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A América Latina vista por nós

Prever o futuro da América Latina nunca foi fácil e o fato de estarmos no início de uma crise global sem precedentes, ante a qual se testam políticas inéditas, não facilita a tarefa. Mas de uma coisa se pode ter certeza: não há como pensar a região sem levar em conta o resto do mundo. Desde que Colombo aqui pôs os pés, esta parte do globo foi mais moldada por forças externas e culturas vindas de fora do que qualquer outra. Com raras exceções, seus governos e elites dominantes tiveram mais compromissos políticos e culturais com as antigas metrópoles européias ou as potências do Norte que as sucederam do que com seus vizinhos, mais do que com seu próprio povo.

O comércio entre vizinhos tornou-se relevante há menos de vinte anos e as alianças estratégicas são ainda mais recentes. A Unasul, formalizada em maio de 2008, é uma recém-nascida. O centro de gravidade desta região, que sempre esteve bem além de suas fronteiras, começa a se deslocar para mais perto, mas a mudança é muito recente e embrionária. A crise dos países centrais, associada à troca de guarda nos Estados Unidos, ainda é decisiva. A partir da crise mexicana de 1994, desequilíbrios financeiros em menor escala tiveram um papel decisivo em minar a popularidade dos governos neoliberais e a legitimidade de suas políticas, até o colapso da conversibilidade argentina pôr o último prego no caixão do Consenso de Washington, em 2001.

Será que a atual crise vai abalar os governos de esquerda e centro-esquerda que os sucederam, como, de Manágua à Terra do Fogo, desejam ardentemente os liberais e conservadores relegados à oposição? A recessão vai ser moderada e a recuperação vai começar antes do fim de 2009, como espera a maioria das projeções oficiais? Ou será que essa é uma expressão de desejo, mais que da fria razão econômica, e a crise vai se estender por anos de depressão e ajustes dolorosos? As dúvidas e os imponderáveis são numerosos o suficiente para desencorajar qualquer candidato a profeta. Pode-se, no máximo, tentar descrever as forças em jogo e esboçar possibilidades.

Uma direita órfã

A situação político-econômica atual não é o reflexo simétrico das crises dos anos 90, quando a tentativa de atrair recursos voláteis e o desmantelamento de políticas industriais e sociais amplificavam a dependência dos fluxos internacionais e desprotegiam a população, transformando meros espirros financeiros em pneumonias sociais. As políticas atuais, ao acumular reservas, conter o endividamento externo, recuperar o controle nacional dos recursos naturais e promover programas sociais, amenizam a crise, mesmo se não a anulam. Muitos perceberão que a política pregada por conservadores e liberais agravaria a situação sem ter a possibilidade concreta de atrair capitais especulativos.

Além disso, quebrou-se o espelho no qual as direitas latinas se admiravam. Os efeitos acumulados das políticas de Reagan, Bush pai, Clinton e Bush júnior trouxeram o caos à matriz. Barack Obama, mesmo que não estivesse inclinado a políticas mais intervencionistas e distributivistas, será forçado pela conjuntura a aplicá-las muito além do que talvez julgasse recomendável ao iniciar a campanha presidencial. O exemplo dado pelos EUA nos próximos dois anos, ao menos, será o de uma sociedade que enfrenta a crise com forte ação estatal. Que outro modelo terão liberais e conservadores a oferecer?

O discurso da oposição a governos intervencionistas ficará um tanto esvaziado, mas isso não é dizer que, em geral, as disputas internas vão esfriar. Por mais que os efeitos da crise sejam suavizados, tendem a acirrar o conflito distributivo entre as massas e as elites, incluída nestas a nata do que na América Latina se costuma chamar de “classe média”.

Cada vez mais os conflitos políticos latino-americanos, muitas vezes reduzidos a disputas “fisiológicas” e enfrentamentos entre as camadas superiores, tomam formas mais semelhantes à de uma luta de classes tradicional, na qual as maiorias, geralmente mestiças ou indígenas nesta parte do mundo, afirmam a si mesmas e seus interesses e enfrentam uma classe média acostumada a se ver como “branca” (em termos comparativos) e consciente da ameaça a seus privilégios hereditários.

A queda do preço das commodities e a desvalorização das moedas da região acirram o conflito. Pode ser uma oportunidade para se frear a inflação dos alimentos, mas a renda como um todo cresce menos, os produtos importados encarecem e o agronegócio se vê em maus lençóis, acentuando a insatisfação das classes médias e dos latifundiários e seus agregados. Esperem-se manifestações furibundas, ainda que mal articuladas.

