Há pouco mais de dez anos, uma poderosa multinacional do setor varejista lançava sua âncora no estado. Ao consumidor, prometia uma nova era de compras fartas, com portas escancaradas de domingo a domingo. Quanto ao poder público municipal, convence-o a liberar o inovador horário alegando ser esse uma fonte inesgotável de emprego e renda. Através de farta comunicação vende a ilusão de que a introdução do trabalho aos domingos no estado representava crescimento econômico em estado bruto e era a cura para todos os males. Da unha encravada ao buraco da camada de ozônio. Na esteira de sua inauguração, os supermercadistas locais viram-se obrigados a fazer do trabalho aos domingos uma questão de fé. Menos por acreditarem que com ele assistiriam ao milagre da multiplicação das vendas e mais por temerem uma concorrência tão inevitável quanto desigual.
Proibido desde 1949, o comércio aos domingos não passava pela cabeça de ninguém até há cerca de 10 anos, quando as ruas ficavam desertas e os comerciários aproveitavam para curtir o descanso, o lazer, a vida em família e a prática religiosa. Em agosto de 1997 tudo muda com a Medida Provisória 1.539, que autoriza o comércio aos domingos e substitui o Decreto 99.467/90, que remetia o tema aos municípios, desde que previamente negociado entre patrões e empregados. Três anos depois, lei 10.101 regulamentaria a MP de 1997.
Hoje, o discurso de que o trabalho aos domingos elevaria as vendas e geraria emprego e renda revelou-se uma farsa montada por empresários do setor de shopping-center e das grandes redes de varejo locais e multinacionais. Ao invés de novos empregos, o trabalho aos domingos ampliou de forma desumana a jornada dos comerciários, justamente para não contratar mais, além de institucionalizar a hora-extra sem remuneração.
O trabalho aos domingos representou a supremacia do poder econômico dos grandes empresários, que ocuparam de forma predatória os espaços antes destinados aos pequenos e médios comerciantes de rua e bairro. A concorrência desleal, aliada ao alto custo de manter em funcionamento um ponto comercial em um dia de movimento insignificante como o domingo, fez com que os “pequenos” – que respondem por mais de 60% dos empregos no setor – sucumbissem à concorrência dos “grandes”, fechando as portas e demitindo em massa.
Na última década, o trabalho aos domingos fez terra arrasada do pequeno e médio comércio capixaba. Açougues, mercearias e peixarias foram fechados às pencas. Os altíssimos custos que envolvem manter uma loja aberta sem a contrapartida em volume de vendas não puderam ser assimilados.
O lucro farto traduziu-se em prejuízo certo por uma questão de hábito: o consumidor capixaba prefere comprar em outros dias da semana ao invés de no domingo. Negócios quebraram. Outros tantos foram comprados. Os que resistiram, mantiveram-se abertos por honra da firma.
O propalado emprego nunca veio – o domingo não aumentou o número de postos de trabalho e sim a jornada e o volume de horas extras realizadas. Contabilizando prejuízos, ao invés de contratar novos comerciários, o comércio local optou que seus empregados trabalhassem por dois.
Em junho, a irresponsável aventura do referido hipermercado mencionado na abertura deste artigo chegava ao fim de forma melancólica. As portas que nunca fechavam amanheceram lacradas. O pleno emprego traduziu-se em centenas de comerciários no olho da rua. O “compromisso público”, sustentado por um esperto e massificante marketing institucional, foi desmascarado por um solene desprezo, sem qualquer comunicado oficial ou satisfação. Um ocaso educativo para a cultura do comércio varejista capixaba por desmascarar a farsa do mito do trabalho aos domingos, sistematicamente denunciada e alertada pelo Sindicato, que nunca poupou esforços para garantir aos trabalhadores o direito de dedicarem seus domingos à família, aos amigos, à religiosidade, ao lazer, ao descanso.
Restrita neste primeiro momento aos trabalhadores de supermercados, a recente Convenção Coletiva conquistada pelo Sindicomerciários/ES finalmente resgata a dignidade perdida por mais de uma década de trabalho sem trégua. Trata-se da primeira conquista desse tipo em todo o país. Uma histórica vitória que vai além dos limites reivindicatórios sindicais e invade o terreno do exercício de cidadania. Resta vencer a resistência de parcela minoritária do empresariado que ainda teima em confundir cidadania com consumismo. Conseguiremos. Afinal, se até Ele descansou, por que trabalhar no domingo?
Nos último anos, a direção do Sindicato dos Comerciários não tem poupado esforços na luta pelo fim do trabalho aos domingos e em defesa da dignidade física, mental, espiritual e emocional do trabalhador, que não pode ser negociada em nome do lucro. Trata-se de um debate que suplanta a discussão sindical ou trabalhista. Mas, uma questão de cidadania e direitos humanos.
Por José Carlos Nunes, que é presidente da CUT-ES e secretário-geral do Sindicato dos Comerciários do Espírito Santo.
ARTIGO COLHIDO NO SÍTIO www.pt.org.br.