosamente, culpabilizando-as e impedindo-as de tomar uma decisão ajustada às suas reais condições. A concentração da culpa do aborto na mulher, a criminalização deste ato é uma forma de velar nossa responsabilidade coletiva e o nosso medo de assumi-la publicamente.
Nessa perspectiva, para mim como cristã, defender a descriminação do aborto não significa “negar os tradicionais ensinamentos do Evangelho de Jesus e da Igreja”, mas sim acolhê-los diante do paradoxo de nossa história humana, como uma forma atual de diminuição da violência contra a vida.
Nem sempre os PRINCÍPIOS cristãos e outros resistem diante dos imperativos da vida concreta, imperativos que nos tornam mais convencidos(as) de que a Lei é para nós humanos(as) e não nós humanos(as) para a Lei; que a Lei deve ajudar
a nossa fraqueza, sobretudo quando a nossa liberdade é esmagada por estruturas injustas que mal permitem a realização de atos livres e plenamente humanos.
Hoje é necessária e urgente a discussão aberta, plural, a busca do consenso a partir do bem comum, a busca da ética de caminhos em defesa de todas as vidas humanas. E, nesse diálogo plural, é responsabilidade do ESTADO na sua inalienável autonomia, chegar a um consenso em vista de uma ordem justa que garanta, através das leis, a vida de suas cidadãs e cidadãos e ponha limites a uma situação caótica provocada pela prática do aborto clandestino.
Minha postura diante da descriminação e legalização do aborto como cidadã, cristã e membro de uma comunidade religiosa é uma forma de denunciar o mal, a violência institucionalizada, os abusos, a hipocrisia que nos envolvem, é uma aposta pela VIDA, é pois uma DEFESA DA VIDA.
Ivone Gebara, Caramagibe (PE), 18 de outubro de 1993.
Fonte: Articulação de Mulheres Brasileiras – AMB

Por 15:17 Sem categoria

A LEGALIZAÇÃO DO ABORTO VISTA DO CALEIDOSCÓPIO SOCIAL

Ivone Gebara. Freira, teóloga, escritora e feminista

” Nessa perspectiva, para mim como cristã, defender a descriminação do aborto não significa “negar os tradicionais ensinamentos do Evangelho de Jesus e da Igreja”, mas sim acolhê-los diante do paradoxo de nossa história humana, como uma forma atual de diminuição da violência contra a vida.”
“Minha postura diante da descriminação e legalização do aborto como cidadã, cristã e membro de uma comunidade religiosa é uma forma de denunciar o mal, a violência institucionalizada, os abusos, a hipocrisia que nos envolvem, é uma aposta pela VIDA, é pois uma DEFESA DA VIDA. ”

Na edição de 6 de outubro/93, a revista VEJA publicou uma entrevista minha com o título “O ABORTO NÃO É PECADO”. Apesar de, livremente, ter concedido esta entrevista, quero distinguir aquilo que foi compreensão e redação própria dos jornalistas e minha posição pessoal. A entrevista foi feita de maneira informal em três momentos diferentes, inclusive um telefônico internacional, pois eu me encontrava fora do país. Foi feita por duas profissionais em jornalismo, uma do Norteste e uma do Sudeste do País. Esta entrevista foi em seguida reorganizada por ele/ela e publicada antes da data prevista, sem que eu pudesse rever o texto. Portanto, como qualquer entrevista nestas condições, esta também encerra seus limites e distorções quase inevitáveis. Apesar disso, sei quanto a entrevista fez sucesso e suscitou acaloradas discussões, algumas solidárias, outras contrárias, outras ainda pedindo reparação pública ou retificação de meu pensamento.
Por isso, quero, nesse momento, reafirmar minhas posições, não para que sejam aceitas, mas apenas discutidas nos limites de nossa frágil democracia e liberdade de pensamento. A questão da legalização do aborto desde muitos anos tem sofrido um processo de mutação impressionante, não só na sociedade em geral, mas também na Igreja. Conforme os espelhos e o movimento das pedrinhas coloridas do caleidoscópio social e religioso, assim também se movem os argumentos e posições em torno desta difícil questão que suscitou uma diversidade imensa de argumentos filosóficos, religiosos, psicológicos, políticos e jurídicos, nem sempre com a participação direta das mulheres.
Sou hoje a favor da descriminação e legalização do aborto como uma forma de diminuição de violência contra a vida. Sou também consciente dos limites inerentes a esta posição e das dificuldades legais e outras, decorrentes particularmente do estágio atual da quase falência de nossas instituições públicas.
A vida num bairro de periferia, o contato com o sofrimento de centenas de mulheres, sobretudo pobres vivendo dilaceradas diante de seus problemas pessoais e de sobrevivência, me dá o respaldo suficiente para algumas afirmações que em consciência assumo. Trato da questão mais a partir das mulheres empobrecidas porque elas são as vítimas maior desta trágica situação.