Quem mais, provavelmente, verá sua estrela declinar será Álvaro Uribe. É malvisto pelos democratas dos EUA, que rejeitam o livre-comércio com a Colômbia, graças ao histórico de violência contra sindicalistas e ativistas sociais no seu governo, e apostou demais nos republicanos, a ponto de ajustar o cronograma da operação de resgate a Ingrid Betancourt para criar uma notícia favorável ao candidato John McCain na única viagem ao exterior de sua campanha.

Se conseguiu diminuir a ansiedade dos colombianos com a guerrilha ao obrigá-la a recuar, isso também deu maior exposição às atrocidades de seu governo. A mais escabrosa, revelada em outubro, foi a execução indiscriminada de pelo menos 1.155 inocentes, provavelmente mais de 3 mil, apenas para que os militares que os apresentavam como guerrilheiros mortos em combate recebessem prêmios, honrarias e promoções, ou simplesmente alguns dias de licença. Segundo o próprio governo, as Farc tinham 15 mil combatentes no início do mandato de Uribe em 2002, mas nestes seis anos foram desmobilizados, capturados ou mortos em combate “55 mil guerrilheiros”. Uribe teve de afastar mais de 40 oficiais e o próprio comandante do Exército, Mario Montoya.

Seguiu-se o escândalo financeiro das “pirâmides”, supostas financeiras que, durante anos, atraíram milhões de dólares de famílias de camadas médias e médias-baixas, prometendo rendimentos de até 150% anuais, com a conivência do governo. A partir de 17 de novembro, as pirâmides ruíram, centenas de milhares de famílias viram suas poupanças arruinadas, os responsáveis fugiram para o Panamá e dezenas de escritórios dessas empresas foram saqueadas e incendiadas, o que resultou em dois mortos e dezenas de feridos.

O Peru deve ter a maior taxa de crescimento do PIB em 2008, mas atribuí-la à fé no livre-comércio é apressado. Os cinco maiores crescimentos a seguir cabem a Cuba, Argentina, Uruguai, Venezuela e Bolívia. Apesar disso, o governo de Alan García foi abalado pelo escândalo do suborno do presidente da Petroperu por transnacionais do petróleo. Em outubro, o primeiro-ministro do partido governista Apra, Jorge del Castillo, renunciou com todo o gabinete. O presidente o substituiu por Yehude Simon Munaro, preso político da ditadura Fujimori de 1992 a 2000 por “apologia ao terrorismo” e supostos vínculos de seu partido Patria Libre com o grupo guerrilheiro guevarista Túpac Amaru. Simon, que adquiriu uma reputação de competência e honestidade como governador de Lambayeque, anuncia uma política econômica ativa e massivos investimentos públicos para justificar a expectativa de bom desempenho (6% de crescimento) em 2009, uma vez que o Peru, um clássico exportador de commodities, certamente será muito afetado pela crise.

O México, país que mais vinculou sua economia aos EUA, deve ser o mais afetado pela crise econômica e financeira. O governo de Felipe Calderón, que depois de Uribe é o mais conservador entre as nações mais importantes da América Latina, perde popularidade a olhos vistos. Em 2008, seu partido PAN só ganhou 18 de 198 prefeituras disputadas e 3 de 115 cadeiras de deputados estaduais, e nas eleições de julho de 2009 deve perder a liderança na Câmara dos Deputados para o centrista PRI. A esquerda também pode crescer, mas está fragmentada demais para tirar muito proveito disso. O tradicional partido de centro-esquerda, o PRD, dividiu-se e não consegue apoio dos novos movimentos e partidos de esquerda em ascensão.

Na Argentina, os conflitos podem se acirrar, dada a má gestão destes pelo governo e a tentativa cada vez mais malsucedida de esconder a inflação debaixo do tapete. As eleições legislativas de outubro podem diminuir a força do kirchnerismo dentro do partido peronista, mas afirmar a esta altura se perderá o controle do Legislativo é manifestação de torcedor, assim como querer prever a divisão da Concertación e o resultado das eleições presidenciais chilenas de dezembro de 2009, onde o crescimento da direita nas pesquisas é recente e pode ser conjuntural. No Uruguai, a governista Frente Ampla, de esquerda, é favorita, mas muita água também há de correr sob a ponte até as eleições de outubro.

Nas eleições presidenciais de El Salvador de janeiro de 2009, a esquerda, representada pela Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional, continua favorita, por pequena margem. Honduras terá eleições em novembro, nas quais o candidato do governo liberal, aliado de Chávez por razões pragmáticas, enfrentará a oposição conservadora, com resultado ainda imprevisível.

Michael Reid, da The Economist, mais uma vez prevê o declínio de Hugo Chávez, como fez na maioria dos especiais de fim de ano – em The World in 2004 chegou a cravar que “ele provavelmente perderá o referendo e a eleição presidencial que se seguirá” (venceu o referendo com 59%, logo não houve eleição esse ano, mas sim em 2006, que venceu com 63%). Qualquer um tem suas prevenções e é difícil impedir que elas turvem sua bola de cristal. Difícil de justificar é a recomendação “pode esperar que ele desenterre mais complôs fictícios de golpe”, quando ao menos uma dessas conspirações foi bem real e quase custou a vida ao Comandante e a milhares de seus seguidores.