Independente da legalização ou não do aborto, independente dos princípios defesa da vida, independente dos princípios que regem as religiões, o aborto tem sido praticado. É portanto um fato clandestino, público e notório. Segundo cifras difundidas por diversas organizações de saúde, calcula-se anualmente, no Brasil, em milhões os abortos clandestinos, com 10% de mortalidade materna. Tais cifras espantosas são indicadoras de uma problemática social grave que precisa ser regulamentada. É, pois, em primeiro lugar, dever do ESTADO garantir uma ordem e legislar constantemente para que a vida de suas cidadãs e cidadãos seja respeitada. A legalização não significa a afirmação da “Bondade”, da “Inocência”, ou ainda da “Defesa incondicional” e até leviana do aborto como ato, mas apenas a possibilidade de humanizar e dar condições de decência a uma prática que já está sendo feita.
A legalização do aborto é apenas um aspecto, conjunturalmente importante, de um processo mais amplo de luta contra uma sociedade organizada sobre o aborto social de seus filhos e filhas. Uma sociedade que não tem condições objetivas de dar emprego, saúde, moradia e escolas é uma sociedade abortiva. Uma sociedade que obriga as mulheres a escolherem entre a permanência no trabalho ou a interrupção da gravidez é abortiva. Uma sociedade que continua permitindo que se façam testes de gravidez antes de admitir as mulheres em diferentes empregos é abortiva. Uma sociedade que silencia a responsabilidade dos homens e apenas culpabiliza as mulheres, desrespeita seus corpos e sua história, é uma sociedade excludente, sexista e abortiva.
A descriminação e legalização do aborto poderiam nesta lógica até serem consideradas como um comportamento na linha da continuidade da violência institucionalizada, uma espécie de resposta violenta a uma situação violenta. Poderíamos até pensar nisso, se os milhares de abortos e mortes de mulheres não existissem de fato. Como elas são fatos incontestáveis, legislá-los da maneira mais respeitosa possível passa a ser uma forma de diminuir a violência contra as mulheres e a própria sociedade no seu conjunto.
Nessa linha de pensamento, concentrar a “defesa do inocente” apenas no feto, como afirmam algumas pessoas, é uma maneira de encobrir a matança indiscriminada de populações inteiras, diferentemente, mas também igualmente inocentes, quer vítimas de guerras, quer vítimas dos processos econômicos, políticos, militares e culturais vigentes em nossa sociedade. É também, mais uma vez, uma maneira de não denunciar a morte de milhares de mulheres vítimas inocentes de um sistema que aliena seus corpos e as pune impiedosamente, culpabilizando-as e impedindo-as de tomar uma decisão ajustada às suas reais condições. A concentração da culpa do aborto na mulher, a criminalização deste ato é uma forma de velar nossa responsabilidade coletiva e o nosso medo de assumi-la publicamente.
Nessa perspectiva, para mim como cristã, defender a descriminação do aborto não significa “negar os tradicionais ensinamentos do Evangelho de Jesus e da Igreja”, mas sim acolhê-los diante do paradoxo de nossa história humana, como uma forma atual de diminuição da violência contra a vida.
Nem sempre os PRINCÍPIOS cristãos e outros resistem diante dos imperativos da vida concreta, imperativos que nos tornam mais convencidos(as) de que a Lei é para nós humanos(as) e não nós humanos(as) para a Lei; que a Lei deve ajudar
a nossa fraqueza, sobretudo quando a nossa liberdade é esmagada por estruturas injustas que mal permitem a realização de atos livres e plenamente humanos.

Hoje é necessária e urgente a discussão aberta, plural, a busca do consenso a partir do bem comum, a busca da ética de caminhos em defesa de todas as vidas humanas. E, nesse diálogo plural, é responsabilidade do ESTADO na sua inalienável autonomia, chegar a um consenso em vista de uma ordem justa que garanta, através das leis, a vida de suas cidadãs e cidadãos e ponha limites a uma situação caótica provocada pela prática do aborto clandestino.
Minha postura diante da descriminação e legalização do aborto como cidadã, cristã e membro de uma comunidade religiosa é uma forma de denunciar o mal, a violência institucionalizada, os abusos, a hipocrisia que nos envolvem, é uma aposta pela VIDA, é pois uma DEFESA DA VIDA.

Ivone Gebara, Caramagibe (PE), 18 de outubro de 1993.

Fonte: Articulação de Mulheres Brasileiras – AMB

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