Distensão ou confronto?

A queda do preço do petróleo e a vitória menos que esmagadora na eleição de novembro de 2008 podem frear novas ousadias de Chávez no campo econômico e institucional, mas suas estratégias de maior alcance continuarão a ter efeitos e dar o que falar. A aproximação militar e tecnológica com a Rússia e o Irã, possivelmente envolvendo também Cuba, Nicarágua, Equador e Bolívia, criou um problema embaraçoso para os EUA e será importante observar como o novo governo estadunidense lidará com isso.

Os EUA de Bush júnior, tendo como único aliado firme a Colômbia, adotaram uma política de confronto com Chávez e seus aliados que prejudicou seus próprios interesses. A recriação da IV Frota “pode” ter sido apenas uma compensação pelo despejo do Pentágono da base aérea de Manta, no Equador, e pelas restrições crescentes à sua presença na América Latina, dada a mudança de orientação política da maioria dos seus governos. Mas, neste contexto, pareceu um movimento agressivo, com vistas à intervenção política na região, ou mesmo às suas riquezas (inclusive os 80 bilhões de barris do pré-sal), até por governos tão cordatos quanto o do Brasil. O apoio estadunidense ao ataque colombiano em solo equatoriano uniu todo o resto da Unasul no repúdio à ação de Álvaro Uribe e sua pretensão implícita de estender a “Doutrina Bush” e a “guerra ao terrorismo” aos países vizinhos.

Um risco para a unidade latino-americana é que os governos ditos bolivarianos, pressionados pela queda dos preços do petróleo, pela dificuldade de obter investimentos externos, ampliem os atritos com os vizinhos, cujas oposições de direita estão ansiosas por alimentar. Frustrada a expectativa de incorporação rápida ao Mercosul e de criação do “Banco do Sul” e outros mecanismos de integração com o Brasil e a Argentina, a Venezuela parece inclinada a fechar-se com o Equador e os parceiros da Alternativa Bolivariana para a América (Alba) em um bloco à parte, com moeda própria, o que abriria oportunidades para uma política de “dividir para conquistar” por parte dos EUA.

Rafael Correa, por exemplo, está mais consolidado no Equador que nunca e, em fevereiro de 2009, provavelmente será reeleito e conseguirá um Legislativo favorável a seu projeto. Mas enfrentará dificuldades econômicas e, a médio prazo, poderá ver-se desafiado pelas elites locais, como já o foram Chávez e Morales. Por vantajoso que possa parecer do ponto de vista eleitoral e imediato, seria prudente não criar desentendimentos desnecessários com o Brasil e outros vizinhos de cujo apoio possa precisar, pois a Alba, sozinha, dificilmente bastará para respaldá-lo. O mesmo pode-se dizer do novo e frágil governo paraguaio de Fernando Lugo, minoritário no Congresso.

Hugo Chávez, Fidel Castro, Evo Morales e outros viram com simpatia a vitória democrata, mas o novo governo mudará de atitude, ou o intervencionismo dos EUA na América Latina será confirmado como política de Estado? Será preciso esperar para ver, mas Obama prometeu negociar sem precondições.

Além de enfrentar a crise, o governo cubano terá de reconstruir os estragos dos furacões, mas já superou conjunturas mais graves e acaba de descobrir 20 bilhões de barris de petróleo em suas águas territoriais. Se isso se combinar ao fim do boicote por parte dos EUA, poderá parecer tentador ao governo cubano acelerar o desenvolvimento e ganhar popularidade com uma abertura econômica à chinesa. Nada contribui mais para a sua radicalização do que o respaldo da Casa Branca ao revanchismo dos refugiados de Miami.

O foco de maior conflito de 2008, o movimento separatista de Santa Cruz e da chamada “Meia-Lua” boliviana, parece ter sido enquadrado pelo respaldo dos líderes da Unasul a Evo Morales. O prefecto de Pando foi preso e os demais rebeldes pressionados a aceitar um acordo que inclui o plebiscito sobre a nova Constituição, que provavelmente vencerá. Em resposta à suspensão por Bush júnior das preferências tarifárias bolivianas, os agentes da DEA (agência antidrogas dos EUA) foram expulsos do país, o que também contribui para isolar os separatistas. O governo de La Paz está realizando perícias nos latifúndios de Santa Cruz para dar início à reforma agrária.

Por Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa.

ARTIGO COLHIDO NO SÍITO www.cartacapital.com.br.

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